A questão indígena no Brasil: uma introdução a partir de Mariátegui

Por R. Maschieto

O presente ensaio visa apresentar reflexões a respeito da questão indígena no Brasil e sua relação com a terra a partir das contribuições de José Carlos Mariátegui.

I. Introdução

José Carlos Mariátegui é, sem sombra de dúvida, um dos nomes mais importantes do marxismo latino-americano. Suas inúmeras e vastíssimas contribuições teóricas e práticas influenciaram milhares de militantes comunistas ao redor do mundo e foram fundamentais para a construção, e posterior reestruturação promovida por Abimael Guzmán e seus camaradas, do PCP (partido comunista do Peru). Ao longo de sua trajetória, Mariátegui dedicou especial atenção a uma questão de suma importância para a compreensão das totalidades concretas latino-americanas: a questão indígena e sua estreita relação com a questão agrária.

No Brasil atual, por mais que a burguesia e a intelectualidade pequeno-burguesa queiram negar, a questão agrária ainda é, junto da questão nacional, o maior problema não resolvido do capitalismo brasileiro, que, por ter se desenvolvido através de uma via similar à famigerada via prussiana, analisada por Lenin, não levou a cabo o rompimento com o latifúndio semifeudal. A questão indígena em nosso país, por sua vez, apesar de receber certa visibilidade na mídia hegemônica, não é contemplada da forma devida nas análises liberais, que não se atrevem (por motivos óbvios) a confrontar o latifúndio e, por isso, não são capazes de entender a situação em sua complexidade material.

II. A inseparabilidade das questões e o caso peruano

Em “El problema de las Razas en la America Latina” (o problema das raças na América Latina), divulgado na Conferencia Comunista Latino-Americana de 1929, Mariátegui, após combater teses coloniais que associam os povos originários ao primitivismo e refutar a possibilidade de superação dos problemas dos indígenas através de uma supervalorização das “forças raciais autóctones”, afirma:

“O problema indígena se identifica com o problema da terra. A ignorância, o atraso e a miséria dos indígenas não são, repetimos, senão a consequência de sua servidão. O latifúndio feudal mantém a exploração e a dominação absoluta das massas indígenas pela classe proprietária. […] Existe, portanto, uma instintiva e profunda reivindicação indígena: a reivindicação da terra. Dar um caráter organizado, sistemático, definido, a esta reivindicação é a tarefa que temos o dever de realizar ativamente.”

Essa identificação constitui-se não de forma mecânica, mas a partir de um processo histórico-concreto, que remonta à colonização da América Latina. No caso peruano, esse processo foi constituído, inicialmente, a partir da sobreposição do feudalismo espanhol ao “agrarismo indígena”, o que criou uma ordem estática, que garantia a servidão do indígena.

Com a introdução da indústria capitalista, essa ordem é relativamente rompida e as novas relações de produção impõem-se de forma gradual. No entanto, tal rompimento não se universaliza, isto é, ele não é imediatamente válido para toda a sociedade, já que 90% dos indígenas (que representavam quatro quintos da população do Peru nessa época) continuavam a trabalhar no campo, onde predominavam as relações de produção semifeudais.

Sendo assim, Mariátegui sintetiza a questão da seguinte maneira:

“Chamamos de problema indígena a exploração feudal dos nativos na grande propriedade agrária. O índio, em 90 por cento dos casos, não é um proletário, mas um servo. O capitalismo, como sistema econômico e político, se manifesta incapaz, na América Latina, da edificação de uma economia emancipada dos defeitos feudais.”

III. A particularização da questão no contexto brasileiro: feudalidade e semifeudalidade na colônia e nos dias de hoje

No Brasil, a formação histórico-concreta deu-se, apesar das similaridades, de maneira distinta da formação peruana. Tivemos, aqui, a utilização massiva do modo de produção escravista, que constituía um negócio extremamente lucrativo para a metrópole colonial. No entanto, apesar de sua predominância durante a maior parte dos séculos XVII, XVIII e XIX, o modo de produção escravista não foi absoluto, pois, ainda no início do período colonial, o modo de produção feudal surgiu. Sobre tal surgimento, escreve Nelson Werneck Sodré em “A História da Burguesia Brasileira”:

“Foi a separação entre o pastoreio e a agricultura, na área açucareira, que motivou o aparecimento, em primeiro lugar, de uma área em que o escravismo não encontraria condições de vigência. Essa área, a do pastoreio sertanejo, definiu as suas linhas ainda no século XVI, e não fez mais, nos séculos seguintes, até o nosso tempo; quando ameaça modificar-se, do que acentuar os seus traços. Tais traços eram feudais.”

Com a abolição formal da escravatura, as relações feudais, junto das capitalistas, alastram-se e passam a definir os rumos do campo brasileiro. Essa transição é sintetizada por Sodré, no livro já citado, da seguinte maneira:

“O traço principal da abolição do escravismo, pois, esteve na sua deterioração. […] Resultou [a deterioração] da introdução de relações feudais, de um lado, e de relações capitalistas, de outro lado. O escravismo foi corroído pelas duas extremidades. O outro traço consistiu na manutenção, extinta a propriedade sobre o escravo, da propriedade sobre a terra, e vinculou-se intimamente ao primeiro.”

Essa configuração do campo, isto é, presença de relações capitalistas de produção junto de relações feudais/semifeudais, subsiste até os dias de hoje. A persistência dessas formas (semifeudais, principalmente) pode ser observada a partir da análise material das relações de trabalho no campo, onde se observa a existência de figuras como os “turmeiros” (aliciadores de mão de obra, muitas vezes escrava) e mais de dois mil casos relatados de trabalho análogo à escravidão só em 2022 (segundo dados da CPT). Outro aspecto que denuncia o caráter do latifúndio brasileiro é a sua improdutividade, que, segundo o Atlas da Terra Brasil, de 2015, chega a atingir mais de 50% das grandes propriedades.

A pretensa modernização, aparentemente levada a cabo pelo agronegócio, não transforma o caráter das relações de trabalho estabelecidas no meio rural. Sobre esse tipo de mudança no campo e a permanência da servidão, escreve Mariátegui em “Ideología y politica”.

“Na agricultura, o estabelecimento do salário, a adoção de máquinas, não apagam o caráter feudal da grande propriedade. Simplesmente aperfeiçoam o sistema de exploração da terra e das massas camponesas.”

Ora, essa configuração do campo no Brasil configura-se, pois o modo de produção capitalista, aqui, desenvolveu-se a partir de uma base feudal e deu origem, após um relativo desenvolvimento das forças produtivas, a forma de capitalismo típica dos países periféricos: o capitalismo burocrático. Essa forma possui como características, segundo as contribuições de Abimael Guzmán (o presidente Gonzalo), a extrema exploração do campesinato, a submissão ao imperialismo e a formação de monopólios de capital burocrático e feudal que se combinam com o Estado.

IV. O latifúndio contra os indígenas

É no contexto da semifeudalidade que se situa a questão indígena brasileira atualmente, embora as origens dessa questão remontem ao período colonial, portanto pré-capitalista. De forma análoga àquela descrita por Mariátegui no Peru, o “problema indígena” no Brasil está intimamente vinculado à terra e deve-se ao estabelecimento de uma contradição irremediável: latifúndio contra indígenas.

Essa contradição é percebida, por exemplo, a partir das diversas invasões de terras indígenas promovidas pelos grandes proprietários (só no Mato Grosso, foram 486 mil hectares invadidos, segundos dados do observatório do agronegócio “De olho nos ruralistas”), da utilização da força de trabalho dessa população em regimes de trabalho servis (mais de 280 indígenas foram resgatados em condições análogas à escravidão no campo, de 2010 a maio de 2022, segundo registros do Detrae) e, inclusive, da tentativa de criar mecanismos legais para confiscar territórios indígenas, como a PL 2903, o marco temporal.

A violência institucional contra os indígenas, representada por medidas como a PL 2903, por exemplo, contribui para a ampliação da historicamente constituída vulnerabilidade dessas populações, que passam a integrar o exército industrial de reserva no campo e a serem potencias vítimas do aliciamento promovido, a mando dos latifundiários, pelos já referidos “turmeiros”. Por essas razões, os indígenas encontram-se em uma situação de desamparo em meio ao capitalismo burocrático brasileiro e seu meio rural semifeudal, marcado pela violência e pelas mais primitivas relações de trabalho.

Referências bibliográficas:

SODRÉ, Nelson Werneck. História da Burguesia Brasileira. Rio: Civilização Brasileira, 1976.

CUEVA, Augustín. O Desenvolvimento do Capitalismo na América Latina. São Paulo: Lavra Palavra, 2023.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Ideología y politica. Lima: Amauta, 1969.

Em 18 anos, mais de 1.600 indígenas foram resgatados de trabalho escravo. Mídia NINJA, 2022. Disponível em: https://midianinja.org/news/em-18-anos-mais-de-1-600-indigenas-foram-resgatados-de-trabalho-escravo/ Acesso em: 29/11/2023

Latifúndios invadem mais de 480 mil hectares de terras indígenas no Mato Grosso. De Olho nos Ruralistas, 2020. Disponível em: https://deolhonosruralistas.com.br/2020/05/21/latifundios-invadem-mais-de-480-mil-hectares-de-terras-indigenas-no-mato-grosso/ Acesso em: 29/11/2023

Latifúndio e servidão: irmãos siameses. Nova Democracia, 2020. Disponível em: https://anovademocracia.com.br/materias-impressas/latifundio-e-servidao-irmaos-siameses/ Acesso em: 29/11/2023

Trabalho análogo à escravidão: 2,2 mil pessoas foram resgatadas no campo em 2022. G1, 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/df/distrito-federal/noticia/2023/04/18/trabalho-analogo-a-escravidao-22-mil-pessoas-foram-resgatadas-no-campo-em-2022.ghtml Acesso em: 30/11/2023

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