Marx e Engels: centralização x federalismo

Por Marx e Engels, via marxists.org, traduzido por Gabriel Marucci

Escritos por Marx e Engels em 1842 em conexão com a publicação da Gazeta Renana (Rheinische Zeitung), esses artigos inéditos em português testemunham o ponto de vista de ambos autores sobre a polêmica entre a forma centralizada e a forma federalista do Estado – um tema que, mais tarde, na polêmica com os anarquistas, ganharia ainda novas determinações e contornos.

O primeiro texto é o começo de um artigo crítico que Marx planejou escrever contra o tratamento abstrato e niilista do problema do Estado centralizado no artigo de Moses Hess, Deutschland und Frankreich in bezug auf die Zentralstionsfrage (“Alemanha e França em relação à questão da centralização”), que foi publicado em o Suplemento do nº 137 da Gazeta Renana, de 17 de maio de 1842. O artigo de Marx evidentemente não estava terminado. A parte que foi escrita sobreviveu em forma de manuscrito.

Após o artigo de Hess, o problema da centralização foi discutido na Gazeta Renana em várias ocasiões. Em 29 de maio de 1842, o jornal começou a publicar trechos de De la Centralisation, um panfleto de Louis Cormenin que apareceu em Paris em 1842 sob o pseudônimo de “Timon”. Engels aproveitou esta ocasião para expressar suas opiniões sobre o assunto e sobre o liberalismo da Europa Ocidental em geral. O seu artigo, que conta abaixo, foi publicado na primeira metade de setembro de 1842.


A Questão da Centralização em si e relativamente ao Suplemento ao nº 137 da Rheinische Zeitung terça-feira, 17 de maio de 1842

Por Karl Marx

“Se o poder do Estado deve emanar de um único ponto ou se cada província, cada localidade, deve administrar-se a si própria, e o governo central, agindo apenas como o poder do todo, deve governar também as partes individuais do Estado quando o Estado tem que ser representado externamente – esta é uma questão sobre a qual as opiniões ainda estão muito divididas.”

O destino que uma questão do tempo tem em comum com toda a questão justificada pelo seu conteúdo e, portanto, racional, é que a pergunta e não a resposta constitui a principal dificuldade. A verdadeira crítica, portanto, analisa as perguntas e não as respostas. Assim como a solução de uma equação algébrica é dada uma vez que o problema tenha sido colocado na sua forma mais simples e aguçada, então cada questão é respondida assim que se torna uma questão real. A própria história mundial não tem outro método senão aquele de responder e dispor das velhas questões colocando novas. As melodias de cada período são, portanto, fáceis de descobrir. Elas são as questões do tempo e, embora a intenção e a visão de um único indivíduo possam desempenhar um papel importante nas respostas, e um olho treinado seja necessário para separar o que pertence ao indivíduo do que pertence ao tempo, as perguntas, por outro lado, são as vozes francas e implacáveis do tempo abrangendo todos os indivíduos; são os seus lemas, são as declarações supremamente práticas proclamando o estado da sua alma. Em cada período, por consequência, os reacionários são indicadores tão seguros da sua condição espiritual como os cães são do tempo. Para o público, parece que os reacionários fazem as perguntas. Por conseguinte, o público acredita que, se algum obscurantista não combate uma tendência moderna, se ele não submete algo a questionamento, então a questão não existe. O público em si, portanto, considera os reacionários como os verdadeiros homens do progresso.

“Se o poder do Estado deve emanar de um único ponto”, isto é, se um único ponto deve governar, ou se cada província etc., deve se administrar e o governo central agir apenas externamente como o poder do todo “em relação ao exterior” – a questão da centralização não pode ser formulada desta maneira. O autor [Moses Hess] nos garante que

“esta questão, considerada a partir de um ponto de vista mais elevado, desfaz a si mesma por ser fútil”, porque “se o homem é realmente o que ele deveria ser por sua essência, a liberdade individual não é separada da liberdade geral”. “Se, portanto, assume-se que uma nação é composta por pessoas justas, a questão em consideração não pode surgir sobremaneira”. “O poder central existiria em todos os membros etc., etc.” “Mas assim como em geral toda lei externa, toda instituição positiva etc., seria supérflua, assim também qualquer poder estatal central etc. Tal sociedade não seria um Estado, mas o ideal da humanidade”. ‘Pode-se tornar surpreendentemente fácil a solução dos problemas mais difíceis do Estado se se olhar para nossa vida social a partir de um alto ponto de vista filosófico. E teoricamente, tal solução dos problemas é completamente correta, de fato a única correta. Mas aqui não se trata de uma resposta teórica etc., mas de uma resposta prática, naturalmente apenas empírica e relativa, à questão da centralização etc.”

O autor do artigo começa com uma autocrítica de sua questão. Vista a partir de um ponto de vista mais elevado, ela não existe, mas ao mesmo tempo é-nos dito que, vista a partir deste ponto de vista elevado, todas as leis, instituições positivas, o poder estatal central e, finalmente, o próprio Estado, desaparecem. O autor elogia corretamente a “surpreendente facilidade” com que este ponto de vista é capaz de se orientar, mas não está correto em chamar tal solução dos problemas de “completamente correta, de fato a única correta”, não está correto em chamar este ponto de vista de “filosófico”. A Filosofia deve protestar seriamente por ser confundida com a imaginação. A ficção de uma nação de pessoas “justas” é tão alienígena à filosofia quanto a ficção de “hienas rezando” é para a natureza. O autor substitui “suas abstrações” pela filosofia. …


Centralização e Liberdade

Por Friedrich Engels

À primeira vista, parece incompreensível que na França um ministério como o de Guizot pudesse durar tanto tempo, e que de fato pudesse chegar ao poder. Confrontado por uma Câmara com plenos poderes para nomear e remover ministros, uma imprensa livre e influente, as instituições mais livres da Europa, uma concentrada opinião pública fortemente oposta a ele, Guizot, Ministro das Relações Exteriores, resistiu a isso por quase dois anos, perseguiu a imprensa, desafiou a opinião pública, liderou a Câmara, dissolveu-a, convocou uma nova, comprometeu a honra da França aos olhos das grandes potências e alcançou em plena medida a impopularidade que ele tem buscado. E o homem que fez tudo isso, que roubou do povo francês dois anos de sua história, pode se orgulhar de ter um partido tão forte na Câmara que somente uma coalizão forçada das opiniões mais diretamente opostas pode ameaçá-lo.

O Ministério de Guizot é o período de maior resplandecer do governo de julho, o triunfo de Louis Philippe e a humilhação mais amarga para todos aqueles que esperavam que a Revolução de Julho [1830] trouxesse a libertação da Europa. Os princípios de soberania popular, de imprensa livre, de um júri independente e de um governo parlamentar foram praticamente destruídos na França. O Ministério de Guizot estabeleceu as tendências reacionárias que conseguiram reafirmar-se na França e trouxe abertamente à vista a impotência do liberalismo francês diante das autoridades legítimas da Europa.

O fato está bem estabelecido. O reacionarismo em toda a Europa se alegra com isso. O partido liberal tem continuamente que ouvir dizer que a França diariamente renega suas instituições, mente à sua história desde 1789, elege Câmaras cuja lista de membros é em si uma sátira à Revolução de Julho, em suma, que por cada uma de suas ações, a nação mais liberal da Europa está traindo o liberalismo. E os liberais, nomeadamente, os bondosos alemães, coram de vergonha e gaguejam algumas desculpas incultas que eles próprios não levam muito a sério, silenciosamente esperam por uma Câmara liberal, e secretamente, furtivamente, esperam – por outra Revolução de Julho.

O fato não apenas pode ser admitido sem prejuízo ao princípio da liberdade, como também deve ser colocado em primeiro plano em nome desse princípio. Ele tem duas causas; uma delas já foi frequentemente apresentada como argumento contra os reacionários pelos pensadores independentes mais audaciosos, a saber, a ambiguidade e o meio-termo da constituição francesa, na qual o princípio da liberdade nunca é explicitamente formulado e implementado; a outra é a centralização.

Apesar dos panfletos de Cormenin, apesar de sua defesa brilhante e eloquente da centralização francesa, esta continua a ser a principal causa do retrocesso da legislação francesa. Cormenin não prova realmente nada, embora quase tudo em seu livro seja correto e bom. Pois ele não baseia a centralização nas leis gerais da razão, mas à justifica com base na natureza especial do espírito nacional francês e no curso da história.

Esses são motivos que podemos aceitar por enquanto, porque antes de tudo temos que fornecer a prova de que tal centralização é irracional e, portanto, a causa dos efeitos mencionados acima.

A centralização, na forma extrema em que prevalece na França atualmente, é o Estado ultrapassando seus limites, indo além de sua natureza essencial. O Estado é limitado, por um lado, pelo indivíduo e, por outro lado, pela história mundial. Ambos são prejudicados pela centralização. Ao assumir um direito que pertence apenas à história, o Estado destrói a liberdade do indivíduo. A história eternamente teve e sempre reterá o direito de dispor da vida, da felicidade, da liberdade do indivíduo, porque é a atividade da humanidade como um todo, é a vida da espécie e como tal é soberana; ninguém pode se revoltar contra ela, porque é um direito absoluto. Ninguém pode reclamar contra a história, porque seja qual for a parte que couber a alguém, essa pessoa vive e compartilha do desenvolvimento da humanidade, que é mais do que qualquer desfrute. Que ridículo seria se os súditos de Nero ou de Domitianos reclamassem que não nasceram em uma época como a nossa, quando o degolamento ou o assamento não acontecem tão facilmente, ou se as vítimas do fanatismo religioso medieval reprovassem a história porque não viveram depois da Reforma e sob governos tolerantes! Como se sem o sofrimento de alguns, os outros pudessem ter progredido! Assim, os trabalhadores ingleses, que atualmente sofrem amargamente com a fome, têm de fato o direito de protestar contra Sir Robert Peel e a Constituição inglesa, mas não contra a história, que os está fazendo de porta-estandartes e representantes de um novo princípio de direito. A mesma coisa não é verdade para o Estado. Ele é sempre um Estado particular e nunca pode reivindicar o direito, que a humanidade como um todo possui naturalmente em sua atividade e desenvolvimento da história, de sacrificar o individual pelo geral.

Assim, o Estado centralizado, é claro, comete uma injustiça quando, como ocorre na França e como Cormenin admite, sacrifica as províncias para o centro e, assim, introduz uma oligarquia, uma aristocracia local que não é menos injusta e irracional do que a aristocracia da nobreza e do dinheiro. A liberdade é essencialmente condicionada pela igualdade, e apesar de toda égalité devant la loi, a diferença entre parisienses e provincianos, no que se refere à educação, participação na soberania popular e verdadeiro desfrute moral da vida, é ainda mais do que suficiente para obstruir o desenvolvimento natural das instituições francesas em direção à liberdade completa.

A história da centralização na França, assim como em qualquer outro lugar, caminha em paralelo com a do absolutismo. Luís XI foi o fundador de ambos; as guerras huguenotes foram a última tentativa significativa das províncias de se revoltarem contra a hegemonia de Paris, e a partir daí a supremacia da capital sobre a França foi amplamente reconhecida. Assim que a centralização do Estado acontece de forma séria, há uma centralização local, a hegemonia do centro. Enquanto o absolutismo durou, apenas Paris se beneficiou dele, as províncias tiveram que arcar com os custos do Estado e com a arbitrariedade de Sua Majestade. Toda cultura, todo esprit, toda ciência de da França, em geral, foram concentrados em Paris, existiam para Paris; a imprensa operava apenas em e para Paris; o dinheiro das províncias, que a corte atraía para si, era desperdiçado em e para Paris. Isso deu origem à grande desproporção na cultura entre Paris e o resto do país que, com a queda do absolutismo, se desenvolveu de forma extremamente desvantajosa para a França. Somente a centralização tornou a revolução possível, da maneira como eventualmente aconteceu; mas a centralização também havia criado o abismo entre Paris e o resto do país tão grande que Paris pouco se importava com o bem-estar das províncias, desde que não fosse afetada pela opressão geral. Os estados da nação, a representação do país oprimido, não a cidade de Paris, começaram o trabalho da revolução; apenas quando os problemas se tornaram questões de princípio e os interesses da capital foram envolvidos é que esta tomou a iniciativa e dominou o curso dos eventos. Mas como resultado, a participação do interior diminuiu, e este, e os representantes eleitos por ele, deram a Napoleão, por sua apatia, a oportunidade de elevar-se gradualmente ao trono imperial. Sob a Restauração, quando surgiram os partidos políticos, a mesma luta entre o interior e a capital se tornou evidente; Paris logo alcançou maior clareza de propósito e decidiu contra os Bourbons e a monarquia pela graça de Deus; o interior, com seu menor grau de educação, colocou poucos liberais na arena; era em grande parte apático e, portanto, favorecia o regime existente ou até mesmo apoiava fanaticamente o ancien régime. Assim, a Revolução de Julho foi feita apenas por Paris; a grande massa dos indiferentes era muito preguiçosa para se levantar contra a capital e seu novo princípio; as regiões mais ignorantes do país permaneceram leais aos Bourbons, mas não puderam fazer nada para combater a centralização. Desde então, quase todas as Câmaras permitiram que os ganhos da Revolução de Julho fossem roubados uma após outra, e a centralização, além de outras causas, também foi responsável por isso. Pois todas as partes do país enviam seus deputados para as Câmaras e, apesar das eleições controladas e da corrupção, cada circunscrição demonstra, pela sua escolha, o grau de sua educação política. Quem se deixa subornar e ditar certamente não é livre e resoluto; assim, age com toda a razão quando, elegendo um deputado ministerial, se submete à tutela que lhe cabe. A contradição entre a Revolução de Julho e as Câmaras de 1842 é a contradição entre a capital e o interior do país. Através de Paris, a França pode, de fato, fazer revoluções e criar instituições livres de uma só vez, mas não pode mantê-las. Quem não consegue entender as Câmaras de 1842 mostra que confundiu franceses e parisienses, que não percebeu a contradição da centralização.

Não sejamos injustos! A contradição da qual a centralização sofre é inegável; mas também devemos permitir-lhe o direito histórico e racional que é sua disputa. A centralização é – e esta é sua justificação – a essência, o nervo vital do Estado. Todo Estado necessariamente deve buscar a centralização; todo Estado é centralizado, desde a monarquia absoluta até a república; a América tanto quanto a Rússia. Nenhum Estado pode prescindir da centralização, o Estado federal assim como o Estado centralizado desenvolvido; enquanto existirem Estados, cada Estado terá um centro, cada cidadão desempenhará suas funções cívicas apenas por virtude da centralização. Sob essa centralização, a administração comunal, tudo o que afeta cidadãos individuais ou corporações, pode muito bem ser deixado livre, e até deve ser deixado livre, desde porque a centralização está concentrada em um único centro, porque tudo aqui forma uma única unidade, sua atividade deve necessariamente ser geral, sua competência e poderes abrangendo tudo o que é de validade geral, mas deixando livre tudo o que diz respeito apenas a este ou aquele indivíduo particular. Daqui segue-se o direito do poder central do Estado de promulgar leis, controlar a administração, nomear funcionários estatais etc.; daqui segue-se ao mesmo tempo o princípio de que o poder judicial de maneira alguma deve estar ligado ao centro, mas deve estar nas mãos do povo – tribunais de júri – e que, como já foi dito, assuntos comunitários etc., não estão dentro da competência do centro, e assim por diante.

A natureza central do Estado não estipula necessariamente que uma única pessoa deva ser o ponto central, como em uma monarquia absoluta, mas apenas que um indivíduo ocupe a posição central, como em uma república em que o presidente pode ocupar essa posição. Pois não se deve esquecer que o mais importante não é a pessoa no centro, mas o próprio centro.

Voltando ao nosso início. A centralização é o princípio subjacente do Estado, no entanto, a centralização necessariamente obriga o Estado a ir além de si mesmo, a tornar-se algo universal, supremo e a reivindicar a autoridade e a posição que pertencem apenas à história. O Estado não é, como se pensa, a realização da liberdade absoluta – caso contrário, a dialética acima do conceito de Estado seria inválida – mas apenas a realização da liberdade objetiva. A verdadeira liberdade subjetiva, que possui os mesmos direitos da liberdade absoluta, exige uma forma diferente de realização além do Estado.

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