Primeiro ensaio sobre geomorfologia e o pensamento marxista

Jean Tricart, via La Pensée: revue du rationalismo moderne (1953, nº47), traduzido por Mario Matos

Publicamos abaixo o relatório apresentado por J. Tricart, professor de geografia na Faculdade de Letras de Estrasburgo, aos círculos de geógrafos marxistas de Estrasburgo e Paris (dedicado ao dirigente comunista francês Maurice Thorez) como contribuição ao anuário de estudos ideológicos do Partido Comunista Francês.


O aprimoramento do pensamento marxista como efeito da potencialização da luta de emancipação dos povos provoca o conflito dos intelectuais de vanguarda no campo das concepções burguesas. Nos países democráticos, essa luta tem por objetivo colocar a ciência ao serviço das massas, desenvolvendo os meios de produção que tornam possível a marcha radiante em direção a uma vida melhor. Nos países capitalistas, nossa tarefa consiste em desmascarar as insuficiências do pensamento burguês, sua inépcia de tomar consciência dos verdadeiros problemas e assim demonstrar a superioridade do pensamento marxista.

Não acreditamos que os dois aspectos dessa luta comum sejam opostos. Os países democráticos enfrentam, na sua luta pela edificação de uma nova sociedade, grandes dificuldades, que são expressão de uma parte do modo de pensar burguês que aí se encontra. É assim nas democracias populares, onde a libertação política é recente. De maneira geral, nelas a luta política está à frente da luta ideológica. As cartas de Stálin sobre linguística provam que esse fato se verifica até mesmo em certas vertentes da ciência soviética. A persistência de métodos do pensamento burguês é um entrave para seu redirecionamento ao serviço da sociedade democrática. O debate em biologia provou isso amplamente. Desmascarando as formas de pensamento burguês, os intelectuais dos países capitalistas também contribuem para a luta dos povos pela construção do socialismo. Eles ajudam a desconstruir o mito da “ciência pura”, cara aos ideólogos burgueses e refúgio de uma forma de pensamento limitado que se recusa à ação. Podemos dizer certamente que um critério próprio do predomínio do pensamento burguês num ramo da ciência é constituído por sua classificação entre as “ciências puras”.

I. – As limitações da geomorfologia burguesa

A geomorfologia está justamente nessa categoria das “ciências puras”. Nos países burgueses, ninguém recorre aos geomorfólogos a respeito de uma questão prática. Não parece que até o presente, nas democracias populares, os geomofólogos tenham ocupado um lugar comparável ao dos economistas e dos geólogos nos empreendimentos relacionados à planificação econômica. Mesmo na URSS, onde grandes trabalhos que tangenciam as condições naturais são empreendidos, o seguimento de geomorfólogos na luta pela construção do comunismo não se parece com o que poderia ser, que deveria ser. Os outros ramos da geografia física, a biogeografia, a hidrologia, a climatologia são amplamente utilizados; apenas a geomorfologia está afastada das lutas do século. Isso indica um inegável atraso de seu desenvolvimento metodológico, da forte persistência, em seus conceitos fundamentais, de uma ideologia burguesa degenerada. É essencial, portanto, esboçar as linhas gerais do que poderia ser uma geomorfologia construtiva, uma geomorfologia marxista, para destacar as limitações da geomorfologia especulativa atual em nosso país da maneira em que se encontra infestada de falsos conceitos burgueses.

O objeto da geomorfologia é o estudo dos aspectos do relevo terrestre e sua formação. O relevo é um elemento central do meio físico que serve de substrato ao desenvolvimento das sociedades humanas. A respeito disso, os geomofólogos burgueses não têm mais que uma visão restrita. Para estes, basta uma descrição imprecisa das formas de relevo. A explicação disso está no domínio da ciência pura: não fornece mais que uma satisfação intelectual, um malabarismo irresponsável das ideias. Que uma peneplanície seja do eoceno ou do cretáceo dificilmente teria importância direta para um camponês que a habita. Também a utilização – muito reduzida – da geomorfologia burguesa é quase sempre indireta. É assim que ela pode servir a um geólogo ou a um pedólogo. Como um solo específico sobre uma topografia antiga, que não se forma mais atualmente e cuja extensão é limitada a fragmentos conservados. Como a argila de sílex na bacia de Paris, que oferece as condições de apreensão de três regiões vizinhas, formada pelo mesmo substrato de calcário, mas que nelas não se encontra. O conhecimento da evolução morfológica permite, em casos semelhantes, um rápido e preciso aperfeiçoamento dos mapas geológicos e pedológicos. É o mesmo caso no domínio da geologia, ao estudar os depósitos aluviais minerais. A geomorfologia pode ajudar a encontrar o prolongamento de uma dada camada de cascalho que contenha substâncias úteis. Aí está, então, a quê se limita, nos países capitalistas, a utilização prática da geomorfologia. Isso é muito pouco para a geomorfologia e explica sua posição entre as ciências mais “puras”.

O estudo da gênese do relevo coloca o intelectual diante de uma combinação de forças naturais cuja importância é essencial para a sociedade. A terra cultivada é submetida à erosão, de cujo ritmo depende a fertilidade do solo. Se a erosão se acelera, o horizonte superficial do solo, o que mais importa para a agricultura, é destruído. Em meio a enorme destruição dos solos pela erosão, provocada pela exploração voraz do capitalismo, os ideólogos burgueses assumem o malthusianismo. Alguém como W. Vogt lamenta que a última guerra mundial não tenha contido o crescimento da população mundial. O fato está ligado, indiretamente, à insuficiência da geomorfologia burguesa. Em uma sociedade socialista, a proteção dos solos é um dever primordial. Os planos de florestamento da URSS e da Hungria tiveram, entre outros efeitos, êxito no impedimento da erosão e transporte eólicos de fragmentos de rocha. A geomorfologia pode contribuir em tarefas como essa. Assim como avaliar a erosão que resultará de um cultivo em determinada área rural, indicando os espaços que podem ser abertos sem risco e aqueles que devem ser deixados cobertos por vegetação. Nos países que já incorporam tal prática, a geomorfologia, através do conhecimento das leis de erosão, deve auxiliar no manejo das áreas. Deve poder aconselhar o uso de uma vertente para pastagem, de modo a proteger o solo; de conservar arado um outro, menos sujeito a erosão; cultivar árvores para uso de madeira em tal lugar; cortar uma encosta em degraus ou faixas de gramas, etc.

A geomorfologia deve também buscar aplicações na luta contra catástrofes. Proteção contra avalanches, deslizamento de terra, cujo estudo de seus mecanismos precisa ganhar melhorias. Com a ciência mais desenvolvida, poderemos recorrer a uma luta preventiva. Hoje, esperamos que a catástrofe seja iminente para começar os trabalhos de proteção. A defesa de um vilarejo contra avalanches ou deslizamentos de terra só tem início, nos países capitalistas, quando as devastações já aconteceram. A função da geomorfologia é discernir em que pontos existem condições para desencadear o fenômeno. Se este ameaça uma riqueza nacional, podemos lutar contra sua ocorrência. No estágio atual das técnicas, nossos meios são incapazes de combater uma catástrofe em processo. Porém, são suficientes pra impedir que ela ocorra. A questão da luta preventiva é central.

O manejo nos cursos d’água e nos litorais é igualmente do domínio da geomorfologia. Sua tarefa é fazer um balanço das forças naturais presentes, com o intuito de concluir qual deve ser a ação apropriada de intervenção. Deverá também prever as perturbações e modificações nas regiões vizinhas geradas pelo trabalho sobre o meio natural. Por exemplo, na costa da Normandia, o porto artificial criado em Arromanches para o desembarque aliado, retendo a areia que antes circulava ao longo do litoral, provocou erosão nas praias de Deuville e de Trouville, o que fez aparecer seus substratos lamacentos. Os importantes investimentos aí feitos pelo setor de turismo correm o risco de não terem retorno. Tanto é que essas praias apenas dão lucros para alguns poucos exploradores, o que hoje não é um mal maior, mas que pode vir a ser caso a França, tendo uma estrutura socialista, as use como área de lazer para os trabalhadores.

Isso quer dizer que ninguém vislumbrou essas aplicações práticas da geomorfologia? Certamente não. Nos países capitalistas, os numerosos técnicos se preocupam com esses problemas. Os agrônomos se interessam pela erosão dos solos, os engenheiros se dedicam aos leitos dos rios e aos litorais, e até mesmo aos deslizamentos de terra e às avalanches. Mas tudo isso de um modo muito limitado. Primeiramente, a ganância por lucro do sistema capitalista, que só visa a exploração imediata: na AEF [África equatorial francesa], para colher alguma tonelada de algodão, se arruína irremediavelmente dezenas de hectares; Na AOF [África Ocidental Francesa], a cultura do amendoim transformou metade de Senegal em deserto. O capitalismo destrói riquezas secularmente acumuladas pela natureza para dilapidá-las sob a forma de dividendos distribuídos a uns poucos exploradores. Contra esse fato, que paralisa toda possibilidade de utilização racional dos conhecimentos científicos, o homem tem que lutar pela revolução social e política, pela substituição do capitalismo pelo socialismo. O papel dos intelectuais progressistas é o de denunciar essa incapacidade do capitalismo em todos os domínios. Enquanto estuda o processo erosivo, um geomorfólogo não deve esquecer que isso depende dos sistemas econômicos. A erosão dos solos é máxima exatamente onde o capitalismo instaurou as especulações agrárias mais intensas; o sul e o oeste dos Estados Unidos, a África colonial, as plantações de café no Brasil são exemplos nítidos disso. No norte da África cresceu vertiginosamente a erosão desde a implantação do capitalismo francês.

Há também outra razão, a ideológica. A separação quase completa entre a pesquisa científica e a prática. Quaisquer esboços produzidos por geomorfólogos nos países capitalista, cujo objetivo seja aplicações práticas da geomorfologia, são obras de técnicos e engenheiros formados em outras disciplinas e que dificilmente têm contato com geomorfólogos profissionais. Eventualmente, esses técnicos utilizam procedimentos matemáticos de engenharia, mas não se dedicam aos problemas fundamentais: não têm nem tempo, nem vontade, dado que suas formações não os orientaram para isso. De modo geral, não dominam a complexidade das questões e frequentemente apenas oferecem soluções parciais, insuficientes e inclusive perigosas pelas consequências indiretas que acarretam, mas que não foram estudadas. De sua parte, os geomofólogos profissionais ficam de fora desses trabalhos, os quais ignoram, além de desdenhar dessas experiências práticas para se lançarem a especulações abstratas. Não possuem grandes coisas para oferecer aos práticos e desprezam o que as realizações destes poderiam lhes dar. Portanto, não surpreende que a geomorfologia clássica, da maneira como resulta dos trabalhos dos intelectuais burgueses, repousou em grande parte sobre bases ideológicas falsas que nós temos o dever de criticar

II. – Crítica dos conceitos geomorfológicos clássicos

O principal mal que acomete a geomorfologia burguesa é o idealismo. Um de seus mais evidentes mestres, William Morris Davis, já não afirmou que é bom se fechar em um quarto escuro e imaginar em quê tal região sucessivamente se torna sob o efeito da erosão? Igualmente típico disso é o método desse mesmo autor que consta em seu livro sobre recifes de corais. No início de cada capítulo tem uma descrição de um determinado atol imaginado por Davis, mas que ele jamais viu. Os raciocínios sobre o desenvolvimento do atol vão na linha de um dever-ser. O capítulo termina com um relato da visita a esse atol. Invariavelmente, Davis acha os fatos sempre conforme o seu esquema pré-estabelecido… É o triunfo da razão criadora. Todo trabalho é essencialmente subjetivo. O pensamento de Davis cria a sucessão dos fatos, dos fatos em si mesmos. O idealismo é máximo. Tal modo de pensar não é exclusivo de Davis, que é apenas o seu representante mais eminente e conhecido, e por isso o mais perigoso. Outros partilham tais formas de pensar, mesmo os seus opositores em grandes polêmicas, fenômeno corrente no desenvolvimento da filosofia burguesa. É o caso de Walter Penck, cuja hipótese sobre as formas de relevo de piemontes [Piedmonttreppen] é tão idealista quanto os trabalhos de Davis. Como estes, ela se assenta sobre uma dedução a priori a partir de fatos inteiramente imaginados. Os piemontes são muito próximos da erosão “normal”.

Dessa atitude idealista decorre naturalmente o antropomorfismo, que não passa de um meio de esconder sua ignorância. Neste caso, as frases servem de explicação e substituem os fatos: estes são os elementos da erosão fluvial, especialmente estudados pela corrente dos seguidores da escola de Davis, que oferecem os exemplos de antropomorfismo. Ferdinand von Richthofen entende que os rios “se esforçam” em permanecer em superfícies mais suaves, onde eles tem menos obstáculos do que nas rochas duras, que atravessam apenas em seguimentos curtos. Davis fala das “intenções”, das “preferências” dos rios. Naturalmente, tais usos de linguagem incomodaram até mesmo alguns intelectuais burgueses, que fizeram críticas, mas sem conectar esses usos com toda uma forma de pensamento, da qual não se libertam, mas conservam em sua quase totalidade.

Desse antropomorfismo decorre também o finalismo. A erosão personificada tem, como um ser humano, desejos e intenções. O nivelamento do relevo, para Davis e outros tantos, é “o objetivo final da denudação”. Toda uma terminologia, frequentemente trazida pela caneta desses autores, que trai suas maneiras de pensar. Fala-se do futuro ao invés do presente, abusa-se de palavras como “tende a ir em direção a”, “tem o dever de”, “se esforça”, “procura”. Quando essas palavras finalistas encontram a resistência dos fatos, indigna-se com estes e os acusa de má fé. Não está em Baulig, escrito em 1949, frases como: “a ideia primordial de um ciclo de erosão não é a tendência final ao nivelamento? Se quisermos reduzir a definição ao essencial, podemos abster de mencionar as estruturas e as formas iniciais, que variam infinitamente na natureza; a rigor, pode-se passar em silêncio pelas formas derivadas; não podemos é nos dispensar a falar do termo para o qual tende toda evolução”.

Ora, tudo o que podemos observar são as formas derivadas e a estrutura. O que talvez possamos reconstruir são os termos transitórios pretéritos. Tudo isso é varrido; só importa o objetivo final imposto pela natureza. O que nos faria crer estar diante de um catecismo ou uma de obra de teologia.

E Baulig conclui: “Em suma, a análise do processo tem por objeto substituir de modo a (e o subjuntivo) por de modo a (com o indicativo)”[1]. O estudo do processo, ou seja, o estudo objetivo dos fatos observáveis deve, para Baulig, se limitar a justificar os esquemas abstratos construídos pelos métodos idealistas. Estes não devem ser questionados, nem ameaçar perturbar a posição finalista. Isso se parece estranhamente com os limites impostos às ciências pelo papado. Dois domínios: o das ciências, que deve se limitar às causalidades secundárias, e o da fé, que ensina apenas as verdades fundamentais, de onde decorrem as causalidades secundárias estudadas pela ciência.
Evidentemente, os resultados atingidos por tais formas de pensar dependem de certas garantias. Porém, não devemos rejeitar em bloco toda geomorfologia burguesa; seria uma atitude anarquista. Devemos fazer uma crítica séria dessas noções fundamentais, a fim de distinguir aquelas que podem se adaptar a uma atitude objetiva e denunciar as outras.

O conceito de erosão mereceria longas críticas. Seu próprio nome já é revelador. Implica referência a uma regra absoluta, a uma “norma”, a um cânone que admitimos de uma vez por todas como o único a possuir valor. Podemos questionar, partindo mesmo do pensamento burguês, com Cl. Bernard: “Não há nada de confuso ou anormal na natureza”. O conceito de erosão normal está erigido sobre as formas de filosofias burguesas que buscam o absoluto. É inútil, então, se espantar que esse conceito se revele perfeitamente abstrato e inaplicável à natureza. A erosão “normal” é um monstro, uma construção esquemática e irreal. Ela combina em um mesmo conjunto elementos cuja repartição geográfica é diferente: o escoamento ativo dos países semiáridos, sem cobertura vegetal densa e contínua, sem solos profundos e o fluxo fluvial hierarquizado (e idealizado) dos países úmidos com intensa cobertura vegetal. Medições mostraram a fraqueza do escoamento sob florestas em países oceânicos temperados (Cailleux) e a importância primordial da vegetação. Assim que esta é destruída pelo homem, o escoamento deixa de ser negligenciado nas terras sem cobertura ou aradas para fins de produção agrícola. O depósito de matéria orgânica transportada começa com a extensão das terras lavradas e corresponde ao crescimento da erosão que delas resulta (Mensching). É preciso substituir essa noção de uma erosão normal, presente por todo o globo, ao redor dos desertos e das geleiras, por aquela das zonas climato-morfológicas, onde a combinação dos processos de erosão se efetiva de acordo com modalidades variáveis em função do clima, da vegetação e da modificação desta pela ação do homem.

O conceito de ciclo de erosão decorre do de erosão normal. Como este, ele é atribuído a Davis. Enquanto o último se deve à falsidade da posição idealista, o primeiro reflete os absurdos para onde leva o finalismo. Vemos o relevo se encaminhando para um objetivo final: a peneplanície. O antropomorfismo forneceu a designação das etapas imaginadas sobre a via que conduz à peneplanície: juventude, maturidade e velhice. O conceito não passa de um tecido complexo de graves erros ideológicos. é antes de tudo, uma esquematização idealista, falsa: as ações tectônicas se dão bruscamente antes que a erosão entre em cena, de tal forma que não há nenhuma interferência entre as duas séries de fenômenos. A tectônica, de fato, deixa de fazer sentir seus efeitos. Ela age de modo brusco o suficiente para que a erosão faça apenas um trabalho negligenciável durante o período que se produzem as deformações. Essa esquematização prova uma contraverdade à luz dos estudos geológicos, pois estes tendem a nos mostrar, ao contrário, que as deformações são quase permanentes, apesar das variações de seus ritmos.

Portanto, o antropomorfismo das etapas do ciclo de erosão permite negar por palavras todo esforço de explicação. Não passam de imagens. As construções idealistas dos esquemas evolutivos levaram a geomorfologia à inércia, fazendo-a negligenciar o estudo dos processos que se desenvolvem sob nossos olhos, realidades objetivas e, portanto, mensuráveis, cujo conhecimento pode munir a ação do homem. A fixação pela noção de ciclo de erosão foi determinante para o divórcio entre a prática e a teoria científica morfológica; fica evidente que tal posição idealista apenas afasta os fatos dos geomorfólogos, o que os condena à ciência pura, acumulando erros, pois assim eles são irresponsáveis. O conceito de ciclo de erosão foi construído fazendo uma série evolutiva de tipos de relevos diferentes. O encadeamento resulta de uma posição estritamente idealista e de raciocínios abstratos, não de observações científicas. Os relevos agrupados em séries evolutivas são de fato os relevos atuais, e nada prova que um tal tipo pode passar a outro, nada nos prova que ao menos uma parte não pertença a muitas séries evolutivas paralelas, sem formas de passagem de uma a outra, e portanto irredutíveis. Apenas o estudo minucioso dos processos poderia permitir discutir o problema, e é por isso que Davis, para preservar sua construção, não elaborou esse estudo e desaconselhou seus alunos nessa tarefa.

Nessas condições, a evolução do relevo para uma peneplanície é bastante problemática. Tudo que observamos são planícies locais e é duvidoso que elas possam, nas condições em que se encontram na superfície do globo, alcançar uma peneplanície generalizada. Os vastos e concluídos peneplanos que podemos observar datam de períodos geográficos longínquos, no curso dos quais é provável que as combinações atuais puderam reinar na superfície do globo (por exemplo, antes da colonização dos continentes pelos vegetais superiores aptos a formar uma vegetação mais densa). Nós absolutamente não podemos nos apoiar numa noção de ciclo de erosão para afirmar que o finalismo é compatível com a ciência, como faz Baulig. A própria análise dessa noção mostra o quanto, ao contrário, o finalismo contido nela cumpre um papel nocivo ao desenvolvimento científico da geomorfologia.

A noção de perfil de equilíbrio é mais conciliável com as exigências do pensamento objetivo, com a condição, todavia, de tomar como base a definição que Baulig atribui a ela, e não aquela de Martonne. Para este, se trata de um tipo de resultado ideal para o qual tende o modelo (perfil de vertente, de praia, de contorno do litoral, de leito do rio, etc…). Essa concepção é finalista por essência e não saberia nos satisfazer, mesmo parcialmente. Por outro lado, para Baulig, é um tipo de equilíbrio provisório entre forças opostas, evoluindo lentamente em direção ao estádio último da peneplanície. Se rejeitarmos a parte finalista do conceito, resta a questão do equilíbrio momentâneo entre forças antagônicas. Podemos, portanto, aplicar à noção, assim restrita, os princípios fundamentais que regem as oposições dialéticas. Assim formulada, a noção de perfil de equilíbrio se torna objetiva: o homem é capaz, por uma análise das forças no presente, de agir sobre seu equilíbrio, e então influenciar a natureza. Assim se explica que os práticos tenham podido admitir a noção de perfil de equilíbrio dos cursos d’água ou de perfil das praias. Mas é preciso separar essa noção de todo finalismo, considerar esse equilíbrio como dinâmico, capaz de se modificar em um ou outro sentido, e não irremediavelmente encadear numa evolução irreversível em direção a um único e irrevogável fim.

O que sobra dos conceitos fundamentais da geomorfologia burguesa é muito pouco quando fazemos sua crítica do ponto de vista da dialética marxista. Eles aparecem então prenhes de enormes erros, o que é explicado pela evolução dessa disciplina como ciência “pura”, desconsiderando a prática. Compreendemos, portanto, que, mesmo nos países capitalistas, os práticos chamados a se interessarem pelas questões relacionadas ao objeto da geomorfologia não puderam tirar nada do trabalho de especialistas, que consideravam pouco rigorosos.

Mas essa excessiva carga de ideologia burguesa provocou uma reação importante. Na Alemanha, as ideias de Davis foram vigorosamente combatidas, embora frequentemente por meio de métodos semelhantes. A noção de morfologia climática, oposta à de erosão “normal”, é progressivamente desenvolvida e ganha espaço na França e nos Estados Unidos. Mais objetiva, ela constitui um progresso. Um tanto tímidos, nos orientamos para uma análise do processo de erosão, em parte pela via experimental, no sentido do estudo da atividade de erosão por intermédio dos depósitos detríticos e da pedogênese, buscando assim uma descrição mais objetiva do relevo baseado na morfometria. A oposição entre as velhas concepções idealistas e os novos métodos se acentua, se traduzindo atualmente por uma crise violenta. Muitos procuram um caminho próprio. É nosso papel, enquanto marxistas, descobrir e apresentar esse novo caminho, com vistas a facilitar, nesse campo, a realização da lei stalinista da supremacia do novo.

III – Que fazer?

Está evidente que não podemos rejeitar completamente a geomorfologia burguesa. De modo particular, certas tendências recentes que se manifestam na Alemanha, na França e mesmo nos Estados Unidos podem ajudar a fundar uma geomorfologia marxista. Basta, para isso, que elas sejam objetivas, que elas rompam conscientemente com as especulações abstratas e idealistas da geomorfologia clássica. Tudo o que concorre para melhor analisar os fatos, para ligar a geomorfologia aos fatos concretos, para trazer de volta estes fatos para o interior do quadro das ciências naturais, tudo isso pode nos servir.

Primeiramente, devemos fazer um esforço considerável por assentar a geomorfologia sobre conhecimentos de bases sólidas. Definir e estudar os fatos fundamentais, até então quase totalmente ignorados, é uma tarefa urgente. Falamos repetidamente de vertentes suaves e íngremes, mas somos incapazes de elaborar um mapa dos aspectos medianos das encostas no mundo, mesmo nos países, por assim dizer, mais “conhecidos”, como a França e a Alemanha. O mesmo se aplica à densidade dos talvegues, sejam eles com ou sem drenagem. Por ignorar tais elementos, surge o caráter idealista dos esquemas davisianos, dado que se fundam no abrandamento progressivo das vertentes e na ação das águas correntes para legitimar o ciclo de erosão. A insuficiência do pensamento burguês na geomorfologia se traduz necessariamente por um conhecimento embrionário dos fatos fundamentais. Ainda não há uma boa geomorfologia descritiva. Precisamos nos esforçar por colocar em prática os métodos de medição dos fatos topográficos, permitindo sua análise objetivamente, expressando-os em números. Portanto, é necessário desenvolver vigorosamente a morfometria.

E isso coloca uma questão de método: duas orientações extremas são possíveis. Uma consiste em lançar mão de complicados, porém precisos, coeficientes, considerando as múltiplas particularidades, como os esboçados por Péguy na França. Combinando neles um grande número de fatores antagônicos, dificilmente permitem que se estabeleça uma lei fundamental da evolução do relevo. Demorados para calcular, eles apenas permitem a análise lenta de um problema em escala global. Por outro lado, podem se mostrar úteis para a definição das condições topográficas que caracterizam as pequenas unidades regionais. A segunda orientação consiste em efetuar medidas bastante simples, o mais analíticas possível, em fazê-la com grandes números e tratar seus resultados por meio de técnicas estatísticas, a fim de encontrar as leis gerais entre os diversos elementos de mensuração. Esse método é o mais satisfatório para a geomorfologia geral.

Igualmente, é preciso definir o “campo geomorfológico”. Ou seja, um campo tal que influa no desenvolvimento dos processos geomorfológicos[2]. Nesse campo, os conhecimentos atuais permitem discernir quatro grandes séries de conexões de causalidade.

1º Os dados estruturais: natureza e disposição das camadas, deformações dessas camadas (no sentido dinâmico). A análise desses dados só pode se efetuar por uma aproximação com os geólogos, realizada por um trabalho em equipe, o que é quase impossível no quadro da sociedade burguesa. É preciso tomar consciência de que os fatos geológicos não são absolutos, mas sempre relativos (Cf. Engels, Dialética da natureza: “Não podemos ir além do conhecimento dessa ação mútua, porque não há nada a conhecer para além dessa ação”). Por exemplo, não será possível classificar definitivamente, como fazem os geomorfólogos burgueses, as rochas em rochas “duras” e rochas “maleáveis”[3]. Uma rocha apenas apresenta resistência frente a um processo de erosão: aí está um exemplo elementar de oposição dialética. Assim é o calcário, resistente sob climas brandos onde é pouco atacado pela erosão mecânica, se torna facilmente desgastado sob climas frios onde o gelo o fragmenta sem dificuldades. Temos também que colocar em primeiro plano as deformações tectônicas que se produzem no próprio curso do período de modelação do relevo. Os sábios soviéticos nos mostram o caminho para isso em seus estudos sobre a neotectônica. Os sábios burgueses negam frequentemente, sem prova alguma, essa ciência soviética, sob o pretexto de que não é possível demonstrar as deformações atuais. Essa é uma questão de organização das pesquisas: o trabalho em equipe entre os geodésicos e os geofísicos, assim como os estudos precisos e minuciosos mostram as deformações atuais. É fato que pesquisas dessa ordem não ocorrem em países capitalistas. A ausência de deformações quaternárias e atuais coincide com uma lei cada vez mais verificada, que é a da continuidade do desenvolvimento da natureza. O planeta não evolui por cataclismos sucessivos separados por períodos de absoluta calma.

2º Os dados climáticos: é por intermédios dos agentes climáticos que atuam as forças cósmicas que comandam a modelação do relevo terrestre: vento, água das chuvas, variações de temperatura. Esses fenômenos climáticos são os agentes de transmissão de energia, diretamente observáveis, se prestando a um estudo objetivo. Porém, são bastante mal conhecidos: os dados que possuímos deles são abstratos. Mal conhecemos a frequência e a intensidade das chuvas, a violência dos ventos no solo, a variação de temperatura no solo. E esses são os dados efetivamente eficazes para geomorfologia, como também para a ecologia das plantas e dos animais. Tal como conhecemos, o clima é algo abstrato, idealizado, onde as médias ocultam a variedade dos fatos. E nesse assunto, as médias não podem ter um valor para além de uma explicação muito limitada. A temperatura média mais elevada das regiões equatoriais explica a intensidade dos fenômenos químicos mais intensos que nas regiões polares. Mas faltam ainda os dados fundamentais para a geomorfologia, úteis igualmente para a vida das plantas e dos animais. A desagregação mecânica das rochas depende da frequência e da amplitude das variações de temperatura no solo, particularmente do número de ciclos gelo-degelo. O escoamento está ligado à intensidade das chuvas e a sua duração e, num período maior, à frequência relativa das chuvas de diversos tipos. O derretimento da neve com seu ritmo, suas relações com a temperatura do solo, congelado ou não, tem igualmente um papel central na erosão do solo. As precipitações que degelam o solo provocam, sobre as terras cultivadas, a ablação[4] de uma massa considerável de partículas de matéria orgânica. O conhecimento de todos esses fatores climáticos, que constituem um verdadeiro campo ecológico para o desenvolvimento do relevo, também é importante para as aplicações práticas. Essa é uma das chaves do problema da erosão dos solos.

3º A vegetação: tal como é encontrada, ou seja, modificada pelo homem, constitui um dos fatores determinantes do modelamento do relevo. Ela cobre o solo e, por isso mesmo, exerce sobre ele uma proteção direta. Assim, sob os climas úmidos, onde a mata é densa e contínua, o escoamento que ocorre sobre as encostas íngremes das montanhas não atinge o solo. Ele acontece sobre a superfície dessa mata e não tem força para destruí-la mesmo quando é concentrado. A erosão é limitada nos talvegues, cuja depressão provoca a demolição das margens dos rios íngremes e um desgaste progressivo das pradarias que os bordam. A erosão somente ataca diretamente o solo se houver redução na vegetação que o protege, seja como resultado de modificações regionais do clima (por exemplo, nos Alpes do sul e nos Alpes orientais, menos úmidos e com chuvas mais violentas do que nos Alpes ocidentais), seja como resultado das destruições dos animais (excessivo pastoreio de ovelhas e cabras que acabam com a vegetação rasteira), fazendo aparecer manchas de solo exposto a partir das quais se organiza o escoamento, removendo então as faixas cobertas vizinhas. A influência da vegetação atua por sua aptidão a proteger o solo, ou seja, pela densidade da cobertura (superficial ou subterrânea: raízes) que ela forma. As plantas com sistema radicular desenvolvido protegem bem melhor que aquelas de raiz pivotante ou de rizoma. O estudo das relações entre o tipo de cobertura vegetal e as condições de erosão oferece todo um campo de trabalho em equipe para geomorfólogos e botânicos, e é suscetível de aplicações práticas, notadamente pela escolha de plantas destinadas a combater a erosão. O ritmo das atividades agrícolas também é muito importante quanto à erosão. Alguns tipos de cultivo deixam o solo exposto exatamente no momento em que o processo de erosão é mais forte. Assim é com a lavoura de trigo no inverno em países de clima continental, onde a erosão durante o degelo é intensa. Sobre as lavouras expostas à erosão em virtude de sua topografia, a escolha das culturas deveria se inspirar nos estudos práticos nessa direção.

4º A pedogênese: resultante do clima, da vegetação e de sua própria dinâmica. É raro que a erosão ataque diretamente as rochas do subsolo. De modo geral, ela ocorre sobre o solo do qual deriva. É um dos erros fundamentais da geomorfologia burguesa estudar o ataque das rochas pela erosão sem levar em conta os solos que as recobrem. O escoamento pode agir sobre as rochas de calcário quando estão cobertas de argila de descalcificação, e mesmo que esta ultima cubra apenas suas fissuras. A erosão dos solos, negada pelos geomorfólogos burgueses como algo marginal, é, na verdade, um elemento central da análise do processo. As influências litológicas sobre a erosão, ao redor do leito dos rios, das praias e das falésias litorâneas são mais indiretas e agem por intermédio dos solos. As propriedades destes são fundamentais. Por exemplo, a formação das couraças lateríticas africanas, crosta superficial resistente, desacelerou consideravelmente o ataque por erosão dos platôs da zona tropical onde as queimadas destruíram as florestas primitivas.

Esses dados fundamentais da geomorfologia mostram uma oposição dialética entre os processos e a superfície do globo terrestre, caracterizada por suas rochas, seus solos, sua cobertura vegetal, suas deformações. É essa oposição dialética que devemos analisar objetivamente se queremos agir sobre ela. Ao contrário do pensamento burguês, cujas construções idealistas relegam o estudo dos processos a uma posição subalterna, é da análise desses processos que deve partir o pensamento marxista. Mas essa análise não deve abstrair esses processos do conjunto no qual operam: eles são apenas um elemento de uma oposição dialética que compreende todos os outros elementos da camada superficial do globo terrestre, nos quais a vida tem um papel essencial: vida vegetal e animal, mas também a ação do homem. Esta última modifica as condições da vida vegetal e animal de modo intenso e profundo, o que lhe concede uma importância morfológica de primeiro plano. Negá-la é dar provas a favor do idealismo e é ao mesmo tempo impedir a geomorfologia de concorrer na luta dos povos por uma vida melhor.


Notas do tradutor:

[1] Trata-se da incerteza que expressa no modo subjuntivo e da certeza que constitui o modo indicativo. Com isso, Baulig reforça a questão da certeza teleológica de suas proposições ao usar a expressão “de modo a” – de sorte que no original.

[2] Tricart se refere ao meio de estudo, ao campo no sentido de definição de escala, de área onde atuam forças verificáveis e com têm ação na dinâmica geomorfológica.

[3] Rúptil e dúctil, no uso consensual dos manuais atuais.

[4] Quando se inicia o transporte do material desgastado resultante, neste caso, da variação de temperatura.

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