Breves reflexões sobre estética revolucionária brasileira

Por Rodolpho F. Borges

Se recusando a mostrar como as coisas aparentam ser, a arte revolucionária deve lançar luz sobre como as coisas realmente são e essa luz é como elas deveriam ser. Não como alívio, fantasia do indivíduo oprimido e sem saída que idealiza o revide. Mas como valorização do aspecto virtuoso que nasce destarte toda violência e indica sua superação.


Clara Nunes no desfile de carnaval da Portela, 1983. Mineira e filha de operários, Clara deixou de cantar boleros, música muito vendida nas décadas de 50 e 60, e caminhou ao encontro do samba. Afirmou que, na montagem de seus discos, procurava ser uma “porta voz do povo brasileiro”

Procurarei aqui, humildemente, contribuir com o debate sobre a estética revolucionária e comunista no Brasil com algumas primárias reflexões que se apropriam de alguns pontos da crítica benjaminiana da estética.

“A barbárie está inserida no próprio conceito de cultura: como conceito de um tesouro de valores considerado de forma independente, não do processo de produção no qual nasceram os valores, mas do processo no qual eles sobrevivem. Desta maneira, servem à apoteose deste último, não importando o quão bárbaro possa ser.[1]

A subjetivação do ser humano sob o capitalismo está determinada pela forma mercadoria, uma subjetivação extremamente alienada do real, ou seja, das estruturas que formam o objeto subjetivado. Também é o caso da produção, intelectual e artística, na qual o domínio sobre os elementos aparentes da forma e conteúdo das expressões culturais é tão alto quanto mais é baixo a articulação dessas expressões com as estruturas sobre as quais ela se erige. Daí que uma enorme gama de possibilidades surge, pois (quase) tudo é possibilidade, mas na medida em que (quase) tudo pode ser esvaziado ou “ressignificado” dos laços que significam determinada expressão artística no momento de sua criação. Mas haverá alguma essência – e pior, original – de uma expressão, já que nenhuma delas pode existir sem ser em um intercâmbio contínuo? E qual seria? Debruçar-me sobre a existência ou inexistência da essência só poderia demonstrar obssessividade em um tempo em que tudo é tirado do lugar e dessacralizado, não em nome de mediações e expressões superiores mas das que podem gerar maiores lucros para uns poucos grupos que dominam a produção humana. Portanto, não pretendo ser portador dessa resposta, mas podemos aqui indicar algumas coisas. Primeiro, devemos levar em conta a intrínseca relação entre a forma e o conteúdo da arte e que uma expressão artística é, justamente, de uma forma ou de outra, expressão de algo concreto a partir de uma linguagem determinada pela técnica. Essa expressão é sempre alienada, mas ela pode suprassumir mediações e indicar novas mais superiores ou o contrário. Sem a técnica não há arte. Assim como a redução da arte à técnica é o fim da arte.

Qualquer das músicas hoje produzidas na esteira da industrial cultural poderia ser criada por uma inteligência artificial, por exemplo, tamanha a standartização da sua relação forma x conteúdo. Tanto pela mecanicidade da mesma, quanto pela forma de apreensão e subjetivação que se origina a partir do domínio da forma mercadoria na arte. A capacidade de articular dezenas de referências, seja na forma ou no conteúdo, de uma música, por exemplo, só existe na medida em que essas referências são esvaziadas uma por uma e utilizadas. A arte do capitalismo é como uma fábrica na qual a matéria-prima, ou seja, as referências artísticas, são processadas e enlatadas. Não logra ser nada mais que pura moda. Não é surpreendente que a cultura tem sido reduzida a mero entretenimento, e a capacidade sensitiva, ou seja, de internalizar sensivelmente as expressões, seja substituída pela mera apreensão sensorial.

Também a arte panfletária aqui não é passível de defesa, a arte que pretende dizer apenas por falar. Desde quando o ato simples de falar ou mostrar algo ensina ou mobiliza alguém que não seja um alguém que já sabe o que está sendo falado?

“Gota D’Água”, de Chico Buarque e Paulo Pontes. Alguns anos antes Chico criticava a Indústria Cultural e o “iê-iê-iê” no musical “Roda Viva”, obra alegórica demasiadamente panfletária e conceitualista, apesar de muito acertada nos pontos de sua crítica. Na “tragédia grega” de Gota D’Água ele, junto de Paulo Pontes, faz uma crítica bastante semelhante, mas mostrando sua superioridade como artista.

Os bens culturais estão à serviço dos dominantes, sob a forma de riqueza material, riqueza simbólica, poder simbólico e poder de reprodução de seu pensamento. Mesmo mudando as formas da dominação, os bens culturais dominantes não foram tomados pelos dominados em última instância, pelos trabalhadores, os que realmente objetivam a natureza. Esses bens culturais sobrevivem pela barbárie. A barbárie é o próprio processo material em que se formam os bens culturais e é também a própria caracterização da antítese do que seria cultura. Para os dominantes, a antítese ideal da cultura é o seu processo de reprodução material. O revolucionário enxerga através disso, não pode considerar a cultura tal como a cultura vencedora, mas, apesar de não tomar para si o conceito idealizado, não pode negligenciar os modos de reprodução material dos bens culturais dos vencedores. A arte popular nasce em meio a toda violência que lhe aflige, dada as formas até hoje existentes da organização da produção que se catalisam na forma capitalista. Não cabe ao revolucionário fazer dessa arte apenas resumo da exploração, idealizá-la de modo que se tirada da violência, para o indivíduo mero entusiasta, ela perde seu valor. Superação positiva: o grande mérito da arte popular é conjurar/subverter toda a violência da exploração de classes e produzir virtuosidades, num trânsito transcendental e entre o universo magnificente em que são produzidos bens culturais dominantes – com todas as melhores condições (propiciadas pela exploração e toda sua sorte de violências) – e o universo do dominado, cujo qual tem a chave para o novo mundo.

“A solução não é a inversão, mas a suprassunção da propriedade privada.”

Edição de 1997 do livro “Triste fim de Policarpo Quaresma”. Submetido a toda barbárie à qual o “louco” está sujeito, Lima Barreto produziu obras como se tivesse a vida toda condições materiais para nos deixar tanta riqueza escrita, fruto da sua paixão subvertedora.

Para ser propositivo, não penso ser possível fazê-lo sem sair da abstração. Não se trata aqui de negar o que tem sido criado em defesa de um saudosismo de uma arte do passado, mas de afirmar, em nome da dessacralização da arte dominante: a cultura popular. Não a pura cultura popular, folclorizada, mas toda cultura que emerge e se reproduz contra a massificação, o colonialismo cultural e a cretinização do nosso povo trabalhador. Nós temos história, temos memória e temos arte, destarte tudo que tenta reduzi-la. Desde a negação aristocrática, até o entusiasmo esvaziador pequeno-burguês. Desde a importação, à revelia, de formas estéticas que sequer fazem sentido em seus lugares de origem, à deformação dos conteúdos. Temos nossas linguagens e nossas técnicas, expressões das diferentes formas de viver sobre esse solo latino-americano chamado Brasil com o qual nós, sem moralismos, mas com uma firme moral, devemos estar impregnados.

Por fim, não basta um novo conceito de cultura que considera também aquilo que um dia foi tido como barbárie quando a ordem desigual da distribuição material do homem, sua causa motriz, sua contradição material não foi superada. Isso só poderá surgir se o movimento do real conduzir, ou seja, ser revertido para o socialismo.

Mas não é a arte capaz de andar a um tempo diferente do tempo das coisas?


Sobre o autor

Rodolpho F. Borges é professor de história e militante do Partido Comunista Brasileiro


Notas

[1] BENJAMIN, Walter. 2009. Passagens. Trad. Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, p. 509

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