XXI, século de Homens ou Máquinas?

Por Gabriel Reis (1)

Lançado em janeiro de 2022 pela editora Boitempo, Homens ou Máquinas? reúne uma coletânea de artigos de Antonio Gramsci escritos entre 1916 e 1920 e demonstra a atualidade teórica do pensador marxista italiano que observou os desdobramentos da Revolução de Outubro e a situação da classe trabalhadora de Turim, cidade italiana, na efervescência política que acometeu a Europa naquela conjuntura.

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Antônio Gramsci, jornalista italiano do início do século XX, foi um singular intelectual. Celebrado pela originalidade teórica e reconhecido como um dos principais pensadores da causa operária italiana de meados de 1910 a 1930, suas ideias ainda são referência teórica para diferentes gerações de estudantes e de pesquisadores.

Nascido na Sardenha — ilha localizada no Mediterrâneo que pertence à Itália — em 1891, o intelectual teve contato com a corrente teórica marxista ainda jovem e vivenciou momentos historicamente determinantes do século XX.

Na conjuntura dos anos 1910, os bolcheviques concretizaram a Revolução Russa no antigo território dos Czares e os países liberais-imperialistas do oeste da Europa organizavam frentes de resistência para conter as influências políticas da então temida revolução socialista.

Em 1911, Gramsci se muda para Turim — capital de Piemonte, região localizada no norte da Itália — para estudar Jornalismo. Na mesma época, filia-se ao Partido Socialista Italiano (PSI) e atuou na redação dos periódicos Il Grido del Popolo e Avanti!.

Um dos núcleos teóricos de Gramsci envolve o conceito de hegemonia. Para o intelectual italiano, os conflitos sociais e os desdobramentos históricos advêm de uma disputa cultural e teórica por corações e mentes, de modo que a sociabilidade e a identidade social-subjetiva e ideológica dos sujeitos está em constante disputa. Tal disputa surge do conflito entre capital e trabalho somado ao poder coercitivo estatal, responsável por garantir a propriedade privada e a reprodução da vida, através das relações de produção vigentes e historicamente postas.

De tal forma, em escritos encontrados fora de Homens ou Máquinas?, Gramsci ressalta o poder dos meios de comunicação na disputa pela hegemonia.

“Nunca fui jornalista de profissão, que vende sua pena a quem paga melhor e deve continuamente mentir, porque a mentira faz parte de suas qualificações. Fui jornalista absolutamente livre, sempre de uma só opinião, e nunca tive de esconder minhas profundas convicções para agradar a patrões ou prepostos.” (Antonio Gramsci. Cadernos do cárcere — vol. 2: 1931–1937. Org. de Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pg. 103.)(1)

Em 1919, juntamente de Umberto Terracini, Palmiro Togliatti e Angelo Tasca, Gramsci fundou o jornal semanal L’Ordine Nuovo, ocupando o cargo de redator-chefe. Ancorado na disputa pela hegemonia cultural de ideias, o periódico não secundarizava suas pautas, tendo como subtítulo “Resenha semanal da cultura socialista”.

Em primeiro de janeiro de 1921, as publicações se tornaram diárias. Três anos depois, em 1924, o L’Ordine Nuovo foi substituído pelo L’Unità, levando junto a produção jornalística e intelectual de Gramsci. Dos artigos presentes em Homens ou Máquinas?, muitos são da época em que Gramsci atuava no L’Ordine Nuovo.

Turim é a sede da Fiat, concentrando grandes fábricas que, na época, instauraram o modelo de produção taylorista. Neste cenário, o intelectual italiano observava, principalmente, a situação da classe trabalhadora turinesa submetida a tal tipo de cadeia produtiva e organização do trabalho.

Não obstante, há de se considerar as reflexões de Antonio Gramsci frente ao período histórico que vivemos. Atualmente, com a massificação subjetiva do neoliberalismo, as subsequentes reverberações da crise econômica de 2008 e a nova revolução digital — todos fenômenos fulcrais para a atual plataformização das relações de trabalho e a popularização dos serviços digitais —, os paralelos conjunturais se verificam.

Para além do Leviatã

Metafísica, do grego metàphysis, significa: para além da física.

Um dos principais legados da revolução francesa e demais revoluções burguesas foi a corrente cultural e filosófico-existencial nomeada Iluminismo. Dentre os diversos precursores do Iluminismo, destacou-se o filósofo prussiano Immanuel Kant.

Para Kant, o pressuposto interpretativo para a sociedade é a metafísica; as ideias construídas a partir de uma simbólica e pessoal interpretação da realidade. Desconsiderando observações calcadas na realidade material, os flagelos sociais seriam decorrentes de uma falta de ética dos sujeitos, ao passo que para que todas as problemáticas sociais fossem superadas a humanidade deveria chegar a uma subjetividade imperativa através do princípio da racionalidade — o imperativo categórico. Assim sendo, para os iluministas da corrente racionalista, a evolução humana é proveniente da razão.

Tal linha de interpretação é altamente difundida até os tempos atuais, na medida em que os sujeitos creem estarem vivendo o ápice da vida humana, ainda que a sociedade contemporânea siga permeada de contradições.

É teorizável que a interpretação metafísica retroalimenta o individualismo, na medida em que o sujeito não se reconhece pertencente a uma entidade coletiva, negligenciando movimentos de politização. Substancialmente, desconsiderando a própria formação subjetiva, o sujeito não toma conhecimento das interpelações responsáveis por moldá-lo subjetivamente enquanto sujeito.

Ambos os fenômenos convergem com a sociabilidade capitalista.

“O individualismo econômico do regime capitalista determina o associativismo político.” (Antonio Gramsci, Homens ou Máquinas?, Editora Boitempo, 2022, pg 68) (2)

O princípio da racionalidade expressa-se através da metafísica como um Leviatã. Tal colosso foi enfrentando por diversos intelectuais das variadas linhas da Teoria Crítica.

No campo da Economia Política, a corrente marxista enfrentou o Leviatã teórico da metafísica através de suas bases metodológicas: materialismo-histórico e a dialética.

Na área da psique humana, a corrente psicanalista, muito potencializada por Sigmund Freud, deu valorosos passos na descoberta do inconsciente humano, potencializando reflexões e debates a respeito da subjetividade e da formação subjetiva dos sujeitos.

Gramsci, enquanto marxista, ancorou-se em análises sociais advindas do materialismo-histórico e da dialética. Ainda que não tenha obtido uma referência direta de Freud e demais psicanalistas da época, o intelectual italiano fez elevadas contribuições no campo da subjetividade e da cultura.

Esmiuçando brevemente o materialismo-histórico e a dialética: tratam-se de métodos de análise.

O materialismo engloba uma observação da materialidade vigente. Neste sentido, uma análise a partir das relações sociais e de produção postas e da forma como ocorre a redistribuição do excedente produzido pela sociedade através do trabalho humano.

Para os materialistas, a história se trata de uma série de desdobramentos conflitivos decorrentes de interesses econômicos, políticos e culturais antagônicos, advindos de classes sociais distintas.

Entretanto, há de se ponderar que tais conflitos só se aplicam a sociedades dividas em diferentes classes sociais, que possuem a chamada divisão social do trabalho — relações de trabalho postas de forma hierárquica —, desconsiderando agrupamentos humanos comunais e coletivos que existiram e ainda existem, como as comunidades indígenas.

Contemplando as relações sociais e de trabalho historicamente postas nas sociedades antigas e contemporâneas, a primazia interpretativa dos materialistas é apontar que, no âmbito social, a “natureza humana” seria o trabalho. Consequentemente, o ser humano sobrevive graças ao seu dispêndio de energia laboral e dele dignifica sua própria existência.

Não obstante, o desenvolvimento social e tecnológico das comunidades humanas que futuramente se tornaram civilizações emergiu da complexificação das relações de trabalho, das cadeias produtivas e das novas tecnologias criadas.

Neste fio, é ressaltado pelos materialistas que, com o desdobrar da história, as relações de produção mercantis se hegemonizaram com o passar dos séculos. Tal processo, intensificado pelas revoluções industriais, pelo colonialismo e pelas guerras mundiais, deu vazão à mundialização das relações capitalistas de produção.

“A atividade industrial é atividade prática levada a cabo por indivíduos singulares ou associados em ligas patronais, os quais se propõem tirar do capital investido o máximo de lucro possível. O ‘propósito’ se concretiza pelo preço de venda e pelos salários dos operários: preço de venda máximo e salário mínimo para a maior jornada de trabalho possível.” (Antonio Gramsci, Homens ou Máquinas?, Editora Boitempo, 2022, pg 75) (3)

Em contrapartida, a dialética representa um método diferente, porém complementar ao materialismo-histórico.

Desenvolvido pelo filósofo alemão Georg Wilhelm Hegel, e posteriormente apropriado pelas correntes marxistas, o método de observação dialético abarca o movimento inerente aos organismos vivos.

Muito influenciados pela biologia darwiniana — que por sua vez contempla saberes teóricos do movimento evolutivo das espécies —, Hegel e, posteriormente, os marxistas, apossaram-se do conhecimento a respeito do movimento inerente aos seres vivos e aplicaram à luz de uma interpretação dos sujeitos e da sociedade.

Substancialmente, pelo fato de a realidade ser dinâmica, a sociedade possui vida, legando pelas sequentes gerações de sujeitos o passado construído, ao mesmo passo que tal passado influi no desenvolvimento do presente e nas infinitas possibilidades do futuro.

Abarcando os incalculáveis degraus da subjetividade, a dialética contempla a existência inerente da antítese frente à tese. Em outras palavras, reconhece a inevitabilidade das contradições sociais. Assim sendo, a dialética é o método de análise do movimento e a das contradições da sociedade. Para marxistas como Gramsci, não bastava entender a sociedade, mas, sim, o movimento da sociedade.

Na conjuntura vivenciada por Gramsci, através do materialismo-histórico e da dialética, a análise do intelectual é de que a Primeira Guerra Mundial impulsionou a reorganização das cadeias produtivas da Europa, re-coordenando as relações de trabalho através de novos modelos industriais de produção: o taylorismo e o fordismo.

“Durante a guerra imperialista de 1914–1918 (Primeira Guerra Mundial), Turim viveu duas insurreições armadas: a primeira, que eclodiu em maio de 1915, tinha como objetivo impedir a intervenção da Itália na guerra contra a Alemanha (nessa ocasião, foi saqueada a Casa do Povo); a segunda, em agosto de 1917, assumiu o caráter de uma luta revolucionária armada, em grande escala.” (Antonio Gramsci, Homens ou Máquinas?, Editora boitempo, 2022, pg 215)(4)

Materialismo-histórico e dialética, do léxico marxista, significa: para além do Leviatã.

O taylorismo e a situação da classe operária turinesa na conjuntura de Gramsci

Em meio às tensões das primeiras décadas do século XX, a classe operária mundial vivenciou transformações nas cadeias produtivas dos principais polos capitalistas.

Com a intenção de aumentar a produtividade dos trabalhadores e, consequentemente, os lucros, a classe dominante europeia e estadunidense desenvolveu novos modelos produtivos para serem postos em prática em suas fábricas. Dentre eles, destacam-se o taylorismo e o fordismo.

O fordismo apresentou-se como uma cadeia produtiva baseada em longas linhas de montagem com funções manuais repetitivas e de baixa complexidade.

Em contrapartida, o taylorismo se apresentou como um modelo produtivo que direcionava os operários para ocupações mais específicas e que necessitavam de treinamento prévio. Tal modelo produtivo se sustentava pelo monitoramento do rendimento laboral de cada trabalhador, com metas a serem batidas à luz de um específico período de tempo.

Neste contexto, o trabalhador necessita se desdobrar constantemente para cumprir metas dentro do tempo delimitado. Na Itália, e, consequentemente, em Turim, o taylorismo foi praticado pelas fábricas da Fiat.

“As fábricas Fiat Centro concentram em suas 42 unidades uma massa de cerca de 15 mil trabalhadores: os 15 mil trabalhadores das fábricas Fiat-Centro ganham o pão de cada dia para uma população operária de mais de 60 mil criaturas humanas. Trata-se de um gigantesco aparelho industrial que corresponde a um pequeno Estado capitalista, que é um pequeno Estado capitalista e imperialista, porque dita leis da indústria mecânica em Turim, porque tende, com sua produtividade excepcional, a submeter e absorver todos os concorrentes. Um pequeno Estado absoluto que tem um autocrata: o comandante Giovanni Agnelli (dono da Fiat), o mais audaz e tenaz dos capitães de indústria italianos, um “herói” do capitalismo moderno.” (Antonio Gramsci, Homens ou Máquinas?, Editora boitempo, 2022, pg 165) (5)

Naquela conjuntura, a concentração brutal de capital frente à reorganização das cadeias produtivas dos países liberais-imperialistas culminou na elevação da tensão social.

Os sindicatos italianos obtiveram gradativo apoio da massa operária local e se fortaleceram. A tomada de consciência da classe trabalhadora italiana, bem como dos demais países, se intensificou na medida que os desdobramentos da Revolução de 1917 na Rússia atingiam todo o globo.

“Os patrões correm para se defender. Na primeira quinzena de abril, os industriais têxteis de Turim e entorno, Wild, Mazzonis, Leumann, Hofmann, demitem e deixam na miséria os operários que participaram das comissões de greve. A indústria têxtil vinha tendo um desenvolvimento milagroso. Novas fábricas surgem, as já existentes multiplicam a sua produção. E os capitalistas, nessa vida exuberante, cercam seus interesses com redes espinhosas: a vida de seus empregados é um verdadeiro inferno: salários, tratamento e horários vergonhosos, e os diretores e capatazes dos verdugos, dos lacaios, castigam a menor falta com multa. E ai de quem se queixa, de quem resmunga, mesmo em voz baixa: a demissão é fulminante.” (Antonio Gramsci, Homens ou Máquinas?, Editora Boitempo, 2022, pg 47) (6)

Neste cenário de plena instabilidade, Gramsci expunha em seus escritos as relações promíscuas dos grandes proprietários da iniciativa privada com o Estado. Como sua corrente teórica sinaliza, o intelectual italiano apresentava a tese do Estado não ser uma entidade neutra, estando a serviço de setores específicos da sociedade em detrimento de outros.

Para Gramsci, a falta de neutralidade na ação coercitiva estatal, na medida que o ente público age em conjunto com os grandes proprietários de seu tempo, confere ao Estado um caráter burguês. Assim sendo, sob uma sociabilidade capitalista, o Estado não é meramente Estado, mas sim, um Estado burguês — uma entidade pública a serviço da classe dominante de tal sociedade: a burguesia.

Na conjuntura do chamado biênio russo (1919–1920), a classe operária turinesa iniciou suas frentes de resistência à opressão da classe dominante e do Estado burguês.

Em um dos artigos contemplados em Homens ou Máquinas?, Gramsci destaca a violência estatal através do cercamento de Turim por forças militares. Novos policiais chegaram na capital de Piemonte, juntamente da instalação de baterias e metralhadoras em telhados e demais pontos da cidade. A insurgência torna-se epítome. A resistência, uma necessidade.

“Todo esse movimento da classe capitalista e do poder de Estado para cercar Turim, para prender a classe operária numa ratoeira, nem sequer foi percebido pelos líderes responsáveis da classe operária italiana organizada. A ampla ofensiva capitalista foi preparada sem que o ‘estado-maior’ da classe operária organizada percebesse o que ocorria ou se preocupasse com isso: e essa ausência das centrais de organização tornou-se uma condição da luta, uma tremenda arma na mão dos industriais e do poder do Estado, uma fonte de debilidade para os dirigentes locais da seção metalúrgica.” (Antonio Gramsci, Homens ou Máquinas?, Editora boitempo, 2022, pg 172) (7)

O neoliberalismo é um projeto político econômico que obteve o auge de sua práxis nos anos 80, através do governo de Ronald Reagan (presidente dos Estados Unidos de 1981 a 1989) e Margaret Thatcher (primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990).

Naquela conjuntura, a União Soviética tinha seus últimos lampejos de vida e a Guerra Fria se enfraquecia. Junto a isso, os projetos político-econômicos de bem-estar social — chamados de keyneseanismo —, que tiveram seu auge nos países centrais da geopolítica capitalista, foram paralisados.

Em suma, o neoliberalismo se caracteriza como um projeto de sociedade que visa a ação mínima do Estado em políticas voltadas para as classes menos abastadas. Desta forma, através do neoliberalismo, as políticas da força estatal são destinadas somente à classe dominante, por sua vez, escancarando o caráter burguês do Estado da sociabilidade capitalista.

Os fenômenos que contemplam o projeto neoliberal são: sucateamento dos serviços públicos com uma posterior privatização das estatais, perda de poder político dos sindicatos, precarização das relações de trabalho, rombos na previdência etc.

Décadas após os mandatos de Thatcher e Reagan, em 2008, um novo fato histórico potencializa os desdobramentos que culminam no contexto conjuntural que vivemos: a crise do setor imobiliário de Nova Iorque. Tal processo histórico potencializou o recrudescimento das relações de trabalho nos países liberais do Ocidente e diluiu os salários e o poder de compra dos trabalhadores dos respectivos países.

Tal quebra na qualidade de vida tornou necessário que a classe trabalhadora norte-americana e europeia buscasse formas de complementar suas rendas para se sustentar. Neste cenário, em somatória com a revolução digital experienciada pela gradativa popularização da internet e dos aparatos tecnológicos inteligentes — smartphones, tablets etc. —, empresas prestadoras de serviços por meios digitais, como Uber e IFood, emergiram e se apropriaram deste momento para capitalizar.

Um fato a ser observado é que as empresas que conferem aos trabalhadores uma oportunidade de trabalho por intermédio de plataformas digitais pressupõem a necessidade de um complemento de renda. Tal factualidade torna teorizável que a atual conjuntura de crise é lucrativa e benéfica para estes setores empresariais.

“Essa é, portanto, a realidade, e ela cria condições particulares de vida. Os dirigentes adquirem uma autoridade e uma importância que não deveria existir, de acordo com o espírito igualitário e essencialmente democrático das organizações.” (Antonio Gramsci, Homens ou Máquinas?, Editora Boitempo, 2022, pg 72) (8)

Na especificidade da conjuntura brasileira, os trabalhos secundários e complementos de renda sempre foram uma realidade. Este fato, a princípio, só foi experienciado como novo em nações que obtiveram longos anos de políticas de bem-estar social. Tais políticas tiveram ínfima aplicação histórica abaixo da Linha do Equador.

Com jornadas de trabalho que potencialmente atingem as 12 horas diárias (9), o trabalho plataformizado contempla relações laborais precarizadas, oferecendo aos trabalhadores baixa segurança trabalhista mediante ausência completa de direitos trabalhistas. A renda obtida por intermédio desta relação trabalhista também tornou-se uma pauta criticada pelos trabalhadores de aplicativo, com muitos alegando taxas de repasse exorbitantes (10).

Tanto nos contextos primeiro-mundistas e terceiro-mundistas, os trabalhadores plataformizados vertiginosamente buscaram frentes de mobilização coletiva para lutar por seus direitos trabalhistas.

No Brasil, o movimento Breque dos Apps emergiu em 2020, no auge da pandemia da Covid-19, quando os serviços por aplicativo estavam em alta em decorrência do isolamento social. Na época, entregadores de aplicativo se mobilizaram em diversas capitais do país reivindicando melhores condições de trabalho. O movimento se estendeu ao longo dos anos seguintes11, com as respectivas empresas sendo pressionadas e realizando mudanças vagarosas no funcionamento das plataformas para dar mais dignidade laboral aos trabalhadores.

Mediante tal cenário, proponho um movimento reflexivo referente a um possível paralelo entre a conjuntura de Antonio Gramsci e a atual conjuntura.

Especificamente, as determinações histórico-sociais das revoluções tecnológicas e, consequentemente, das cadeias produtivas, costumam sinalizar-nos seus resultados positivos através da popularização das novas tecnologias, negligenciando os inevitáveis impactos negativos à sociedade.

Para toda grande transformação social deve ser perguntado: a quem isso interessa e beneficia? O conjunto das massas? E quais os impactos desta transformação nas estruturas da sociedade?

“Toda sociedade vive e se desenvolve porque adere a uma produção historicamente determinada: onde não existe produção, onde não existe trabalho organizado (ainda que de modo elementar), não existe sociedade, não existe vida histórica. A sociedade moderna viveu e se desenvolveu até sua fase atual porque aderia a um sistema de produção: àquele historicamente determinado pela existência de duas classes, a classe capitalista, proprietária dos meios de produção, e a classe trabalhadora, a serviço da primeira, subjugada à primeira pelo vínculo do salário, da ameaça sempre presente de morrer de fome.” (Antonio Gramsci, Homens ou Máquinas?, Editora Boitempo, 2022, pg 147) (12)

Hegemonia e contra-hegemonia; poder e contrapoder

O invisível conflito entre capital e trabalho tende a se tornar mais explícito em momentos de quebra de rumo conjuntural. Grandes transformações históricas erigem rearranjos nas estruturas da sociedade: surgem novas tecnologias, novos trabalhos, novos tipos de relações sociais, novas contradições etc.

Entretanto, a hierarquia social, política e econômica, por sua vez, inerente às sociedades com classes sociais distintas, se mantém. A hegemonia cultural, no âmbito da circulação de preceitos e subjetividades, se renova sob a tutela das classes dominantes. O poder, mediante a inevitabilidade de relações promíscuas entre o alto empresariado da conjuntura e o Estado, segue concentrado.

Na conjuntura de Antonio Gramsci, as longas jornadas de trabalho, os baixos salários e demais formulações de opressão laboral efervesceram os conflitos sociais.

O Estado liberal italiano daquele período agiu em conjunto com a classe dominante italiana para sedimentar os novos modelos de produção — relações de trabalho — através de novas cadeias produtivas — fábricas com produção taylorista, na conjuntura de Gramsci — que subjetivaram seus trabalhadores, pertencentes aos setores menos abastados da sociedade, à condição de máquinas de produzir.

“O Estado torna-se, assim, o único proprietário do instrumento de trabalho, assume todas as funções tradicionais dos empreendedores, torna-se a máquina impessoal que compra e distribui as matérias-primas, que impõe um plano de produção, que compra e distribui os produtos: o Estado burguês, dos burocratas incompetentes e irrevogáveis; o Estado dos politiqueiros, dos aventureiros, dos trapaceiros.” (Antonio Gramsci, Homens ou Máquinas?, Editora Boitempo, 2022, pg 145) (14)

A atual conjuntura, sob a ótica do neoliberalismo, fomenta uma sociedade que potencializa o, sinalizado por Gramsci, associativismo político. Através do incentivo ao individualismo e à concorrência, as classes trabalhadoras dos países liberais do Ocidente são subjetivadas à condição de máquinas de produzir e, também, de competir entre si.

As empresas provedoras de serviços e oportunidades de trabalho plataformizado, seja o de motorista de aplicativo ou o de entregador de aplicativo, conscientes da necessidade de complemento de renda por parte dos trabalhadores frente às recentes instabilidades conjunturais, retroalimentam o projeto neoliberal de sociedade.

Apartando-se de um ambiente de trabalho com outros colegas submetidos a condições de trabalho insalubres e bombardeado com propagandas que apontam que ele é um empreendedor, o trabalhador de aplicativo não se reconhece membro de uma classe de trabalhadores precarizados.

Com os elevados riscos laborais, em decorrência dos perigos das ruas, somados à elevada jornada de trabalho e aos baixos salários, o trabalhador de aplicativo, teoricamente o operário da nossa conjuntura, é subjetivado à condição de máquina.

“Decerto, para os industriais tacanhamente burgueses, pode ser mais útil ter operários-máquinas, em vez de operários-homens.” (Antonio Gramsci, Homens ou Máquinas?, Editora Boitempo, 2022, pg 57)16

Ao fazer a observação conjuntural e analítica da situação da classe trabalhadora de seu tempo, Gramsci apontou que os operários eram levados à condição de máquinas.

Através da contribuição teórica de Antonio Gramsci, ao observar ciclistas e motociclistas com mochilas quadriláteras nas traseiras e motoristas com celulares fixados nos painéis de seus veículos, que circulam pelas ruas inseguros do amanhã, passei a me perguntar: estou vendo homens ou máquinas?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

(1) Gramsci, A. Cadernos do cárcere — vol. 2: 1931–1937. Org. de Luiz Sérgio Henriques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pg. 103.
(2) Gramsci, A. Homens ou Máquinas?. Editora Boitempo, 2022, pg 68.
(3) Gramsci, A. Homens ou Máquinas?. Editora Boitempo, 2022, pg 75.
(4) Gramsci, A. Homens ou Máquinas?. Editora Boitempo, 2022, pg 215.
(5) Gramsci, A. Homens ou Máquinas?. Editora Boitempo, 2022, pg 165.
(6) Gramsci, A. Homens ou Máquinas?. Editora Boitempo, 2022, pg 47.
(7) Gramsci, A. Homens ou Máquinas?. Editora Boitempo, 2022, pg 172.
(8) Gramsci, A. Homens ou Máquinas?. Editora Boitempo, 2022, pg 72.
(9) Surdré, L. “A guerra continua”, prometem entregadores dos breques contra apps. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/30/a-guerra-continua-prometem-entregadores-dos-breques-contra-apps
(10) Surdré, L. Jornadas de 12h e zero direitos: por que entregadores de apps fazem greve inédita. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/06/30/12h-de-trabalho-sem-apoio-e-sem-direitos-o-dia-a-dia-dos-entregadores-de-apps
(11) Surdré, L. “A guerra continua”, prometem entregadores dos breques contra apps. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2020/07/30/a-guerra-continua-prometem-entregadores-dos-breques-contra-apps
(12) Gramsci, A. Homens ou Máquinas?. Editora Boitempo, 2022, pg 147.
(13) Pescarini, F. iFood faz acordo com polícia para entregador ser liberado mais rápido de blitz. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/08/ifood-faz-acordo-com-policia-para-entregador-ser-liberado-mais-rapido-de-blitz.shtml
(14) Gramsci, A. Homens ou Máquinas?. Editora Boitempo, 2022, pg 145.
(15) Silva, V. ‘TUDO BEM POR AÍ?’ Yuri morreu fazendo entrega para o iFood. 11 dias depois, sua conta foi desativada por ‘má conduta’. Disponível em: https://www.intercept.com.br/2022/09/05/yuri-morreu-fazendo-entrega-para-o-ifood-11-dias-depois-sua-conta-foi-desativada-por-ma-conduta/
(16) Gramsci, A. Homens ou Máquinas?. Editora Boitempo, 2022, pg 57.

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