Machado de Assis e Hegel na Encruzilhada da Escravidão

Por Pablo Ramon Diogo

Introdução

Que todo o escritor é produto de seu tempo histórico já é verdade bem conhecida. Contudo, a forma como determinados elementos que se apresentam como problemas da realidade social comparecem nas obras artísticas ainda é motivo de variadas discussões. Machado de Assis é produto do tempo histórico das relações sociais escravistas e seus fenômenos num Brasil que se complexificava cada vez mais, tendo rebatimentos diretos na esfera artística de seu tempo, quando mais na literatura. Num Brasil que recém tinha tomado sua independência formal, faltava construir o arsenal de representações de sua nova realidade nacional não mais colonial, que pudessem refletir a realidade como ela é. Machado de Assis certamente foi um dos artistas brasileiros que se empenhou não só em construir uma literatura de caráter nacional, como também refletir o cotidiano dessa realidade nacional.

Iremos abordar neste artigo como as relações sociais de dominação e escravidão compareciam na obra madura de Machado de Assis, tomando como ponto central principalmente Memórias Póstumas de Brás Cubas e Quincas Borba. A abordagem, de cunho literário e filosófico, incide também na relação de dominação e escravidão presente na obra Fenomenologia do Espírito de Hegel1, com o intuito de compreender não só a relação de dominação e escravidão, mas sobretudo como chave-explicativa da exposição literária machadiana2.

Nos limites de um artigo, obviamente, muitas coisas ficam escanteadas. No entanto, convém focalizarmos no essencial e contribuir para o debate de um escritor inesgotável que foi e é Machado de Assis. Num primeiro momento trataremos da arte em Machado de Assis e episódios em que comparecem a temática da escravidão e dominação em Memórias Póstumas e Quincas. Na segunda parte do artigo focalizamos estritamente na Fenomenologia de Hegel para compreender a relação entre o escravizado e senhor. A partir daí iniciamos uma exposição mais prenhe de determinações de uma possível interpretação da obra machadiana. Com isso, finalizamos o artigo, donde as considerações finais versam sobre a ética em Machado de Assis. Como manda um artigo dedicado à Joaquim Maria, as considerações finais ficam à maneira mesma machadiana, o leitor atente-se para si mesmo suas considerações finais, a que estão aqui são apenas meio-caminho andado, um corte abrupto proposital, em que o leitor deve decidir a resposta.

A arte machadiana

Em seu esforço de renovação cultural, Machado de Assis relatava que tinha “a inqualificável monomania de não tomar a arte pela arte, mas a arte, como a toma Hugo, missão social, missão nacional e missão humana” (Assis apud Pereira, 1959, p. 61). Essa revelação saída das penas machadianas é de suma importância para destrinchar o terreno literário do autor.

A arte tem sempre o seu ponto central no desvelar-se da particularidade, sendo ela mesma uma particularidade reflexiva do mundo3. A maneira que Machado trouxe a particularidade de sua época em sua arte é caminho movimentado, não estático. De todo o modo, é inconteste que há em sua expressão artística o mundo cotidiano de um Brasil envolto em transformações sociais: Joaquim Maria acompanhou não só os debates emancipacionistas em relação à escravidão, como a própria Abolição, os tensionamentos diplomáticos do país com a Inglaterra, a questão da imigração e viveu a Primeira República, com a destituição do partido abolicionista e do poder imperial. Todos esses elementos aparecem em Machado a partir do cotidiano, esse é o seu terreno de mobilidade artística. Neste sentido, a obra machadiana consegue condensar o “homem inteiro” (Heller, 1989), o ser genérico de uma particularidade concreta – a brasileira em transição –, na vida cotidiana. E há uma especificidade na forma em que Machado traz esse cotidiano à tona em suas obras: “Os seus contos e romances não abrigam heróis extraordinários, nem fixam ações grandiosas e excepcionais. Êles são construídos com o material humano mais comum e ordinário, com as miudezas e o terra-a-terra da vida vulgar de todos os dias” (Pereira, 1959, p. 17).

Daí que advêm as polêmicas classificatórias do gênero literário de Joaquim Maria. Sabe-se de sua repudia ao naturalismo, sua superação realista do romanesco4, com seu igual repúdio ao realismo. Este fato se deve a que tratamos aqui não só de um escritor literário, mas um intelectual brasileiro preocupado com uma renovação cultural que corresponda às exigências da realidade brasileira5.

Por essa mesma razão, Astrojildo Pereira (Ibid., p. 111-112; 186) julgou a obra de Machado de Assis como um realismo particular, sem escola. Se a arte é uma forma particular de entender a realidade e o Brasil de Machado de Assis já era uma realidade em si assaz particular, sobretudo nas relações sociais postas em vigência, só poderia sobrevir uma particularidade mesma na estética machadiana. Esta aí um dos motivos de Machado de Assis continuar a ter vitalidade e pertinência em nossos dias atuais, pois traduzia o cotidiano – principalmente em sua especificidade carioca – em termos de uma particularidade na particularidade, ou seja, à maneira machadiana.

O que era generalizado nas relações sociais brasileiras da publicação de Memórias Póstumas e Quincas era a escravidão e dominação. Essas relações não deixaram de se fazerem presentes na escrita machadiana, seja nas personagens, nas narrações interventivas do próprio autor na obra e em seu estilo literário. Marca relevo na representação das relações sociais de dominação e escravidão, como o veremos, sempre um dilema ético posto por Machado de Assis. Basta com que lembremos em Memórias Póstumas das personagens de Prudêncio e D. Plácida ou do próprio Cotrim, todos eles envolvidos diretamente nas relações de dominação e servidão. Em Quincas aparece o enforcamento público de um escravizado por outro negro no capítulo XLVII; no primeiro encontro entre Rubião e Palha já se tematiza, em suas conversas, a questão da escravidão. O próprio Rubião vendeu os escravizados que Quincas Borba homem – esse ser tão ilustrado e criador da filosofia Humanitas – detinha, ficando apenas com um criado espanhol “por mais que lhe dissesse [à Palha, que insistiu à Rubião ter criados brancos] que estava acostumado aos seus crioulos de Minas” (Assis, 1997, p. 2).

Somente em Memórias Póstumas e Quincas são inúmeras as reflexões e referências acerca da escravidão e dominação para citá-las aqui. O retrato dessa relação perpassou toda a trajetória intelectual de escritor de Joaquim Maria, desde a época de Machadinho, na qual a dominação expressava-se pelo paternalismo (Schwarz, 2012), até o Machado maduro. Vê-se, assim, que Machado de Assis não era alheio às relações sociais de sua época, ao contrário: as refletia diretamente em seu trabalho de romancista. Cabe a nós, entretanto, ver a maneira como essas relações de dominação e escravidão comparecem na obra, a fim de averiguar como elas as refletem. Antes disso, é preciso que nos detenhamos em como ocorre essa relação entre dominador e dominado em Hegel.

Hegel e o Eu e o Outro: o rumo à consciência infeliz

No domínio da dialética da dominação e escravidão presente na Fenomenologia, são frequentes os aportes focalizados estritamente ao item, resultando numa fragmentação da exposição hegeliana nesse momento mesmo do movimento da consciência, ignorando, assim, todo o desenrolar da consciência. Nos limites deste artigo não conseguiremos açambarcar todo o curso entre ser e consciência, desenvolvido para além da aparição das personagens do senhor e do escravizado, na obra hegeliana. Contudo, uma rápida apreciação da exposição de Hegel já denota que a relação de dominação sobreposta vai além do item relacionado à dominação e escravidão – no restante da Fenomenologia a relação não desaparece, mas encontra-se subsumida nas procedentes figuras da consciência6. Nosso objetivo não é realizar, tampouco, uma apreensão exaustiva contida na relação entre senhor e escravizado, mas tão-somente apontar possíveis nexos explicativos que consigam vir ao auxílio de interpretação das cenas machadianas onde as personagens escravizadas aparecem. Cabe, aqui, apenas a advertência que falta ainda (até onde temos conhecimento) uma digressão que trate da totalidade da relação de dominação contida na Fenomenologia e a vincule com o moderno proletariado, esse “escravo de toda a classe proprietária” (Engels, 2010, p. 121)7.

A parte da Fenomenologia dedicada à dialética da dominação e escravidão encontra-se no estágio em que a consciência desprendeu o saber e certeza de sua verdade no objeto exterior a ela. Todo o caminho precedente percorrido por Hegel, donde a consciência busca incansavelmente compreender o mundo exterior, passa pela certeza sensível, a percepção e o entendimento (que são formas da consciência), no qual a própria consciência irá superar e conservar nela mesma essas fases. Só então é que a consciência se eleva à sua figura de consciência-de-si, jamais suplantando suas fases anteriores, mas conservando-as num nível mais elevado de compreensão. Na figura da consciência-de-si o saber e a certeza da consciência deixa de fixar-se no objeto externo e seu objeto passa a ser a própria consciência. No entanto, a consciência ainda só consegue se valer em sua verdade e apreensão do mundo a partir do objeto, pois em-si ela não contém a sua própria verdade. Seu objeto, então, passa a ser o Outro. A relação entre sujeito e objeto põe-se na forma da relação entre o Eu e o Outro. É aqui que a consciência irrompe como consciência-de-si8. Este é o pano de fundo que irá se situar a dialética da dominação e escravidão.

Essa breve retomada é necessária para que possamos compreender, ainda que grosseiramente, o campo em que versa a análise hegeliana. Todo este capítulo da Fenomenologia, onde está presente de maneira incisiva a relação entre senhor e escravizado, é dedicado ao movimento que consciência faz nesse momento de tentar suprassumir-se9 em consciência-de-si, isto é, de ter certeza e saber de si mesma como consciência. Os problemas derivados desse processo são muitos. Nos cabe apenas elencar o mais importante: na relação da consciência com o objeto, a consciência sempre se comporta de maneira negativa para com o objeto, ou seja, a consciência não é o objeto e o objeto não é a consciência10, mas, por outro lado, a consciência só consegue se valer e fazer-se efetivamente pelo objeto. Nessa diferença a consciência precisa almejar a unidade dessa relação contraposta, a fim de compreender-se a si como consciência, elevar-se à consciência-de-si. Comparece, então, a dificuldade da consciência nesse caminho para se suprassumir como consciência-de-si: o Eu porta-se negativamente para com o Outro. É nessa mesma dificuldade que emerge a dialética da dominação e escravidão.

Trata-se, então, de duas consciências individuais contrapostas, manifestas nas personagens do senhor e do escravizado, o Eu e o Outro. Imediatamente quando entram em cena essas duas personagens já existe, enquanto latência, a consciência-de-si, mas para se efetivarem nessa figura da consciência elas precisam estar relacionadas como unidade. É sagaz a maneira como Hegel introduz na passagem do texto as forças que advém para unificar essas diferentes consciências, na figura do desejo e da satisfação. É no primeiro que resulta a vontade de vir-a-ser consciência-de-si, e o último é a sua efetivação como consciência-de-si. O caminho árduo para a consciência, portanto, é efetivar o seu desejo. Só o espírito consegue ser a consciência-de-si independente e absoluta, enquanto na relação entre o Eu e o Outro as diferenças como forças contrapostas sempre farão sua marca.

Se é na unidade das duas diferentes consciências que reside a satisfação, logo é na própria relação entre senhor e escravizado que aparece a consciência-de-si como o em-si para a consciência. É na relação que a satisfação se exerce, enquanto Uno, coagulado. Num primeiro momento, a consciência-de-si, então, não está nem na personagem do senhor e tampouco na do escravizado, mas sim na relação mesma11. Como nessa relação o escravizado está submetido ao senhor, ele não consegue obter o reconhecimento do seu em-si no Outro, pois ambos se expressam na relação como extremos opostos dentro dessa unidade. Até o agir nessa relação nunca é um agir próprio, mas é o agir do Outro em-si mesmo. O em-si do escravizado só existe para e em relação ao senhor, portanto, nunca é um em-si-consigo-mesmo, ao contrário, sempre um em-si no Outro – eis a dificuldade de seu reconhecimento e onde se estabelece o eixo da dominação e escravidão. Nessa comutação contraposta, as duas consciências tentam afirmar-se na luta entre a vida e a morte, porém a morte do Outro significa o negar de si mesmo e da própria relação, portanto, a negação da consciência-de-si. A consciência precisa percorrer esse caminho dentro da relação se se quiser elevar-se à consciência-de-si. Formam-se, nessas duas consciências opostas, personagens dependentes uma da outra, impossíveis de se reconhecerem e afirmarem-se como consciências individuais e descobrirem sua essência.

É reconhecido amplamente qual a saída que Hegel aponta para que, ao menos, uma das personagens consiga ter a certeza de si mesma como consciência. Como toda a dinâmica dessa relação se dá na relação mesma é preciso compreender o que está posta nessa relação. Argutamente Vázques (2001, p. 17) simplifica essa questão: “não existe dominação sem exploração, da mesma maneira como não existe exploração sem o domínio que permite mantê-la”. A relação de dominação só consegue existir e efetivar-se pela unidade do Eu e do Outro diferenciáveis, e essa unidade já existe nos termos opostos entre si, uma vez que a relação mesma se faz pelo trabalho do escravizado e pelo gozo do senhor. No gozo do senhor reside o desejo, e no trabalho do escravizado a satisfação. Portanto, é pelo produto do trabalho do escravizado que a consciência se suprassume em consciência-de-si, efetiva-se.

De modo simples, para não nos alongarmos demais, essa elevação à consciência-de-si ocorre do seguinte modo: o produto do trabalho do escravizado aparece como mediador da relação, ela é a relação mesma; mas o produto do agir dessa relação se deve por parte do escravizado, aí que ele consegue enxergar outro objeto para além do senhor – embora a fruição do gozo do senhor reproduza essa mesma relação –, e será neste objeto, isto é, o produto de seu trabalho, que o escravizado consegue tem uma independência na relação em sua própria consciência, pois seu objeto imediato deixa de ser o senhor. Por outro lado, o senhor será a personagem dependente do processo, porque seu gozo só consegue se efetivar pelo produto do trabalho do escravizado. É na exploração que a dominação realmente se revela12.

Ao atingir sua independência no produto do seu trabalho a consciência escrava consegue elevar-se à consciência-de-si, ter certeza e saber de si mesma. Resulta disso que, ainda que a consciência escrava consiga a sua verdade na independência mesma da relação dependente, ela só consegue valer-se como satisfação na relação de dominação e exploração onde, sobretudo, é a exploração o momento determinante que não só reproduz a dominação, e novamente a exploração, mas também contém o gérmen da elevação de sua consciência como certeza de si mesmo em-si. Não há, para o escravizado, o seu em-si mais no Outro, no senhor, mas a relação subsiste como recalque, é o que Hegel chama de “uma liberdade que ainda permanece no interior da escravidão” (Hegel, 2002, p. 151). A potência para a elevação da consciência-de-si à razão, próximo passo empreendido por Hegel em Fenomenologia, existe na personagem do escravizado, e não na do senhor. Este último satisfaz seu gozo objetivo, mas não consegue atingir a sua satisfação subjetiva como o escravizado.

Onde se encontraria, assim, a liberdade efetiva dessa relação, ou seja, a supressão da relação mesma enquanto relação de dominação, onde ainda prevaleceria para as consciências a sua diferenciação oposta entre o Eu e o Outro, mas não mais numa relação de dominação e exploração? Isso é uma resposta que a realidade histórica objetiva deve responder e não Hegel. Hegel limitou-se a ver os passos dessa liberdade somente na consciência, mas há nessa liberdade da consciência por Hegel indicações precisas. Vejamo-las.

Hegel subscreve essa liberdade dentro da escravidão da consciência-de-si do escravizado em três figuras distintas, que evoluem historicamente: o estoicismo, o cepticismo e a consciência infeliz. Quando da Fenomenologia surgem essas três figuras, não desaparecem as personagens do senhor e do escravizado como possa levar a crer. Na exposição e forma de linguagem hegeliana, conforme avança-se no desenrolar do caminho da consciência, o mesmo conteúdo vai ganhando novas formas, sinalizando que já não são os mesmos, ainda que o seu ser anterior subsista. No surgimento do estoicismo, cepticismo e consciência infeliz, a consciência escravizada aparece como o singular inessencial e a consciência do senhor no imutável. Não convém expormos mais como ocorre a relação entre essas duas figuras, apenas salientamos aqui que a relação entre o senhor e o escravizado continuam a entravar-se no desenvolvimento da consciência-de-si porque a consciência escravizada só consegue, ainda, achar-se no produto de seu trabalho, mas não no Outro como consciência. Surge daí que a certeza de si mesmo do escravizado se apresenta como essência inessencial, um em-si que não é em-si efetivo porque não consegue relacionar-se como consciência-de-si com o Outro – firma-se sua independência, mas não o reconhecimento do seu Eu no Outro. O grande passo estabelecido é a construção na consciência escravizada do conceito de liberdade, formando-se a liberdade na consciência através de seu trabalho. Inicialmente, sob a figura do estoicismo, o conceito dessa liberdade ainda é abstrato, pois é só a liberdade do pensar. Essa liberdade do pensar efetivada se transmuta na figura do estoicismo, mas que é sempre uma liberdade indeterminada, “uma consciência-de-si perdida” (Ibid., p. 157).

Para que essa liberdade se efetive é preciso que os dois polos da relação de dominação sejam consciência-de-si, daí o despontar da consciência infeliz, que vai ser a unidade dessas diferentes consciências. O seu resultado infeliz é o que a relação de dominação mesma produz, uma vez que não consegue jamais unificar o Eu e o Outro opostos: precisa aparecer em cena um meio-termo os unifique, que irrompe na personagem do ministro. Este último aparece como uma nova consciência em cena, que unifica as duas consciências cindidas, será o Outro em que os dois Eus conseguem reconhecer-se. O escravizado “dá graças” (Ibid., p. 167), “para a qual ser em si e para si [escravizado] é verdadeiro” (Ibid., p. 168). Para as duas consciência-de-si no interior dessa consciência infeliz, o “seu agir efetivo se torna um agir de nada e seu gozo se torna o sentimento de sua infelicidade” (Ibid., p. 168). É evidente que Hegel tem em mira no meio-termo, na personagem do ministro, um Outro além teológico13.

Vemos, então, que na relação de dominação o reconhecimento jamais pode ser alcançado pelas duas personagens contrapostas na relação, e quando alcançam efetivamente a consciência-de-si só o é como consciência infeliz, ou seja, pelo mediador universal, o ministro, esse Outro que surge e que não é a relação imediata, resultando para as consciências individuais do senhor e do escravizado, num “agir mesquinho, recurvada sobre si; tão infeliz quanto miserável” (Ibid., p. 169). Isso significa que Hegel não enxergava a liberdade objetiva efetiva da dominação? Para fazer juízo justo à Hegel, basta sinalizar que o surgimento do Espírito irá conduzir à essa libertação a seus moldes, pois a consciência-de-si só se liberta pelo caminho da razão – e é consciência em si e para si – na figura do espírito. Como bem sinalizou Hegel em seu prefácio à Fenomenologia:

“Certamente, o espírito nunca está em repouso, mas sempre tomado por um movimento para a frente. […] o espírito que se forma lentamente, tranquilamente, em direção à sua nova figura, vai desmanchando tijolo por tijolo o edifício de seu mundo anterior. Seu abalo se revela apenas por sintomas isolados; a frivolidade e o tédio que invadem o que ainda subsiste, o pressentimento vago de um desc5onhecido são os sinais precursores de algo diverso que se avizinha. Esse desmoronar-se gradual, que não alterava a fisionomia do todo, é interrompido pelo sol nascente, que revela num clarão a imagem do novo mundo.” (Ibid., p. 31).

O transcrito fala por si. O mérito e legado de Hegel é demonstrar que o ser e a consciência são um eterno vir-a-ser, que nunca repousam no fio do movimento histórico14.

Os elementos que aqui apresentamos, sobretudo da relação de dominação e seu término na consciência infeliz, são decisivos para uma apreciação de como a dominação e escravidão aparecem em Machado de Assis.

Relações sociais e o ministro do favor

Vejamos como a dominação e escravidão comparecem em Machado de Assis de Memórias Póstumas e Quincas para que possamos analisa-las. Embora esteja presente milhares de outras passagens que poderiam serem abordadas, nos limitaremos a citar apenas alguns episódios de cada obra, o suficiente para indicar a nós a reflexão.

Em Memórias Póstumas nosso narrador, Brás Cubas, já alerta inicialmente ser sua memória ali exposta “supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera, logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não inflama nem regala, e é todavia mais do que passatempo e menos do que apostolado” (Assis, [s.d], p. 4). O retrato social que comparece à obra recobra, a todo momento, essa filosofia austera. Brás Cubas, desde sua infância recebera “a alcunha de ‘menino diabo’” (Ibid., p. 12), pois já aos cinco nosso póstumo narrador quebrou a cabeça de uma escrava porque lhe “negara uma colher do doce de coco que estava fazendo” (Ibid.). Relatando aqui a sua infância dos cinco anos de idade é que já aparece a relação de Brás Cubas com Prudêncio, este último:

“[…] um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepavalhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia, — algumas vezes gemendo, — mas obedecia sem dizer palavra, ou, quando muito, um — ‘ai, nhonhô!’ — ao que eu retorquia: — ‘Cala a boca, besta!’.” (Ibid.).

Mais tarde, já maduro de idade, Brás Cubas acaba encontrando Prudêncio, agora forro, no Valongo – à época, o principal mercado de tráfico de escravizados. A cena? Prudêncio, que “era um preto […] vergalhava outro na praça” (Ibid., p. 59), donde a vítima de Prudêncio só fazia súplicas contrárias à violência e que ele “respondia com uma vergalhada nova”. Como em Memórias Póstumas o narrador é Brás Cubas, neste livro toda a intervenção literária do narrador recorre não à Machado de Assis como sujeito, mas ao próprio Brás Cubas. Estilo típico de Machado de Assis em suas obras, de intervenção e reflexão narrativas, que Schwarz (2012, p. 67) brilhantemente cunhou como “instante cafajeste” da literatura, aparece aqui por Brás Cubas. Vejamos a conclusão de sua reflexão após ter visto o seu ex-escravizado, de que montava como cavalo todos dias em sua infância, estando agora naquela situação no Valongo:

“Era um modo que o Prudêncio tinha de se desfazer das pancadas recebidas, transmitindo-as a outro. Eu, em criança, montava-o, punha-lhe um freio na boca e desancava-o sem compaixão; ele gemia e sofria. Agora, porém, que era livre, dispunha de si mesmo, dos braços, das pernas, podia trabalhar, folgar, dormir, desagrilhoado da antiga condição, agora é que ele se desbancava: comprou um escravo, e ia-lhe pagando, com alto juro, as quantias que de mim recebera. Vejam as sutilezas do maroto!” (Assis, [s.d], p. 59).

O capítulo termina aí, mas o “instante cafajeste” toma nota no próximo capítulo inteiro: trata-se de uma lembrança que Brás Cubas teve de um doido que conheceu chamado Romualdo, que tinha a mania de se achar Tamerlão, o rei dos tártaros, após ter ingerido muito tártaro. O brevíssimo capítulo de Romualdo termina, então, assim:

[…] “é provável que o leitor não se ria, e com razão; eu não lhe acho graça nenhuma. Ouvida, tinha algum chiste; mas assim contada, no papel, e a propósito de um vergalho recebido e transferido, força é confessar que é muito melhor voltar à casinha da Gamboa; deixemos os Romualdos e Prudêncios.” (Ibid., p. 60)

Brás Cubas abandona então o caso e volta ao enredo central de sua memória. O “instante cafajeste” de Romualdo é evidentemente uma alegoria sobre o caso de Prudêncio. É nessa alegoria que acaba toda a reflexão do finado narrador. O leitor que aqui lê guarde este episódio na sua própria memória, não a deixando como propriedade de Brás Cubas e rememore o Eu e Outro hegeliano. Já no capítulo seguinte entra em cena a agregada de Virgília, D. Plácida, nova personagem na exibição. Não convém tratar toda a miserável história que D. Plácida sofreu em vida, mas apenas dizer que havia nela uma enorme resignação no seu sofrimento e miséria. Vejamos o que D. Plácida afirma à Brás Cubas ao contar a ele sua história de vida:

“Olhe os meus dedos, olhe estas mãos… E mostrou-me as mãos grossas e gretadas, as pontas dos dedos picadas de agulha. – Não se cria isto à toa, meu senhor, Deus sabe como é que isto se cria… Felizmente, Iaiá me protegeu, e o senhor doutor também… Eu tinha um medo de acabar na rua, pedindo esmola… (Ibid., p. 63).”

Além da vida miserável houve, igualmente miserável, a morte de D. Plácida, que “saiu da vida às escondidas” (Ibid., p. 102). O juízo de Brás Cubas a respeito? Reside no capítulo final: “não padeci a morte de D. Plácida” (Ibid., p. 110). Para finalizar a exposição acerca de Memórias Póstumas resta apenas, rapidamente, citar o caso de Cotrim, homem benemerente em vida e sociedade visto como filantropo que gostava de exibir seus próprios atos, com um único, adendo: era comerciante de escravizados e ordenava diretamente o castigo deles no calabouço. Como se estabelece o caráter de Cotrim deste modo? Aqui, Machado de Assis, na figura de Brás Cubas, é certeiro: “não se pode honestamente atribuir à índole original de um homem o que é puro efeito de relações sociais” (Ibid., p. 93).

Em Quincas as referências à relação de escravidão e dominação são poucas, embora apareçam de outro modo mais sutil. Explica-se a carência de tematização da relação de escravidão e dominação nesta obra em comparação à Memórias Póstumas, por ter sido escrito pós-Proclamação da República, enquanto o último foi publicado em pleno efervescer do movimento abolicionista. É natural, assim, que Memórias Póstumas traga com mais evidências essas situações que descrevemos acima. Entretanto, os escravizados não deixam de marcar presença. Quincas Borba homem é exemplificação disso, ao passo que humanizava o seu cão, dando-lhe o mesmo nome para representar sua herança ao mundo, animalizava os homens, sendo portador de escravizados e legando-os à Rubião em conjunto com o resto das suas coisas como herança.

Além da cena do enforcamento público, operada por outro negro – à mesma maneira de Prudêncio de Memórias Póstumas –, donde a impressão do episódio só figurou na consciência de Rubião em conjunto com outros episódios igualmente equivalentes do seu dia15, há aqui uma grande alegoria na figura mesma do animal humanizado, isto é, do Quincas Borba o cão. O fato acontece no capítulo XXVIII, e o transcrevemos a fim de melhor compreensão:

“Quincas Borba [o cão] sentiu-lhe os passos, e começou a latir. Rubião deu-se pressa em soltá-lo; era soltar-se a si mesmo por alguns instantes daquela perseguição.

— Quincas Borba! exclamou, abrindo-lhe a porta.

O cão atirou-se fora. Que alegria! que entusiasmo! que saltos em volta do amo! chega a lamber-lhe a mão de contente, mas Rubião dá-lhe um tabefe, que lhe dói; ele recua um pouco, triste, com a cauda entre as pernas; depois o senhor dá um estalinho com os dedos, e ei-lo que volta novamente com a mesma alegria.

— Sossega! sossega!

Quincas Borba vai atrás dele pelo jardim fora, contorna a casa, ora andando, ora aos saltos. Saboreia a liberdade, mas não perde o amo de vista. Aqui fareja, ali pára a coçar uma orelha, acolá cata uma pulga na barriga, mas de um salto galga o espaço e o tempo perdido, e cose-se outra vez com os calcanhares do senhor. Parece-lhe que Rubião não pensa em outra coisa, que anda agora de um lado para outro unicamente para fazê-lo andar também, e recuperar o tempo em que esteve retido. Quando Rubião estaca, ele olha para cima, à espera; naturalmente, cuida dele; é algum projeto, saírem juntos ou coisa assim agradável. Não lhe lembra nunca a possibilidade de um pontapé ou de um tabefe. Tem o sentimento da confiança, e muito curta a memória das pancadas. Ao contrário, os afagos ficam-lhe impressos e fixos, por mais distraídos que sejam. Gosta de ser amado. Contenta-se de crer que o é.

A vida ali não é completamente boa nem completamente má. Há um moleque que o lava todos os dias em água fria, usança do diabo, a que ele se não acostuma. Jean, o cozinheiro, gosta do cão, o criado espanhol não gosta nada. Rubião passa muitas horas fora de casa, mas não o trata mal, e consente que vá acima, que assista ao almoço e ao jantar, que o acompanhe à sala ou ao gabinete. Brinca às vezes com ele; fá-lo pular. Se chegam visitas de alguma cerimônia, manda-o levar para dentro ou para baixo e, resistindo ele sempre, o espanhol toma-o a princípio com muita delicadeza, mas vinga-se daí a pouco, arrastando-o por uma orelha ou por uma perna, atira-o ao longe, e fecha-lhe todas as comunicações com a casa:

— Perro del infierno!

Machucado, separado do amigo, Quincas Borba vai então deitar-se a um canto, e fica ali muito tempo, calado; agita-se um pouco, até que acha posição definitiva, e cerra os olhos. Não dorme, recolhe as ideias, combina, relembra; a figura vaga do finado amigo passa-lhe acaso ao longe, muito ao longe, aos pedaços, depois mistura-se à do amigo atual, e parecem ambas uma só pessoa; depois outras ideias…” (Idem, 1997, p. 30-31).

E entra em cena o “instante cafajeste” machadiano:

“Mas já são muitas ideias, — são ideias demais; em todo caso são ideias de cachorro, poeira de ideias, — menos ainda que poeira, explicará o leitor. Mas a verdade é que este olho que se abre de quando em quando para fixar o espaço, tão expressivamente, parece traduzir alguma coisa, que brilha lá dentro, lá muito ao fundo de outra coisa que não sei como diga, para exprimir uma parte canina, que não e a cauda nem as orelhas. Pobre língua humana!” (Ibid.).

Percebe-se aí uma alegoria de uma dominação humana sob a figura de Quincas o cão. Há, nas referências machadianas, um caráter de resignação frente a essas relações. Machado de Assis parece mesmo invocar a consciência infeliz hegeliana como modo de retratar a relação entre dominante e dominado. A unidade das duas consciências distintas e opostas já parece haver se efetuado; mas onde estaria o meio-termo, o ministro hegeliano da relação, que une as consciências e as eleva em consciência-de-si no interior da consciência infeliz? Não há, ao menos nas obras maduras de Joaquim Maria, nenhum teor teológico como força condutora dos romances16. Numa realidade particular brasileira, onde até a santidade dos clérigos era duvidosa17, o ministro hegeliano tinha de irromper em nova manifestação, condizente com a concreticidade – posto, ainda mais, que Hegel referia-se na consciência infeliz da escravidão clássica e não da sua vertente moderna que estamos tratando.

O meio-termo só conseguiria se manifestar na força do favor, este era o verdadeiro ministro da realidade brasileira18. Neste aspecto, tem suficiência interpretativa o suposto “cepticismo” ou “pessimismo” de Machado. Ele encarnava as relações entre dominante e dominado à moda hegeliana, porém, despido do cunho teológico, o seu ministro habitava a terra e não o céu19. A comprovação desta argumentação reside na própria obra, no exemplo que Quincas Borba, o homem, exemplifica a sua filosofia Humanitas, também essa como uma unidade de contrários, no capítulo CLVI, chamado “orgulho da servilidade”, de Memórias Póstumas:

“O que o teu criado tem é um sentimento nobre e perfeitamente regido pelas leis do Humanitismo: é o orgulho da servilidade. A intenção dele é mostrar que não é criado de qualquer. — Depois chamou a minha atenção para os cocheiros de casa grande, mais empertigados que o amo, para os criados de hotel, cuja solicitude obedece às variações sociais da freguesia, etc. E concluiu que era tudo a expressão daquele sentimento delicado e nobre, — prova cabal de que muitas vezes o homem, ainda a engraxar botas, é sublime.” (Idem, [s.d], p. 107-108).

Assim, ao contrário do que aconteceu na relação de dominação e escravidão em Hegel, onde o escravizado não se reconhecia no senhor e o senhor não se reconhecia no escravizado, aqui ambos têm já a consciência-de-si efetiva, reconhecem-se um noutro, mas o dar graças rumo à consciência infeliz, a liberdade dentro da escravidão, é uma consciência infeliz terrena, um ministro ateu, numa imagem de um não-deus, colocada materialmente na relação mesma do favor.

Eis a razão do escape e aspecto de indiferença das personagens principais frente certas cenas como, por exemplo, a falta de padecimento pela morte de D. Plácida; a fuga de reflexão frente ao açoite dirigido por Prudêncio; a mistura de impressões no fim do dia de Rubião, sendo o enforcamento público só mais um fenômeno e etc.

Não se causa certo incômodo além de imediato nas personagens por algumas razões: as relações em que estão inseridas contém nelas o conteúdo de dominação naquela realidade histórica, já se exteriorizaram como o agir mesquinho da consciência infeliz. Isto significa que a relação de dominação de um sobre o outro não aparece como relação desfalcada, injusta, mas sim como a forma de expressão da justiça da época dentro de relações determinadas20; Machado é artista do cotidiano, retrata o cotidiano como ele o é. Como assinalou Heller

“A unidade imediata de pensamento e ação expressa-se também no fato de que, na vida cotidiana, identificam-se o verdadeiro e o correto. O que revela ser correto, útil, o que oferece ao homem uma base de orientação e de ação no mundo, o que conduz ao êxito, é também “verdadeiro”. “(HELLER, 1989, p. 45).

Se a relação de dominação era verdade, também ela resultava como a relação correta na esfera da vida cotidiana. Machado de Assis só a transfere para o escopo literário – e este último tem uma vantagem por representar o cotidiano, porém não-ser o cotidiano em si. Desta forma, o leitor interpreta, através do romance, o cotidiano numa forma de suspensão do próprio cotidiano.

Portanto, quando Machado reflete as personagens de Prudêncio, D. Plácida, a cena do enforcamento público, o servilismo canino de Quincas o animal meio-humano ou quando diz: “o melhor modo de apreciar o chicote é ter-lhe o cabo na mão” (Assis, 1997, p. 22), ele representa a consciência infeliz dessa época, onde o agir do ser na relação de dominação nunca é um agir próprio, mas sempre um agir do Outro, onde as consciências-de-si presentes só se fazem valer pelo ministro do favor, na relação mesma. Tornar-se o senhor é a imagem sagrada terrena almejada nesse meio-termo, um dar graças da relação concreta, pois é ela que materializa o favor. Aí reside e se efetiva o reconhecimento de si, em-si, no Outro que é para si mesmo. É que “o homem, enquanto ser humano-genérico, não pode conhecer e reconhecer adequadamente o mundo a não ser no espelho dos demais” (HELLER, 1989, p. 84).

O Bruxo do Cosme Velho reflete, assim, não só a relação de dominação e escravidão posta nas relações sociais vigentes, mas materializa a consciência infeliz – essa consciência cindida – na particularidade em que ela se sobrepõe. Contudo, há uma diferença: se Hegel via no cristianismo, como objetividade histórica da consciência infeliz, e no vir-a-ser do Espírito a superação dessa consciência infeliz, Machado, por outro lado, aponta para algo semelhante, isto é, coloca a superação como caminho?

Considerações finais: uma literatura ética?

Fazemos concorde com Schwarz (2012, p. 42) quando esse afirma que “literatura não é juízo, é figuração: os movimentos de uma reputada chave que não abra nada têm possivelmente grande interesse literário”. Machado, certamente, nunca revelou em suas obras saídas e superações dessa situação de dominação em que suas personagens estavam envoltas. Convém daí a indagação: é a obra machadiana uma literatura ética?

Badiou (1995), debruçando-se sobre a ética, ressaltou que pressupô-la é igualmente reconhecer e distinguir o mal e um sujeito passivo, que sofre desse mal, definindo o homem como uma vítima. Ora, vimos que na relação de dominação que Machado de Assis pinta em seus romances, tanto as personagens dominantes e dominadas têm consciência-de-si no Outro, quer dizer, reconhecem-se igualmente no favor. O seu reconhecimento de si no Outro existe no interior da relação de dominação mesma, ela não termina, mas se reproduz nos agentes. Existiria, nas relações históricas de então, uma vítima nessa relação dual? A resposta pode ser afirmativa se captarmos Quincas ao invés de Memórias Póstumas, tendo em vista que a primeira é publicada após a Abolição, quando as relações escravistas já não estavam na ordem do dia – muito embora as relações de dominação continuassem a valer-se.

Muito versou-se sobre o pessimismo e ceticismo da literatura machadiana, porém pouco se tratou em igual medida do que significava aquele retrato pessimista e cético. Há, como vimos, os “instantes cafajestes”, reflexivos neles mesmos, quase sempre alegóricos, mas que sempre escampam à outra cena que dá continuidade ao curso da obra, continuidade à relação do favor. Candido (2015, p. 66-67) enxergou nesse “elemento fugidio” a força e maestria da obra machadiana. Mas a forma consegue desvelar a força do conteúdo? Ou seja, as alegorias e reflexões trazidas no decorrer da obra, materializam um posicionamento ético? Conseguem transformar alguém em agente passivo, em vítima?

Julguemos as obras em-si mesmas, deixando de lado as descrições biográficas da posição político-social de Joaquim Maria Machado de Assis – este como homem ordinário da vida cotidiana de seu tempo – que poderiam, supostamente, resolver a charada. A obra de arte deve falar por si mesma, sem subterfúgios explicativos, pois é ela que vêm ao mundo manifestar-se como produto pronto e acabado, e não o autor. E o que ela, concretamente, responde? Pode, a obra machadiana, ser considerada uma literatura ética? Se a consciência infeliz hegeliana visou sempre a suprassunção de si mesma, como, então, se comportou a consciência infeliz da relação de dominação particular brasileira refletida na arte machadiana?

Longe de realizarmos qualquer afirmação a respeito dessa pergunta, que pode soar até impertinente frente a importância do intelectual Machado de Assis; é o leitor quem deve julgar e dar a resposta, cabendo a nós, apenas parafrasear o objeto mesmo de que tratamos: “Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa; antes um argueiro, antes uma trave no olho” (Assis, [s.d], p. 4).

Referências

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. Jandira: Ciranda Cultural, [s.d].

______. Quincas Borba. São Paulo: Globo, 1997.

BADIOU, Alain. Ética: um ensaio sobre a consciência do mal. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995.

CANDIDO, Antonio. Iniciação à Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2015.

DIOGO, Pablo Ramon. Reflexões Lukacsianas Sobre a Arte, Teoria do Reflexo e o Marxismo: um contributo para a teoria do reflexo e a importância da arte no mundo concreto. Traduagindo, 2022. Disponível em: <https://traduagindo.com/2022/04/24/reflexoes-arte-teoria-do-reflexo/>. Acesso em 18 Jul. 2022.

ENGELS, Friedrich. A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra: segundo as observações do autor e fontes autênticas. São Paulo: Boitempo, 2010.

EWBANK, Thomas. Vida no Brasil: ou Diário de uma visita à Terra do Cacaueiro e da Palmeira com um apêndice contendo ilustrações sul-americanas antigas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1976.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 2002.

HELLER, Agnes. O Cotidiano e a História. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

INWOOD, Michael. Dicionário Hegel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.

KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

LUKÁCS, György. O Jovem Hegel: e os problemas da sociedade capitalista. São Paulo: Boitempo, 2018.

MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-Capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

______. O Capital: crítica da Economia Política, Livro I, O Processo de Produção do Capital. São Paulo: Boitempo, 2017a.

______. O Capital: crítica da Economia Política, Livro III, O Processo Global da Produção Capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017b.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2017.

PEREIRA, Astrojildo. Machado de Assis: Ensaios e Apontamentos Avulsos. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959.

SCHWARZ, Roberto. Ao Vencedor as Batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2012.

SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.

VÁSQUEZ, Adolfo Sánchez. Entre a Realidade e a Utopia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.

1 À guisa de economia de caracteres, sublinharemos essas obras, a partir de agora, da seguinte maneira: Memórias Póstumas de Brás Cubas como Memórias Póstumas, Quincas Borba como Quincas e Fenomenologia do Espírito como Fenomenologia.

2 Esta vinculação é apenas experimental e recai sobre nossa responsabilidade interpretativa. É sabido, ao menos com referência à Pereira (1959), que Joaquim Maria não leu Hegel, mas, como veremos adiante, certas explicações científicas (porque o percurso que Hegel pretende em Fenomenologia não é tão-somente filosófico, mas sobretudo científico, como o próprio autor propõe) conseguem objetivar-se através da arte. Como já alertava Marx (2017a, p. 149): “Eles não sabem disso, mas o fazem”.

3 Não é aqui o espaço para tratar da arte enquanto esfera de representação da realidade, inserida na categoria de particularidade. Já tivemos a oportunidade de tratar dessa temática em Diogo (2022). O adendo que possamos aqui fazer é referente a seguinte passagem elucidativa de Hegel, presente em seus manuscritos de estudos, que no momento daquela exposição não tínhamos conhecimento e que agora vêm ao auxílio: “A má-reflexão é o temor de aprofundar-se na coisa, de ir sempre além dela e retornar para dentro de si. O analista, como diz Laplace, entrega-se ao cálculo e perde a tarefa de vista, isto é, a visão geral e o fato de que os momentos singulares do cálculo dependem do todo. O essencial não é só a noção de que o singular depende do todo, mas igualmente a noção que cada momento por si só, independentemente do todo, é o todo, e isso constitui o aprofundar-se na coisa” (Hegel apud Lukács, 2018, p. 571-572).

4 Uma análise incisiva dessa superação, por dentro da obra juvenil do Machadinho – apesar de não coadunarmos com a interpretação historiográfica da época –, encontra-se em Schwarz (2012).

5 Todo este debate está colocado nos anos de 1870 a 1880 entre Sílvio Romero, José Veríssimo e Machado de Assis. Veja, p. ex., o ensaio machadiano Instinto de Nacionalidade. Uma apreciação justa deste ensaio, com seus pormenores históricos e sociais, que passam ao fundo do debate, se encontram em Pereira (1959, p. 45-85).

6 É singular e elucidativo, acerca da exposição hegeliana em Fenomenologia, a apreciação que Lukács (2018) apresenta, tomando como fundamento a interpretação marxiana dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844. Até a aparição do Espírito na obra, o desenrolar expositivo de Hegel em Fenomenologia, relativo à primeira parte (cap. I-V), refere-se abstratamente à consciência individual no movimento de sua autoconsciência, num vir-a-ser árduo e negativo para consigo mesma, em uma constante suprassunção dos seus estágios precedentes; entretanto, o significativo, a exposição da primeira parte tem por fundo todo o processo do desenrolar histórico objetivo da humanidade, com que Hegel abstrai. Esse processo histórico objetivo só ganha força e nitidez na exposição de Hegel a partir do Espírito. Parte-se, portanto, do mais abstrato ao mais concreto. Daí a dificuldade e mistificação que se apresenta a obra até a chegada do Espírito em cena.

7 As referências ao trabalho assalariado como escravidão são frequentes em A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra de Engels. Aqui, basta exemplificar que ele chega mesmo a afirmar para o proletariado do regime fabril que a “sua escravidão é pior que a dos negros da América, porque [são] vigiados ainda mais severamente” (Engels, 2010, p. 215). No Manifesto do Partido Comunista, Marx e Engels argumentam que os operários “não são apenas servos da classe burguesa, do Estado burguês, mas também, dia a dia, hora a hora, escravos da máquina, do contramestre e, sobretudo, do dono da fábrica” (Marx; Engels, 2017, p. 28, grifo nosso). Retemos, porém, qualquer crítica ao Manifesto do Partido Comunista por seu alto valor estilístico literário, tendo livre passagem sua licença artística. Ademais, as apreciações de Marx n’O Capital em relação à escravização são mais pontuadas e diferenciadas do trabalho assalariado e sabe-se que essa diferenciação e o estudo da escravização foi longo objeto de estudo de autor, contidas em manuscritos de Marx (1991). Entretanto, cabe nossa assertiva: se a relação de escravização não se apodera mais enquanto relação dominante e é suprassumida pelo trabalho assalariado, convém denotar que o que mudou-se foi a forma, o seu conteúdo, por outro lado, permanece o mesmo, a saber: a dominação e exploração. Eis, então, a atualidade da dialética da dominação e escravidão de Hegel e sua objetividade ainda efetiva no Espírito do mundo.

8 Este ponto é incisivo tanto para a existência efetiva da consciência-de-si como, consequentemente, para a relação da consciência individual na relação entre dominação e servidão. É neste breve termo que Hegel dispõe essa necessidade na consciência-de-si: “Para que haja suprassumir, esse Outro deve ser” (Hegel, 2002, p. 141).

9 É conhecido dos leitores de Hegel que sua dialética objetiva compreende um agir triplo na imanência do objeto em que se trata, condensado na categoria de suprassunção, como negação, negação da negação e positividade. Como não convém nos limites desse artigo explicar a categoria de suprassunção, deixamos a palavra com Kosik (1976, p. 136), que a expôs didática e objetivamente: “Em relação ao passado a história humana é uma ininterrupta totalização no curso da qual a práxis humana inclui em si mesma os momentos do passado e somente mediante tal integração os reaviva. Neste sentido, a realidade humana não é apenas produção do novo, mas também reprodução (crítica e dialética) do passado. A totalização é um processo de produção e reprodução, de reavivamento e rejuvenescimento”.

10 Esta última afirmação, certamente, vale para nós leitores da obra, tendo em vista que para a consciência, sobretudo em seus primeiros estágios, ela concebe a si como verdade no objeto, donde resulta a nulidade de sua essência nesses primeiros passos e toda a sua ilusão da verdade.

11 Este ponto, expresso no §184 da Fenomenologia, é imperioso para compreender a saída que Hegel colocará na relação entre senhor e escravizado.

12 É certo que se detém nessa formulação o conhecimento que Hegel detinha da ciência da Economia Política Clássica, ainda que com suas limitações. Os estudos de Hegel nesse sentido podem ser averiguados em Lukács (2018).

13 Este passo é reconhecido por Lukács (2018, p. 613-629) e Inwood (1997). Neste último, cf. especialmente os verbetes ceticismo e estoicismo e consciência e autoconsciência. Lukács vê na consciência infeliz uma resolução progressista de Hegel, uma vez que esta representa a modernidade a partir da Reforma.

14 Cf. §18 da Fenomenologia em Hegel (2002).

15 “Ah! tinha vivido um dia cheio de sensações diversas e contrárias, desde as recordações da manhã, e o almoço aos dous amigos, até aquela última ideia de metempsicose, passando pela lembrança do enforcado, e por uma declaração de amor não aceita, mal repelida, parece que adivinhada por outros… Misturava tudo; o espírito ia de um para outro lado como bola de borracha entre mãos de crianças. Contudo, a sensação maior era a do amor” (Assis, 1997, p. 61).

16 Sabe-se que, em seu leito de morte, Machado de Assis recusou confessar-se pois, segundo seu juízo, seria hipocrisia de sua parte. Cf. Pereira (1959, p. 163).

17 Este fato era reconhecido por Machadinho em seu poema histórico Almada e é reafirmado por relato de viajantes da época, como Ewbank (1976) e Spix e Martius (1981).

18 O mérito dessa reflexão realizada por nós é de Schwarz (2012).

19 É bastante debatido um certo “materialismo” típico de Machado de Assis. Cf, p. ex., Schwarz (2019, p. 219) e Pereira (1959), neste último, especialmente o cap. V.

20 “A justiça das transações que se realizam entre os agentes da produção repousam no fato de que essas transações derivam das relações de produção como uma consequência natural. As formas jurídicas, nas quais essas transações econômicas aparecem como atos de vontade dos envolvidos, como exteriorizações de sua vontade comum e como contratos cuja execução pode ser imposta às partes contratantes pelo Estado, não podem determinar, como meras formas que são, esse conteúdo. Elas podem apenas expressá-lo. Quando corresponde ao modo de produção, quando lhe é adequado, esse conteúdo é justo; quando o contradiz, é injusto. A escravidão, sobre a base do modo de produção capitalista, é injusta, assim como a fraude em relação à qualidade da mercadoria” (MARX, 2017b, p. 386).

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2 comentários em “Machado de Assis e Hegel na Encruzilhada da Escravidão”

    • Por favor, Sr. Cid Seixas, desculpe-me o não conhecimento da língua portuguesa e sua difícil escrita. Se quiser mandar-me o artigo corrigido no que se refere a norma, agradeceria, já que você o sabe melhor.

      Porém, vamos ao conteúdo…

      A respeito da “insinuação”, lhe indico apenas a nota nº 2. Ali deixo claro não somente que “que Joaquim Maria não leu Hegel”, como também que “esta vinculação é apenas experimental e recai sobre nossa responsabilidade interpretativa”. Existe, então, a interpretação correta do Bruxo do Cosme Velho? É válida, portanto, somente a sua “insinuação”? Acredito que a obra extrapola os intentos do autor para tentar fazer valer interpretação monolítica dela. Mas, talvez, o portador da medalha Machado de Assis retenha o último segredo da obra machadiana e poderia compartilhar com nós. Aguardo sua contribuição.

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