Comentário sobre The Class Matrix de Vivek Chibber

Por Waldez da Silva[i]

O sociólogo estadunidense Vivek Chibber há muito tempo vem travando uma luta contra o culturalismo; primeiro em 2013 com seu livro Postcolonial Theory and the Specter of Capitalism no qual ele critica os estudos pós-coloniais por serem incapazes dar conta do mundo contemporâneo. O livro encontrou repercussões positivas em figuras como Noam Chomsky e negativas em figuras como Gayatri Spivak. No seu mais recente livro The Class Matrix (agosto de 2022), porém, Chibber amplia o alcance de sua crítica para além dos estudos pós-coloniais para defender dois pontos: (1) não apenas o culturalismo é incapaz de entender o capitalismo contemporâneo, mas (2) ele seria um entrave para uma análise estrutural das classes sociais. Há méritos na argumentação de Chibber, mas também há um problema que traz limitações sérias a sua argumentação, esse problema é o abandono da teoria marxiana do valor que limita a descrição da estrutura capitalista das sociedades atuais.


Cultura é um termo complicado e as análises fazem uso dele costumam se reproduzir na nebulosidade, o primeiro mérito de The Class Matrix é advogar por análises sociais em terreno mais firmes; para isso, porém, é preciso apontar porque se sentiu a necessidade de análises culturais para, só então, mostrar como a cultura passou a ocupar o lugar da estrutura no pensamento de esquerda contemporâneo – particularmente o marxista.

Segundo Chibber, a virada cultural na análise de classe se deu pela incapacidade sentida pelos marxistas em explicar a continuidade do capitalismo frente ao entendimento que o próprio sistema deveria gerar as condições pelas quais a classe trabalhadora se organizaria para derrubá-lo – o que Chibber identifica como tese ortodoxa da formação da classe trabalhadora. As dificuldades de uma classe política trabalhadora cada vez mais integrada ao mundo do capital foi sentida pelo marxismo a partir de meados do século XX como uma contradição que as análises estruturais do capital não conseguiriam suplantar. Em vez de tais análises, as culturais seriam capazes de explicar como a classe dominante faz uso da cultura para moldar a consciência da classe trabalhadora a fim de mantê-la em sua condição subordinada. A cultura seria, pois, um impedimento para a organização da classe trabalhadora.

O quadro que se tem é um no qual se aceitou a tese de que o capital gera intrinsecamente as condições de organização dos trabalhadores, mas esses têm seu ímpeto revolucionário cerceado pelo controle cultural da classe dominante. A esse entendimento se seguiu outro segundo o qual, se as ações da classe trabalhadora organizada dependem da capacidade de interpretação oferecida pela cultura, não há razão para negar que, no geral, as ações da classe trabalhadora também dependem da cultura. Noutras palavras, se a classe para si dependeria de algum arcabouço cultural para se realizar, não há motivos para que a classe em si também não dependa da cultura – uma vez que tanto uma como outra dependem de ações específicas e essas, por sua vez, dependeriam de atos interpretativos.

Contrário aos dois pontos anteriores, o argumento que Chibber desenvolve no livro visa reinstalar o primado explicativo da análise estrutural, ao menos no que se refere às questões de classe.

Segundo ele, mesmo que se aceite o papel intermediário da cultura entre as forças da estrutura e as ações dos trabalhadores isso não significaria que a cultura seria o fator mais importante. A estrutura capitalista seria especial porque, de modo simplificado, ela diz respeito aos recursos necessários para a reprodução da vida do trabalhador. Por isso, as pressões e sanções sofridas pelo trabalhador não precisam ser intermediadas por outros atores sociais, mas são sentidas diretamente na pele.

Que o acesso a recursos necessários para a reprodução da vida de um trabalhador numa sociedade capitalista esteja condicionado à venda de sua força de trabalho implicaria a adequação da cultura às pressões da estrutura. Ou seja, as ideias mantidas pelos trabalhadores também seriam pressionadas a se adequarem ao capitalismo para garantir a mínima sobrevivência do trabalhador. Por sua vez, isso implicaria algo que não é explicitamente dito por Chibber –  mas é necessário para todo  o argumento se manter em pé – a saber: que os trabalhadores sejam capazes de produzir e cotejar ideias a despeito da cultura em que estão inseridos.

O que Chibber diz claramente, porém, e que é consistente com a leitura acima é que sua teoria de classe trata os trabalhadores como seres racionais e capazes de pensamento próprio, e não como simples receptáculos da cultura.

Esse trabalhador, pois, não é enganado por uma falsa consciência que o impediria de ver os benefícios que a organização política lhe traria, mas sim é forçado a encarar a precariedade da própria situação – onde um erro político pode custar sua chance de continuar vivo – e tem como adversário o capitalista – cuja situação não é, no geral, tão precária, e está ciente da situação do empregado.

Nesse contexto (ou matriz, como Chibber parece preferir), a tendência do trabalhador a procurar respostas individualistas em detrimento das coletivas a fim de melhorar sua situação é plenamente razoável.

O conjunto das descrições feitas leva Chibber a afirmar que, ao contrário do que diz o marxismo ortodoxo, não há garantia alguma de que o resultado da relação dos trabalhadores com seu contexto econômico seja a organização política. O resultado mais provável, em períodos de baixo crescimento econômico e em que os trabalhadores não possuem organização política prévia na qual se apoiarem, é a resignação.

Resignação é a contribuição de Class Matrix para a teoria das classes sociais.

Esse seria o período no qual nos encontramos.

Nosso período, diz ainda o autor, é caracterizado por mudanças sociais importantes em relação ao período áureo da organização dos trabalhadores. Em especial, a economia teria saído de seu período industrial e se consolidando no setor de serviços, transformando consigo as relações interpessoais possíveis entre trabalhadores, cada vez mais dispersos e sem os indicadores óbvios de sua identidade em comum, que a industria fornecia.

Chibber nos coloca numa posição bastante infeliz para aqueles que acreditam na luta organizadas dos trabalhadores, pois não parece haver boas razões para acreditar em sua viabilidade quando se faz apenas uma análise estrutural da questão. E, de fato, ele não nos dá nenhuma esperança estrutural. Diante desse quadro melancólico de resignação, o sociólogo aposta numa intervenção cultural gerada fora das relações de trabalho para se criar entre os trabalhadores uma cultura de solidariedade na qual haja bons motivos para lutar, e acreditar que é possível vencer. Essa esperança, porém, é particularmente amarga quando vem de um autor que se destacou por seu contumazes ataques ao culturalismo.

 A descrição que Chibber faz das relações capitalistas, no entanto, deixará o leitor marxista intrigado. Ele tenta apontar as várias formas pelas quais as estruturas econômicas constrangem os trabalhadores, mas em sua tentativa de demonstrar as dificuldades criadas pelo capitalismo para a organização políticas dos subordinados, a descrição da estrutura acaba por ser apenas negativa. O capital se destaca apenas como uma fonte de cerceamento da atividade política através das pressões exercidas através dos recursos vitais.

Acredito que isso se dê por causa da filiação de Chibber ao marxismo analítico (Erik Olin Wright orientou sua tese de doutorado), mais especificamente, pela recusa da teoria do valor marxiana típica da vertente estadunidense. Isso fica claro quando ele tenta descrever os elementos essenciais da estrutura econômica e dentre eles não está o valor.

Caberia ao valor, numa descrição que o acolhesse, condicionar as condições de moradia similares entre os trabalhadores, por exemplo. Ou dar a eles, o mesmo interesse em questões tangenciais às relações de trabalho, como o custo de transporte ou o bom funcionamento do posto de saúde da região. Tanto o transporte quanto a saúde são também elementos importantes na reprodução da vida do trabalhador, o primeiro pela porcentagem dos rendimentos que consome e o segundo também pelo custo que pode cobrar na força de trabalho que uma pessoa tem para vender. Que trabalhadores, mesmo aqueles do setores de serviços, tendam a ser colocados numa mesma posição frente a ambos os assuntos se deve, se levarmos a teoria de valor de Marx a sério, a  posição que ocupam na matriz econômica. Seria o valor que possibilitaria a análise de Chibber sair da esfera da produção para a esfera da distribuição.

Por isso, mesmo que se concorde com boa parte do argumento de Chibber, a estrutura econômica tal qual ele a concebe só pode nos levar a um beco sem saída; do qual Chibber propõe que se saia por uma intervenção cultural. E mesmo que tal manifestação cultural de solidariedade venha a acontecer, não é possível ver por qual motivo essas ideias seriam mais eficazes do que quaisquer outras em ressignificar as relações de trabalho, quando elas enfrentarão as mesmas condições das demais, que tiveram de se adequar às pressões sobre as necessidades vitais dos trabalhadores – segundo o próprio argumento do sociólogo. É o próprio Chibber, pois, que nos alerta mais uma vez sobre os limites da cultura frente ao capital.

Se adicionarmos uma teoria do valor à matriz, porém, a posição econômica dos trabalhadores os colocará do mesmo lado em várias outras dinâmicas sociais – transporte e saúde, como jé se exemplificou.  O não reconhecimento de si enquanto vendedores de  força de trabalho não impossibilitaria que se reconhecessem como aliados frente ao saneamento básico, custo do aluguel, qualidade da escola pública e policiamento. Reconhecimento que, agora sim, possibilitaria a intervenção duma cultura da solidariedade para lhes explicar como foram colocado do mesmo lado, não por um acaso, mas pelas condições que lhe foram possibilitadas no processo de valorização do valor.

A inclusão do valor, pois, no argumento de Chibber ajudaria a mantê-lo coerente – no que se refere ao primado explicativo da estrutura de classes –, e mais esperançoso – quanto à possibilidade de organização dos trabalhadores.


[i]       Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Sergipe

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