Dialética e Esperança

Por Ernst Bloch, via Sujeto-Objeto: el pensamiento de Hegel[i], traduzido por Thales Fonseca.

“O movimento real pela sua realidade começou, agora enfim, conscientemente, contra a alienação de todos os homens e das coisas, a favor de que o ser-próprio chegue a si. Ao libertar a sociedade de todos os condicionamentos existenciais que levam o próprio sinal do trabalho estranhado [entfremdetem Arbeit], o socialismo à libertará de todo estranhamento [Entfremdung] e criará assim o fundamento para que toda a Terra seja a pátria da humanização. Essa é a antiquíssima intenção pela felicidade: que o interior se faça exterior, que o exterior chegue a ser o interior; intenção que não embeleza e fecha, como em Hegel, o mundo existente, mas que está aliada com as propriedades da realidade ainda não existente, que são portadoras de futuro”

1. Tem sido dito que o homem, tal e como é, vem a ser um parto prematuro. Vem ao mundo mais desamparado [hilfloser] e inacabado [unfertiger] para a vida que qualquer animal, e necessita ir se desenvolvendo por mais tempo, durante grande parte de sua vida. Vacila e comete erros aos quais jamais incorreria um animalzinho recém-nascido no mundo que o cerca. Anda, não poucas vezes, às sombras, sem saber por onde sai nem por onde entra, e raramente ou de um modo muito vago sente em seu corpo, fisicamente, o claro instinto que dirige o cavalo à água quando tem sede, para não dizer da gula que faz a andorinha retornar ao ninho do verão anterior. Se vê com frequência em situações imprevistas pelas quais quase nunca passa o animal, obrigado a encontrar o caminho por entre circunstâncias que jamais lhe ocorreram e que, portanto, não conhece e nem poderia conhecer.

Em vez disso, o animal em crescimento logo se encontra com o assobio que o obriga a parar. Já desde muito cedo lhe fica pendurado, rígido, o escudo definitivo de sua espécie, o nariz que no animal jovem lembra ainda, às vezes, o rosto da criança. Triunfa a forma de centenas de milhares de anos e a cortina cai, rápida e de repente, sobre a cena das possibilidades do devir. Nos animais se repete, necessariamente, o molde de fábrica testado de seu corpo e de sua vida; de modo que eles sejam tal como são e, ao mesmo tempo, estejam ligados entre si.

Os homens só de um modo aproximado podem tomar parte nesta ligação, e o fazem como uma dúzia de mercadorias correntes [übliche Dutzendware]; o fizeram de outro modo, um modo mais fecundo e com um selo mais original e vigoroso, em seu estado anterior de camponeses. Porém, uma dúzia de mercadorias [Dutzendware] também é um produto histórico, e o que antes cabia à média, já não cabe hoje, pois o uniforme está sujeito, pelo menos, às modas. É bom que não nasçamos como algo já terminado e definitivo, não só enquanto crianças, mas também enquanto espécie. Porém, também é duro nos vermos imersos em um processo que avança lentamente por causa de novos impostores que tratam incessantemente de nos deter. Há pelo menos um século que a sociedade socialista é, na prática, possível; e, no entanto, quantos ainda, inclusive pessoas cultas, não compreendem sequer o ABC desta sociedade. O homem é, com efeito, o animal que recorre duas vezes ao mesmo caminho, porém não só por astúcia; mas também de maneira obstinada e criminalmente insensata. Se não fosse assim, toda a vida exterior se desenvolveria com tanta facilidade e tão pacificamente como, no melhor dos casos, se desenvolve hoje entre amigos.

2. Tudo o que é, segue construído em torno do não, e esse não nos deixa a nossa própria fome. Não há ainda nenhum alimento para apagar e satisfazer inteiramente essa falta; e se o há, o benefício que se tira dele se transforma, por sua vez, em sofrimento. Toda a história anterior é, na realidade, pré-história humana, quer dizer, uma história que não se faz ainda conscientemente. Mostra um autoestranhamento [Selbstentfremdung] humano sob diversas formas e com diversas intensidades. É presa ainda, em grande parte, ao que Hegel chama “natureza”, no sentido de ser fora de si, em que as potências produzidas pelos homens, mas que eles não consideram e nem compreendem como um produto seu, se destacam e reificam. Isso faz com que se pareçam um destino incontrolável e que o sejam de verdade, em um reino sem plano. A chamada lógica férrea dos acontecimentos se desenvolve às costas dos indivíduos que atuam e de sua consciência, o que é o mesmo que dizer sem que a luz da lógica os ilumine. Como uma necessidade [Notwendigkeit] totalmente externa, cega e, portanto, como algo contingente sem a menor mediação ainda com o sujeito humano, como um terremoto ou um incêndio na natureza, independente do homem.

Talvez todos os atos humanos – se forem medidos por algo que dê satisfação plena, que preencha de verdade – sejam uma obra puramente fragmentária, e talvez a sua realização plena não pertença propriamente à história e seja o remate ou término dela; eis a concepção religiosa. Porém, com o que a história acima revela, nos encontramos em uma proporção desnecessária nessa obra fragmentária, inclusive para a Terra, na miséria da imensa maioria em condições de produção cujo caráter provisório, finito, se manifesta no fato de que se convertam continuamente em uma camisa de força. Assim, tanto os sujeitos humanos, como os fatores produtivos formados a base deles ou desencadeados por eles, entram em novos e novos conflitos com as objetividades da existência que têm diante de si.

No mundo feito pelo homem, a própria dialética é uma relação sujeito-objeto, e não outra coisa: uma subjetividade que trabalha e que sempre excede e se esforça por romper a objetivação e a objetividade que a ela se apresenta. No fim das contas, essa subjetividade é sempre o sujeito carente [bedürftige Subjekt] que se encontra a si mesmo e a seu trabalho objetivado de maneira inadequada; é o animador das contradições que surgem na história, o motor intensivo que sob os efeitos do caráter inadequado das formas de existência alcançadas cada vez em seu próprio nível, se põe em marcha e ativa de maneira revolucionária a contradição que está na coisa mesma [Sache selbst] e que consiste na inadequação entre o conteúdo subjetivo e a totalidade. Já assinalamos[ii] que se a carência insatisfeita [unerfüllte Bedürfnis] é o impulso [Antrieb] e o motor do movimento dialético da matéria, é a totalidade do todo não atualmente existente a que – sobre a base do conteúdo em si ainda não presente – constitui para esse movimento o fim que lhe dá coesão. Omnia sub luna caduca, tudo sob a Lua é caduco (e sobre a Lua também); no entanto, essa caducidade, essa deficiência e finitude, pressupõe os irrenunciáveis afãs de um sujeito, pressupõe a existência no universo de uma possibilidade real ainda não aniquilada, para que se possa ver por toda a parte barreiras transponíveis. Jamais se chegou a um ponto em que a sociedade não pudesse seguir adiante, em que a história fosse um esforço vão. E muito menos se avista ponto algum, a não ser nas antecipações da direção, onde a totalidade do genuíno e absoluto pudesse, sequer por um momento, reclinar a cabeça.

Seria o mesmo que a verdade, porém não abstrata; não é a verdade inautêntica ou a mera verdade empírica, como a verdade estatística do que já se tornou; mas também não é a verdade que se faz passar por panlogicista e que busca e encontra sua paz com o mundo no fato de presentear o que chegou a ser como o conseguido. E a verdade dialética não pode ser tampouco, sobretudo, a verdade da apologética, apesar de Hegel, mas também precisamente, e não em pequena parte, por causa de Hegel. A verdade no sentido indicado do genuíno não tem nada que ver com nenhum resplendor celestial, que já estaria escondido em sua casa; também essa hipóstase mitológica trata de fazer passar o sucesso como algo já tornado, já existente ainda que seja em um lugar imaginário.

O problema da verdade que a filosofia levanta não pode ser sequer compreendido pela mitologia, quanto menos resolvido. A isso quer se referir Hegel quando diz, com inteira razão: “A filosofia deve guardar-se de querer ser edificante”[iii]. Mais fatal ainda para a filosofia que a descrença [Unglauben] do empirismo estático-terreno [irdisch-statischen] é a superstição [Aberglaube] do que poderíamos chamar de empirismo estático-supraterreno [überirdisch-statischen], que para ela equivale à demissão e à morte.

Porém, o sentido muda totalmente quando, em vez de entregar-se a diversas idolatrias ou à adoração de um algo absoluto existente (já de fato denominada matéria mecânica ou hipóstase divina), a esperança busca na história sua verdade, como seu mais poderoso “conhece-te a ti mesmo” ou sua face descoberta. Como a verdade em devir, ainda inexistente e que talvez não chegue a existir jamais, do genuíno e absoluto; como a totalidade utópica da meta. Esta verdade não tem que guardar-se, de modo algum, de ser edificante; ao contrário, o destino da verdade, nesse sentido preciso, consiste precisamente em iluminar intensivamente os espíritos no que há de ser cumprido de um modo intensivo.

Hegel não só renova, como temos visto em várias ocasiões, a velha determinação imutável da verdade como coincidência do conhecimento com seu objeto, como chega ao ponto de convertê-la em uma identificação objetiva segundo a qual a verdade é a coincidência do objeto consigo mesmo, de tal modo que a realidade seja adequada a seu conceito, à razão. E não cabe dúvidas de que com essa determinação, por mais que permaneça aderida a forma de existência acusada em cada caso ou enteléquia, influi aquele caráter volitivo e, portanto, predicativo de valor, da verdade no segundo sentido. Influi nela, para dizê-lo em outros termos, a ideia do bem.

O falso vem a significar, assim, o mal, o inadequado. Nesse sentido, um Estado mal é um Estado que não responde à verdade, e o mal, o falso em geral, consiste na contradição existente entre a determinação, o conceito e a existência de um objeto.

E, mais adiante, com o pathos cheio de confiança naquele genuíno a que a dialética serve de veículo:

Todas as coisas finitas entranham uma certa falsidade, enquanto têm um conceito e uma existência inadequada a seu conceito. Por isso, têm necessariamente que perecer, e nele se manifesta a inadequação entre seu conceito e sua existência.

Não é preciso muito esforço para chegar a esse pessimismo que é, ao mesmo tempo, um otimismo militante, consistindo em pensar que a verdade no segundo sentido, no sentido do cumprimento “conceitual” positivo, ainda necessita de uma quantidade extraordinariamente grande de história para que figure como aparecendo, com tênue resplendor, nela. Até aqui o racional, demasiadamente estreito, tornou-se, a cada vez, novamente irracional; a essência [Wesen], ainda relativamente alcançada, mas precisando ser mediada com o fundamento, se transformou sempre de novo em desordem [Unwesen]. Uma desordem que é preciso remediar e que, inclusive, para que o homem efetivamente se realize e alcance a profundidade total, exige sempre, de antemão, a negação de sua negação. A essa verdade da realidade da plena totalidade, nós já anteriormente chamamos enteléquia do todo. Instâncias e gradações suas nós temos de sobra, porém, posto que o processo está em marcha, não se pode jamais alcançá-la.

3. Em consequência, tudo o que é, encontra-se construído ainda em torno do não, o qual certamente não se mantêm em si mesmo. Posto que nossa causa não foi bem-sucedida, ela ainda não se move mais que em seu próprio passado, arrastando sempre novas contradições. Os homens não são escravos, mas também não são donos; não são servos, mas também não são senhores feudais; não são proletários, mas, certamente, também não são capitalistas. Não se vê claramente o que são dentro da divisão do trabalho das sociedades classistas que até hoje existiram. Os mutáveis tipos orientadores da vida verdadeira, as grandes obras da cultura se encontram, em sua maioria, mescladas com a ideologia da sociedade classista de cada época.

E o mesmo que ocorre entre os homens, ocorre em todo o mundo que nos rodeia e com o qual nos encontramos em uma relação de intercambio: a causa da totalidade não foi destacada ainda; de outro modo, não existiria um processo, nem mesmo na natureza, nem existiria a dialética desse processo. Na insatisfação, fonte de inquietude e movimento, o conteúdo final do todo se encontra, negativamente, como privação de si, como não possessão de si; na esperança, esse conteúdo está representado, positivamente, como atração a si, como possibilidade de possuir a si mesmo. E a este elemento ativo de contradição, para que possa se concretizar, corresponde justamente, do lado objetivo, a contradição que se desenvolve na coisa mesma [Sache selbst]; porém sempre, de novo, como uma contradição em que a essência não está ainda presente no fenômeno e, por conseguinte, em que subsiste ainda na realidade efetiva a irrealidade, a imperfeição e a falsidade.

Certamente – e é isso que determina, de um modo geral, o incômodo da dialética[iv] – do lado objetivo há algo mais que esta pobre e simples distância entre o fenômeno e a riqueza total da essência. Se não, não seria necessário, junto à tendência favorável, este esforço por decifrar o mundo contra a resistência do material. No negativo da dialética objetiva (enfermidade, crise, ameaça de regressão e barbárie) há também, sem dúvida alguma, uma relação de aniquilamento, não somente do não dentro de uma propulsão ativa, mas também do nada como negação que só se contenta em fazer desaparecer, e que, por trás de si, automaticamente, ainda não está, de modo algum, a negação da negação. Existe ali uma relação que, por trás de si mesma, sem intervenção da contradição ativa do sujeito, conduz, mais que ao desenvolvimento da totalidade, ao desenvolvimento espontâneo de algo vão. Mais ainda: um contra-ataque ativo do sujeito contra o aniquilamento pode ser indispensável para que o aniquilamento mesmo possa ser utilizado para aniquilar seus próprios valores, e assim poder abrir dialeticamente, à princípio, uma via livre para uma nova vida. Assim, em nenhum caso poderia haver automatismo da dialética objetiva em marcha até o bem, com a demasiadamente cômoda consigna de “através da noite, até o dia”; só uma participação e – em épocas catastróficas – um contra-ataque do fator subjetivo, colocam totalmente a negatividade, na dialética objetiva, à serviço do possível triunfo. Posto que a negatividade, em si mesma – como na Guerra do Peloponeso, na Guerra dos Trinta Anos, em todas as puras e simples decadências – não acarreta historicamente nenhum fruto, não pode, pois, de modo algum, desenvolver, a partir somente de sua própria objetividade, a negação da negação.

Eis aqui precisamente o que – à medida que a pré-história da humanidade parece chegar a seu fim – nos chama a uma ação concertada no tempo desejado. Não a um putsch, nem a uma espontaneidade abstrata, nem a nada semelhante, mas a uma liberação a respeito daquilo que cumpriu o seu prazo. Uma vez cumprido o prazo, pois, digamos que, inclusive na dialética objetiva, não se encontra somente o nada, mas, essencialmente, se reencontra o problema real da totalidade, e o prazo só é cumprido à medida que os homens embarquem em navios e naveguem de acordo com a deriva da tendência para voltar à própria terra. Porém, finalmente, esse regresso é – à medida da libertação do não por conveniência e da vitória sobre o nada no mundo e sobre a resistência deste mundo –, justamente, o ato pelo qual o todo deixa de reduzir-se a algo vão. É, novamente, uma utopia na utopia, porém faz sentir seus efeitos tanto na insatisfação (rechaço da servidão) como na esperança (antecipação da liberdade em direção ao ser-para-si).

Hegel, que tão longe queria estar daquele descontentamento, bem como de toda esperança ao descoberto, assinalava, no entanto, a seu modo – o que quer dizer de um modo idealista –, a verdade da esperança e, ao mesmo tempo, a da liberdade; quer dizer, a verdade na qual “o sujeito não vê, naquilo com o que se enfrenta, nada estranho, nem um limite ou uma barreira, mas encontra somente a si mesmo”. Ali onde a dialética hegeliana diz: “O ser alcançou o significado da verdade”, de tal modo que do absoluto já não pende nada de objetividade, mas também nada de simples subjetividade ou ideal, se encontra o conteúdo da esperança.

Era necessário, no entanto, que viesse a dialética materialista para que se conhecesse e impulsionasse este conteúdo no processo real, superando assim ao Hegel idealista, que não faz mais que desdobrar o que por si só já existe no espaço e no tempo. Eis aqui o limite da dialética idealista: é o limite da simples contemplação, referida per se ipsum ao passado e a seus horizontes, a uma essência já revelada nos fenômenos que chegaram a ser. Somente em uma dialética que não se desenvolve na cabeça e que não transpõe seus movimentos puramente idealistas a algo objetivamente estático, assume o descontentamento-esperança-totalidade em sua função de conteúdo-meta. Somente nessa dialética, a do acontecer no contemplado, não fechada sobre a história contemplada, o saber em si é fator de transformação. O saber não está simplesmente em se referir a um passado suscetível de ser conhecido, mas a um devir efetivo em formação. S ainda não é P, o proletariado ainda não foi suprassumido [aufgehoben], a natureza ainda não é a nossa casa [Heimat], o verdadeiro ainda não é o predicado da realidade efetiva: esse nondum em processo, já parcialmente alcançado nos primórdios de sua perspectiva de constituição, faz amadurecer ao mesmo tempo a fé no sentido [Sinnglauben] do verdadeiro esforço humano e de seu otimismo militante. Precisamente por isso, o agente dialético do não que empurra através de todas as interrupções e de todas as “reificações” à pregação e manifestação de seu próprio conteúdo enigmático, de seu conteúdo-meta, não é nada mais nem nada menos que esperança. E, como esperança contrastada, como docta spes, é o saber criticamente antecipador que se encontra mediado e combinado com o processo objetivo. S ainda não é P: esse princípio dialético significa, frente ao inadequadamente determinado (ao devir obstaculizante), tanto quanto ceterum censeo Carthaginem esse delendam. E frente a uma determinabilidade ainda não apagada (o novo pelo conteúdo), esse princípio significa: quidquid latet apparebit.

4. Os homens não são seres definitivos, acabados; portanto, também não é o seu passado. Este segue trabalhando conosco, sob outros signos, no impulso [Trieb] de seus problemas, na experimentação de suas soluções; todos nós navegamos no mesmo barco. Os mortos reaparecem transformados: aqueles cujas façanhas eram demasiadamente audazes para serem levadas a bom termo (como Thomas Münzer); aqueles cuja obra era demasiadamente vasta para coincidir com o local de seu tempo (como Ésquilo, Dante, Shakespeare, Bach, Goethe). O descobrimento do futuro no passado é filosofia da história e, portanto, também é história da filosofia. Por conseguinte, quando nos despedimos de Hegel, não nos despedimos na realidade; do mesmo modo que ao encontrarmos com ele pela primeira vez, quando esse encontro está pegando fogo, não o encontramos, realmente, pela primeira vez.

Pela potência e contínuo amadurecimento de sua obra, Hegel está sempre em reencontro contínuo, fecundo e feliz, digno de respeito e gratidão dos homens. Os tempos de transição, como os nossos, aguçam nossa sensibilidade para o gênio da dialética, para o grande mestre. Precisamente porque, em sua filosofia, não vemos voar a Coruja de Minerva sob a luz do crepúsculo, entre as ruínas da contemplação, mas vemos apontar, nela, a aurora rósea de um novo dia, que é menos estranha para Minerva, a deusa da luz.

Tempos de transição: tais são, e de um modo muito marcante, os que hoje vivemos, no sentido do avanço, carregado de fermentações e ameaças, para uma forma de existência com traços mais humanos. É oportuno citar aqui as palavras do mestre da dialética, palavras escritas por Hegel em 1816, em carta a seu amigo Niethammer, sobre as quais não voa a Coruja, pois as ilumina por inteiro a luz do dia:

Estou seguro de que o espírito do mundo deu a época a ordem de comando para avançar; esta ordem de comando está se cumprindo; este ente avança como uma falange blindada e em fileiras cerradas, de um modo irrefreável e com tão imperceptível movimento como o do Sol, atravessando o grosso e o fino; inumeráveis tropas rápidas cobrem os flancos a favor e contra a dele, a maioria delas não sabem nem remotamente de que se trata, só sentem que lhes caem os golpes sobre a cabeça, como se chovessem do céu.  O partido mais seguro é, sem dúvidas, o de não perder de vistas este gigante que avança.

O regulamento de exercícios militares do século XVIII, do qual estão tomados os nomes e os movimentos desse símile guerreiro, desapareceu da memória, porém a imagem do gigante que avança não é hoje, mutatis mutandis, de todo ininteligível.

O racional pode chegar a ser real, o real pode converter-se em racional; tudo depende da fenomenologia, quer dizer, da história dos fenômenos da verdadeira ação. Essa é uma ação do verdadeiro ou o término de sua pré-história que ainda dura; é a transformação do mundo segundo sua tendência material e dialética; é a concordância da teoria-práxis humana com uma realidade coincidente consigo mesma. A contemplação passiva não tem aqui lugar algum; ao contrário, o saber, que teoricamente não tem fronteiras, deve também na prática acreditar-se na libertação socialista das fronteiras, fazendo saltar a servidão e dominando a necessidade [Notwendigkeit]. Aqui, sobretudo, o marxismo se distingue qualitativamente de toda filosofia anterior, da hegeliana também, portanto, que é a que lhe é mais próxima. Pois, com um salto para o novo, que a história não havia conhecido até então, começa com Marx – continuando e, ao mesmo tempo, superando a Hegel – a transformação da filosofia em filosofia da transformação. A filosofia já não será tal se não for dialético-materialista; igualmente, é preciso deixar assentado, para hoje e para todo sempre, que o materialismo dialético não será tal se não for filosófico, quer dizer, se não avança por grandes horizontes abertos. Esse avanço é um trabalho teórico e prático contra o estranhamento [Entfremdung], ou seja, a favor da alienação da alienação [Entäusserung der Entäusserung], pela exteriorização do que é caseiro [Äusserung des Heimatlichen], onde o núcleo ou o essencial do homem e do mundo é capaz de começar a se manifestar. E precisamente neste tempo, nesta Terra, no reino enfim realizável de nossos conteúdos de liberdade. A isso conduz também, inconscientemente, a pré-história; porém a história conscientemente instaurada possui seu tema determinante no conteúdo total do reino da liberdade, pensado sem cessar e antecipado de forma mediada. Já algumas realizações parciais do plano, algumas figurações realístico-simbólicas foram até agora dando a conhecer este verdadeiro “para onde” e “para quê”. É difícil fazer o simples[v], o ser-para-si cujos caminhos devem ser duramente conquistados, cujas excelências exigem valentia. Quanto mais urgente é o domínio dos meios que levam a essa meta, mais clara ela é como objetivação dos sujeitos e como mediação subjetiva dos objetos. Essa meta da existência humanizada, sempre fechada no sonho das aspirações do homem, estava sempre utopicamente distante de sua existência real. O movimento real pela sua realidade começou, agora enfim, conscientemente, contra a alienação de todos os homens e das coisas, a favor de que o ser-próprio chegue a si. Ao libertar a sociedade de todos os condicionamentos existenciais que levam o próprio sinal do trabalho estranhado [entfremdetem Arbeit], o socialismo à libertará de todo estranhamento [Entfremdung] e criará assim o fundamento para que toda a Terra seja a pátria da humanização. Essa é a antiquíssima intenção pela felicidade: que o interior se faça exterior, que o exterior chegue a ser o interior; intenção que não embeleza e fecha, como em Hegel, o mundo existente, mas que está aliada com as propriedades da realidade ainda não existente, que são portadoras de futuro.

Notas:

[i] Na primeira metade da década de quarenta, Ernst Bloch escreveu este livro em seu exílio no México. Naquele momento, sua edição e distribuição em alemão era difícil e o autor decidiu encomendar uma tradução espanhola a Wenceslao Roces, publicando-o em 1949. Nesse mesmo ano, já em Leipzig, Bloch preparou a primeira edição em língua alemã que viria a ser publicada em 1951, com numerosas adições e modificações, sob o título Subjekt-Objekt. Erläuterungen zu Hegel. Os trechos em negrito, no texto que se segue, são referentes a tais adições; detalhe da edição mexicana que optei por manter. Pontualmente, em trechos de difícil tradução, recorri à referida versão alemã do livro, mantendo o termo original entre colchetes. Com menor frequência, recorri à versão em inglês do texto isolado (Dialectics and Hope, feita por Mark Ritter e publicado pela New German Critique), tradução que considero ganhar em clareza e objetividade o que perde na riqueza narrativa que é própria ao estilo blochiano. (N. T.)

[ii] Bloch refere-se a um trecho de um capítulo presente no mesmo livro, intitulado O método dialético, que aqui reproduzo: “Em Hegel a totalidade se encontra, inclusive, determinada, em última instância, como a rigidez mitológica do Pai, do Filho e do Espírito Santo, quer dizer, de tal modo que o todo que reluz em todas as partes já figura em cada catecismo. Pelo qual, tampouco como totalidade, não só como espírito puro, necessita passar por um processo, a não ser por luxo ou vaidade de algo que reflete a si mesmo em milhões de facetas. Não obstante, Hegel enfatizou a ideia do todo presente em todas as partes de um modo mais brilhante e incessante que qualquer outro filósofo. Em vez desse preguiçoso pluralismo, desmedido e sem meta, em que a razão se declara em falência e a prática já não sabe, em absoluto, o que quer para além do dia seguinte e do interesse imediato, nessa síntese do omnia ubique reina uma indiscutível virilidade. O omnia ubique, enquanto todo, não é o existente em sua integridade, e menos ainda a trindade em um super-espírito estabelecido como algo real. Porém, é o um necessário [Eine Notwendige], ou, para dizê-lo com uma expressão antiquada, o bem supremo que silencia definitivamente a inquietude da carência [Bedürfnisses] e da aspiração, e ao que não se aspiraria se já existisse. Essa classe de totalidade, a do todo inexistente, não a do todo que existe, é a meta coordenadora do movimento dialético, do mesmo modo que a carência [Bedürfnis] é seu impulso [Antrieb] e motor. Somente um elemento intencional, tendencioso, desse estado final, mas não menos, em todo caso, é o que aparece implicado em todo movimento e em toda sua forma. Porém, isso cria afinidades, principalmente afinidades de caráter antitético, ao longo da história, e explica, inclusive, certos detalhes das ‘correspondências’ de Hegel, que não são, de modo algum, puramente idealistas. Não justifica o pedantismo de suas repetições (nascidas do ininterrupto panlogicismo), mas sim a relativa unidade que mantém a coesão por meio de todas as transformações e variantes.”. (N. T.)

[iii] Como não raras vezes Bloch cita sem indicar precisamente o texto de referência, optei por traduzir livremente esta e as demais citações diretas. (N. T.)

[iv] Mais uma vez, Bloch refere-se a um trecho do capítulo O método dialético, que aqui reproduzo: “A dialética, portanto, não é uma espécie de matraca do entendimento [Geklapper des Verstands], que leva, no exterior, a enredar todos os conceitos, a fazer do branco negro, do negro branco, e por aí em diante. Nada disso; enquanto dialética objetiva, tal como Hegel a entende, ela não tem outro interesse que o de expor e colocar em prática a verdade em marcha. O mundo se move realmente na forma de antagonismos e, além disso, nesse fluir constante das coisas que, como disse Heráclito, não nos permite nos banhar duas vezes no mesmo rio. A deturpação ou a fraude sofística não são, de modo algum, a dialética objetiva, mas, precisamente, a negação desta. Nessa fraude sofística incorrem aqueles que pretendem nos fazer crer na miragem de uma harmonia, de uma “comunidade nacional” prematura ou totalmente falsa, assim como também os que pregam a crença, tipicamente anglo-saxã, de que a verdade deve ser buscada no equilíbrio da medida certa. Incorrem nela aqueles que tratam de impor essas transações inertes que corrompem o caráter e na quais se embota a força motriz das contradições: em uma palavra, aqueles que se deixam levar por essa tepidez que Jesus Cristo, como se sabe, condenava e considerava digna de ser cuspida. Desse modo, na dialética, contra o que é cômodo, se faz presente ainda outro traço. Isso se mostra no modo como Hegel não deixa que o negativo, pelo menos o negativo em geral, seja aquilo que move tudo em exclusividade. Certo, levanta a negação, ou seja, o antigo nada aniquilador, totalmente entre tese e antítese, sem dúvida em seu centro. De modo que o Espírito, aquele que sempre nega, realmente não pode dar nem um passo sem servir mais ou menos ao progresso, a criação do bom e do melhor. No entanto, Hegel apresenta já aqui certas diferenças ou, melhor dizendo, nota também o negativo inválido. Precisamente na história humana, nota aniquilações de caráter simplesmente destrutivo, sem função dialética visível. Como tais, nomeia Hegel a Guerra do Peloponeso, a Guerra dos Trinta Anos e outros fatos que assolaram sem proveito, esgotaram sem dar fruto. Em uma passagem notável de sua Estética, Hegel, inclusive, se pronuncia em princípio contra o meramente negativo enquanto tal. Quer dizer, contra Mefistófeles em si mesmo, contra a contradição meramente vazia, infrutífera enquanto conteúdo.”. (N. T.)

[v] Definição de comunismo segundo Bertolt Brecht: “é o simples difícil de fazer”.

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