Racismo sistêmico nos USA e em Israel: analogias e diferenças

Por Nahla Abdo, via The Bullet, traduzido por João Pedro Noronha Ritter

A analogia mais relevante entre os Estados Unidos e Israel reside na razão principal para a força do seu estabelecimento como estados coloniais. O imperialismo, que é a força motriz do projeto de ocupação colonial, é inerentemente racista e racializante. Com o estabelecimento do Estado, o capital racializado torna-se estrutural e institucional; torna-se sistêmico. As diferenças entre os dois regimes também estão aí, com base no fato de que cada caso é historicamente específico.

Sem entrar em detalhes, é fundamental destacar que o próprio estabelecimento do estado colonizador, sejam os Estados Unidos, o Canadá ou Israel, para citar apenas alguns, exige a eliminação dos povos indígenas. No caso dos Estados Unidos e do Canadá, a ocupação colonial começou com a remoção dos povos indígenas (com histórias bastante distintas entre os dois com o longo período de dependência com a Europa das Primeiras Nações no Norte e Oeste no Canadá) – um processo que envolveu genocídio/destruição e conquista de terras indígenas por colonos europeus brancos.

Neste processo, as vastas áreas roubadas de seus proprietários indígenas necessitaram de grande quantidade de força de trabalho e mão-de-obra barata para operá-la. Aqui reside a escravidão dos povos africanos e seu uso como trabalho escravo. Pois, enquanto a eliminação e o genocídio possibilitaram o estabelecimento do estado colonial, a escravidão era necessária para gerar, reproduzir e garantir o crescimento do imperialismo dos EUA. Os EUA trouxeram africanos como escravos e os acorrentaram como bens móveis. No processo, muitos foram mortos e o restante vendido como cativos. Sua racialização continuou por centenas de anos até os dias de hoje.

Ocupação Colonial

Racializar afro-americanos e outras etnias é um processo contínuo, independentemente das mudanças em seu status legal. As leis de Jim Crow e a 13ª Emenda (1864) à Constituição dos Estados Unidos, apesar da sua abolição legal, deu continuidade à racialização colonial entre nós até hoje. A escravidão dos povos negros foi transferida da esfera pública para a da prisão. O complexo industrial da prisão é superpovoado por negros e não-brancos. Em outras palavras, o Estado pode mudar ou abolir as leis, mas as ramificações e o espírito deste último permanecem. A natureza sistêmica da divisão de raças e da racialização provavelmente não desaparecerá com as mudanças no sistema judicial. Outras leis, embora encoberto por uma lógica obscura, por exemplo, a Lei dos Três Strikes (1994) foi adicionada recentemente.  Este termo, derivado do beisebol americano, é fundamentalmente racista em sua determinação. A racialização penetra profundamente na mentalidade da supremacia branca do colonizador. O colonizador pode querer se ver e ser visto pelos outros como ‘democrático’, ‘livre’, etc… Ainda assim, ele ignora que sua criação racializada estará sempre lá enquanto ele existir, ou seja, o sistema colonial permanecerá vivo. Racialização capitalista e ocupação colonial, como Achille Mbembe, um defensor dos direitos palestinos, diz “é como um vírus, ele sofre mutação e se espalha“.

Eu argumento que o sionismo é um desses vírus com sua própria história e mutações particulares. É diferente dos projetos de ocupação colonial europeus brancos, não porque não seja de origem branca ou europeia, nem porque não seja colonizador. A ocupação colonial sionista é diferente porque usa uma ideologia particular, a saber, a conversão do judaísmo e da etnicidade judaica em um étnico-nacionalismo judeu comum no final do século XIX, como justificativa política e escudo para seu projeto colonial.

Ninguém pode negar as calamidades do Holocausto perpetradas pelo regime nazista na Alemanha ou da longa história do anti-semitismo europeu. No entanto, isso de forma alguma deve levar ao uso do Holocausto como uma justificativa para eliminar e fazer desaparecer o povo palestino; isso não deve justificar o uso sionista da força bruta para expulsar à força cerca de 80% do povo palestino de suas casas, terras e espaço histórico e cultural. O projeto colonial sionista, desde o início, teve como objetivo apagar os palestinos originários e substituí-los por judeus de todo o mundo. Este projeto visa tornar o judaísmo semelhante ao sionismo e semelhante à ‘necessidade de um Estado judeu na Palestina’, (e as reivindicações até hoje de Israel como um Estado judaico étnico-nacionalista). Este último constituiu a base para a Declaração de Balfour de 1917, onde o governo colonial britânico deu ao movimento sionista o direito de estabelecer um lar judeu na Palestina. Esse projeto se desenvolveu e se transformou em um Estado que, desde 1948, queria se ver um Estado judeu. Desde o seu estabelecimento, Israel pretendia eliminar os palestinos originários e se transformar em um Estado judeu, um ato que pelo menos legalmente, foi realizado recentemente com a decretação da Lei do Estado-nação judeu.

O projeto sionista usou todos os passos acima em sua tentativa de igualar o sionismo ao judaísmo. Confundir sionismo com judaísmo tem ramificações de longo alcance. Contribui para a legitimação do sionismo e de Israel como um estado étnico-nacionalista e, por sua vez, criminaliza o anti-sionismo e silencia as críticas à ocupação colonial de Israel.

Como mencionado anteriormente, o espírito das leis Jim Crow nos Estados Unidos, com sua realidade invertida de “separado, mas igual”, que significa separado e oprimido, não desapareceu com a abolição desta lei. Como Michelle Alexander nos lembra, ele permaneceu durante o ‘Complexo Industrial Prisional’, com acesso desigual ao voto e as desigualdades econômicas estruturais.

Israel implementou uma realidade invertida semelhante de políticas e práticas racializadas. Os pouquíssimos palestinos que permaneceram no país após a Nakba de 1948 foram colocados sob regime militar até 1966. Era proibido deixar sua vila ou cidade sem autorização do governador militar israelense. Esta população, referida pelos israelenses como o setor árabe, permanece principalmente excluída da economia dominante israelense. É uma população subdesenvolvida, subfinanciada, com altas taxas de pobreza, desemprego, más condições de saúde, acesso precário à educação e serviços sociais inadequados. Além disso, desde 1967, Israel emitiu 65 leis racistas discriminando cidadãos palestinos, e também palestinos nos Territórios Palestinos Ocupados. Desde então, centenas de milhares de palestinos foram detidos por motivos políticos.

Encarceramento em massa

O encarceramento em massa de não-brancos e colonizados é um ponto essencial de comparação entre os dois estados. Em ambos os casos, o próprio encarceramento é um ato político a serviço da segurança do Estado. Precisamos lembrar que ambos os Estados aqui são Estados policiais e militarizados. Ambos podem invadir, bombardear países e matar pessoas, simplesmente porque podem, enquanto o mundo assiste. Embora externamente ambos os Estados tenham se tornado párias, internamente esses estados usaram sua polícia e militares contra populações racializadas e colonizadas.

Nos Estados Unidos, a privatização das prisões transformou o cárcere em uma fonte valiosa de mais-valia e lucro. A população encarcerada em massa, desproporcionalmente negra e não-branca, tem sido usada como trabalho prisional, reproduzindo e aumentando a acumulação de capital nos EUA. O encarceramento nas prisões do Canadá também é desproporcionalmente composto de indígenas e negros, embora o trabalho na prisão não seja tão extenso quanto nos Estados Unidos. Por outro lado, em Israel, o encarceramento é mais político do que econômico, servindo para eliminação/desaparecimento, um objetivo particular da ocupação colonial de Israel. Prisioneiros políticos palestinos são sequestrados dos Territórios ocupados e trazidos pelos militares israelenses para as prisões israelenses como mais um meio de opressão, controle e eliminação.

A desigualdade racial na morte de palestinos; a discrepância na pobreza; seu acesso a serviços sociais, educação e saúde em toda a Palestina-Israel são comparáveis, senão análogos, a disparidades características da divisão racial nos Estados Unidos e até mesmo nos regimes coloniais canadenses. Ainda assim, essa disparidade racial é sistêmica aos sistemas coloniais desses países.

O apartheid na África do Sul pode ter sido historicamente específico. Ainda assim, seu principal motor e contexto estrutural, ou seja, o regime colonial das metrópoles, reproduzem o apartheids de diferentes formas onde quer que esteja seu controle. O chamado sistema “separado e igual” nos Estados Unidos tinha sua própria forma de apartheid, em que os negros eram excluídos econômico, política, social e legalmente da América branca dominante, embora nunca formalizada em regime político geral como na África do Sul. O apartheid de Israel é uma outra forma de exclusão e opressão. No caso israelense, os princípios do apartheid não surgiram com o ‘Muro da Separação’, nem com a ocupação dos territórios palestinos em 1967. O apartheid, como mencionado anteriormente, começou com o próprio estabelecimento do estado colonial e se tornou mais pronunciado após 1967. A maioria de nós está consciente da extensão do estrangulamento dos palestinos nos territórios ocupados, especialmente na Faixa de Gaza sitiada por ar, terra e mar. Essa situação levou os especialistas em apartheid, notadamente Nelson Mandela e o arcebispo Desmond Tutu, a declarar o apartheid israelense como um tipo muito pior do que o da África do Sul. Pois, enquanto o apartheid da África do Sul seguia a lógica da inclusão e exploração, Israel, que sempre buscou o desaparecimento dos palestinos, utilizou a lógica da exclusão e opressão e empregou a lógica da inclusão/exploração apenas quando necessário. Um exemplo aqui são os movimentos consistentes de imigração/assentamento de Israel desde seu estabelecimento e as ondas constantes de colonos judeus (e não judeus) recrutados para ocupar a Palestina.

Desde o início do Estado israelense, os colonos judeus europeus brancos perceberam que não poderiam formar a nação, construir o exército, a economia e trabalhar a terra por conta própria. Eles também perceberam que não poderiam eliminar os palestinos sem substituí-los por imigrantes para colonizar a terra e fornecer força de trabalho barata. Conseqüentemente, as políticas de Israel nas décadas de 1950 e 1960 importaram centenas de milhares de judeus árabes-Mizrahi. Em Mulheres em Israel: Raça, Gênero e Cidadania, destaco o tratamento duro e racista dispensado a essa comunidade e descrevo as terríveis condições de vida que enfrentaram nas primeiras décadas.

Uma análise mais abrangente do racismo israelense e da racialização de judeus afro-árabes/mizrahi, embora necessária, infelizmente não está dentro do escopo deste artigo. Judeus Mizrahi, é importante notar, embora constituíssem mais de 60 por cento da população israelense até o final dos anos 1980 e início de 1990, quando o estado importou cerca de um milhão de “judeus russos”. Basta dizer aqui que o sionismo empregou o racismo e a racialização contra a população judaica que afirmava proteger. O sionismo, em outras palavras, não era diferente de outras colonizações perpetradas por europeus brancos.

O sionismo e o Estado israelense estão sendo expostos hoje por sua natureza fundamentalmente racista e racializante. A crítica ao sionismo tornou-se muito clara com o surgimento de movimentos anti-sionistas e grupos como a “Voz Judaica dos EUA pela Paz” e a organização irmã canadense, “Vozes Judaicas Independentes”, o “Rally Contra o Racismo global”, “Not in My Name” e aí por diante. A solidariedade global com Black Lives Matter também está atualmente dando crédito à solidariedade palestina.

Palestinos na Palestina histórica (ocupados em 1948 e 1967), para enfatizar, foram colonizados, racializados e oprimidos. Eles vivem sob o domínio colonial israelense. Além disso, a desigualdade racial característica da sociedade israelense caracteriza as condições de vida dos judeus não-brancos. Portanto, não é surpresa que nem todos os judeus da diáspora (brancos) apóiem o sionismo, e assim aprofundando cada vez mais as fraturas do apoio ao estado israelense e suas políticas de colonização e separação.

Solidariedade Global Contra o Racismo

Se é verdade que a ocupação colonial, a opressão, a racialização e o racismo são historicamente específicos, existem também traços universais que caracterizam o capitalismo racializado e o colonialismo das metrópoles. A especificidade histórica não significa singularidade; não deve obscurecer o potencial, a agência e a luta das pessoas. Estruturas de opressão, incluindo os poderes exploradores e opressores do Estado e do capital, trabalham em conjunto. Seu desmantelamento é possível e bem-sucedido quando combatido globalmente, e não apenas individualmente e localmente.

O sucesso da luta palestina pela igualdade e autodeterminação contra a ocupação dos colonos israelenses e contra o estado policial militar é possível quando travada como parte da luta global contra o racismo, a opressão e a ocupação colonial. A solidariedade entre os afro-americanos, na forma da Luta de Libertação Negra nos Estados Unidos (especificamente os Panteras Negras), e o movimento de libertação palestino nas décadas de 1960 e 1970, estão reverberando novamente hoje no levante global contra o racismo. É evidente na colaboração entre o Black Lives Matter, a solidariedade global com a campanha de ‘Boicote, Desinvestimento, Sanções’ (BDS) e seu reforço de alto escalão da África do Sul a Moçambique e ao Quênia, e também muitos movimentos sindicais e sociais no Canadá, para mencionar apenas alguns. O movimento histórico atual expresso na solidariedade global com Black Lives Matter representa uma chamada global real de resistência às forças globais de opressão existentes. Nós, palestinos, juntamos nossas vozes às dos povos indígenas e negros ao exigir justiça em todo mundo.

No Estado colonial militarizado de Israel, cada palestino vivo nos Territórios Palestinos Ocupados é um George Floyd em potencial. Como a morte de George Floyd despertou o mundo, esse despertar também deve ser expandido para incluir a necessidade de respirar dos palestinos. •

Nahla Abdo leciona no Departamento de Sociologia / Antropologia da Carleton University, Canadá.

Compartilhe:

Deixe um comentário