Dois anos após a revolução: Thomas Sankara sobre as relações franco-africanas

Por Thomas Sankara, via Liberation Scholl, Tradução por Ariadne Isabel Machado Bogo

Essa é a primeira tradução para língua inglesa de uma entrevista com Thomas Sankara, publicada originalmente aqui em francês com o título “Nós votamos muito em Le Pen em Ouagadougou” (original: We vote for Le Pen too much in Ouagadougou). A entrevista ocorreu no dia 5 de Agosto de 1985 e foi impressa na Le Matin de Paris (uma publicação próxima ao partido socialista francês).

Essa é a quinta parte do projeto de tradução Thomas Sankara da Liberation School. Essa série é um resultado de colaboração com ThomasSankara.net, uma plataforma online dedicada a arquivar o trabalho do grande revolucionário africano. Gostaríamos de expressar nossa gratidão ao Bruno Jaffré por permitir estabelecer essa colaboração e o direito de traduzir esse material em inglês pela primeira vez.

A relação controversa Franco-Burkinabe (expresso segundo Le Martin de Paris)

As relações entre Thomas Sankara e o governo francês têm estado “quente” desde 1983. A França, principal provedora de recursos na Alto Volta, tem estado frequentemente incomodada pelos discursos “anti-imperialistas” feitos pelo primeiro-ministro Sankara, o qual chamou atenção a esta questão.

Preso na época pelo presidente Jean-Baptiste Ouédraogo, Thomas Sankara é acusado de atuar como conselheiro do presidente da França, Guy Penne, então presente em Ouagadougou, supervisionando sua prisão. Em Junho de 1984, seguindo a execução de sete pessoas em Ouagadougou por “conspiração”, o partido socialista francês se negou a receber o Ministro de Estado de Burquina Fasso, Blaise Compaoré, em Paris.

Por fim, houve o caso Sigué: o chefe de segurança de Sankara, descendente de franceses por parte de mãe, foi preso por crimes de direito comum pela polícia francesa enquanto viajava por Roissy, pelos quais foi responsabilizado na França. A França é, além disso, acusada por Burquina Fasso de apoiar os opositores ao seu regime.

“Nós temos votado muito em Le Pen em Ouagadougou:” entrevista com Thomas Sankara por Etienne Gingembre

Le Matin: Você tem aplaudido as medidas realizadas pela França contra Pretória [1]. Você acha que a França, o qual você qualifica como um poder imperialista, está seguindo na mesma direção que você?

Thomas Sankara: Se existe uma crítica fundamental que precisa ser nivelada contra a política africana do partido socialista francês, é que eles continuam utilizando a mesma forma de pensamento para África. Porém, essas formas de pensar são antiquadas e causam apenas desinformação. Cada vez que a França toma uma decisão que não nos parece justa, nós vamos combatê-las firmemente. As pessoas com má intenção chamam de obstrução sistemática, ou política anti-França. Nós acreditamos que é a forma mais sincera de estabelecer um relacionamento saudável com as pessoas.

Por outro lado, não hesitaremos em apoiar a França quando ela tomar uma decisão que nós consideramos ser justa. Por exemplo, quando a França se retirou do Líbano, nós fomos os primeiros e únicos Africanos a mandar uma mensagem para eles. E quando a França decidiu boicotar a Pretória, não apenas fizemos uma declaração, como também requisitamos que nosso embaixador em Nova Iorque mobilizasse o não-alinhamento, que permitiu que as medidas francesas passassem.

Le Matin: Então você não se sente mais “desapontado com o socialismo”?

Thomas Sankara: No projeto da esquerda existiam algumas opções corajosas que nós apreciamos.

Infelizmente, porque o poder da esquerda permitiu ser levada por contradições previsíveis, hoje se encontra de pé e mãos atadas incapazes de cumprir um certo número de promessas. Esse poder comprometeu a si na França, e comprometeu a si fora da França.

Le Matin: Você recebeu há pouco o Bernard Stasi [2]. Você tem boas relações com certas personalidades francesas?

Thomas Sankara: Stasi me contou que teve uma ótima impressão da sua estadia e percebeu as grandes mudanças que fizemos no país. Eu gostava do cara. Ademais, mantemos relações com organizações não governamentais que, às vezes, são bem positivas (recentemente, por exemplo, nós condecoramos um voluntariado progressista francês).

Infelizmente, por um longo período de tempo, as oligarquias francesas vieram para cá buscar acordos com a oligarquia Burkinabe nas costas do povo. Você vai entender que o nosso povo acabou devolvendo ao povo francês as ações negativas cometidas em África pelos líderes franceses. Isso é o que provoca rejeição baseada na intolerância e, em última análise, racista. Nossos povos não têm interesse em machucar uns aos outros, muito pelo contrário, porém o governo francês precisa tomar outras abordagens hoje.

Le Matin: Qual, por exemplo?

Thomas Sankara: Um grupo de líderes africanos podem perguntar para a França para intervir na República do Chade, mas se você fizer uma enquete, perceberá que as massas populares africanas rejeitam completamente, em sua totalidade, essa intervenção. Essa é a razão pela qual a França sempre cometerá os mesmos erros enquanto negligenciam as massas, dizendo: “Foram seus presidentes que pediram que façamos isso”. Amanhã, os socialistas precisarão responder por essas ações, em consonância perfeita com os líderes africanos e em desacordo com as massas. Não vamos repetir o que ocorreu na Argélia.

Le Matin: Mas e se amanhã a direita substituir o partido socialista no poder na França, você não teme que isso dificultará a relação com a França?

Thomas Sankara: Não seria honesto se falasse que nós não tememos essa possibilidade. Nós tomaremos as nossas responsabilidades. Mas você sabe, a direita, nós já a temos vivido aqui: nós temos votado muito em Le Pen em Ouagadougou. Todos os dias a direita se esforça para prejudicar a revolução aqui, para envenenar nossas relações com a França, para fazer com que estrangeiros pensem que Ouagadougou é uma cidade escanteada onde tudo o que precisa é ter pele branca para ser unida. Ao observarmos essa má-fé, entendemos como seria a situação se essas pessoas tivessem mais poder.

Nós torcemos para que aqueles que terão o poder para guiar o destino da França, seja direita ou esquerda, estarão comprometidos em não provocar uma coalizão internacional contra a França como o resultado de comportamentos cientistas e colonialistas contra seus compatriotas na África. Em Burquina Fasso, não permaneceremos parados com nossos braços cruzados em face a essas provocações repetidas.

Le Matin: Isso significa que você tomará providências?

Thomas Sankara: Por enquanto, vou apenas manter esta declaração. Mas cumpriremos nossas responsabilidades até o fim: aqueles que atacarem nosso povo, nós os atacaremos.

Le Matin: Isso significa que sua paciência está chegando no limite?

Thomas Sankara: Está começando a chegar…

Le Matin: A Amnistia Internacional censurou-o por violações dos direitos humanos: prisões arbitrárias, tortura, desaparecimentos. Isso é desinformação?

Thomas Sankara: Essa reação por parte da opinião internacional é normal porque foi fundada na informação que tem acesso. Infelizmente, essa informação está condicionada. Você não consegue imaginar o número de esquemas que desarmamos nos últimos dois anos. À princípio, não éramos levados a sério. Porém, fazemos o que falamos. E o que fazemos é avaliado pelo exterior, até o ponto em que uma demanda é formulada. Então eles decidem nos matar. E eles recontam todo os tipos de coisas para a opinião internacional. Em outros países africanos, as pessoas desaparecem em masmorras sem nenhum protesto na França. Melhor ainda, a França celebra e parabeniza alguns desses países. Vou citar para vocês o caso da Agence France-Presse, cujo representante em um país continua vindo escrever em Burquina Fasso…

Le Matin: A de Niamey?

Thomas Sankara: Eu não queria nomear o país. Ele continua vindo para escrever o que vê de negativo em Burquina Fasso, mas ele nunca escreve sobre outros países, inclusive no qual ele reside. Isso é dupla medida. E não deveria vir como surpresa, logo, se hoje a opinião internacional está mais interessada no que ocorre em Burquina Fasso.

Le Matin: Mas você nunca aceita críticas?

Thomas Sankara: Sim, mas essas críticas não correspondem à realidade. Te foi dito que algumas pessoas foram presas, torturadas e até mortas. Nós escutamos, várias vezes, sobre pessoas mortas enquanto estão aqui e enquanto jogam cartas com os guardas deles. Nós estamos em um país extremamente politizado, então nossos opositores focam na opinião internacional de ações que foram feitas aqui que eles julgam como negativo. Por não poderem mais falar publicamente devido ao risco de serem devidamente colocados em seu lugar por quem quer que esteja envolvido, nossa oposição chama a opinião internacional em seu auxílio para divulgar as reivindicações contra os burkinabes.

Le Matin: Mas seus opositores ainda possuem direito legal em Burquina Fasso?

Thomas Sankara: Nós não lutamos contra a oposição tão firmemente quanto falam que lutamos. Mesmo quando somos empurrados para o limite, e nós prendemos certas pessoas, nós não falhamos em soltá-los. E essa oposição está se acabando porque não tem mais credibilidade. Isso é porque, da esquerda bem como da direita, essas pessoas não hesitam em conspirar contra nós. E grande parte dessas conspirações são remotas e controladas internacionalmente…

Le Matin: Por quem?

Thomas Sankara: Por enquanto, escolhemos não divulgar essa informação.

Le Matin: Você acredita, como muito foi dito aqui, que a França e os Estados Unidos cooperaram para essas conspirações?

Thomas Sankara: Nós reafirmamos que auxílio poderoso veio desses países. Mas nós pegaremos esses ladrões em flagrante.

Le Matin: Todas as medidas de reconciliação nacional estão excluídas no momento?

Thomas Sankara: Não, e as pessoas sabem que não hesitamos em estender ajuda e apoio a quem quiser nos aceitar.

Os militantes acham que isso é sentimentalismo, enquanto nossos detratores acham que é fraqueza. Eles estão tentando nos desacreditar envolvendo-nos em uma escalada de violência. Eles manipulam as pessoas que nos provocam. Uma provocação que, se repetida, nos levaria a cometer atos extremamente violentos, como último recurso.

Le Matin: O que você tem em mente?

Thomas Sankara: Eu estou pensando, por exemplo, em penas de morte

Le Matin: Você imagina realizá-los hoje?

Thomas Sankara: Não, eu não quero que nós tenhamos que fazer isso. Mas nós estamos sendo empurrados para essa direção para que então possamos ser denunciados. Ou você mata seus adversários, e para este caso você é condenado por violar direitos humanos, ou você não os mata, e neste caso seus oponentes te destronam.

Le Matin: Ano passado, você disse que cometeu um erro por dia. Esse ainda é o caso?

Thomas Sankara: Neste ano, estamos cometendo mais de três por dia, porque nós estamos fazendo mais coisas, e estamos tomando mais decisões. Se, dentro de 3000 decisões, 2800 são ruins, existem 200 que são boas. E se, de 9000, temos apenas 500 boas decisões, então essa progressão não evoluiu em proporção, mas, ao mesmo tempo, isso faz mais 300 boas decisões. Essa é a razão para cometermos mais erros.

Referências

[1] Em julho de 1985, o presidente sul-africano Pieter Botha, um opositor declarado do comunismo e da democracia para os negros, declarou estado de emergência em certos distritos como uma suposta resposta às mobilizações por parte da comunidade negra. O governo francês respondeu chamando de volta seu embaixador, decretando uma moratória sobre novos investimentos franceses na África do Sul e apresentando uma resolução ao Conselho de Segurança da ONU condenando Pretória (que foi ratificada). – Trans.

[2] Stasi era um político francês geralmente afiliado à direita ou centro-direita democrática cristã. – Trans.

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