Rosa Luxemburgo e o cristianismo primitivo

Por Guilherme Giotti Sichelero 

O cristianismo e, mais particularmente, o papel social dessa religião, foram temas caros aos clássicos do marxismo: Engels, por exemplo, produziu trabalhos importantes a respeito do protestantismo e do cristianismo primitivo. Nesse sentido, sobretudo a partir de Rosa Luxemburgo e Karl Kautsky, desenvolveu-se o que poderíamos denominar de interpretação materialista-dialética do cristianismo primitivo (em contraposição aos trabalhos de Ludwig Feuerbach) ou de interpretação marxista clássica do cristianismo primitivo. Sendo assim, neste trabalho, busca-se discutir e apresentar, em linhas gerais, as contribuições de Rosa Luxemburgo, assim como algumas considerações particulares do autor a respeito dessa tradição, com ênfase nos trabalhos de Engels e, sobretudo, Luxemburgo.


A tradição marxista, sobretudo os primeiros marxistas, produziram trabalhos sobre os mais variados assuntos e temas que hoje são pouco estudados pelos intelectuais que se vinculam a essa tradição. Entre esses temas, encontra-se a questão do cristianismo, mais particularmente a religião dos primeiros cristãos, isto é, o cristianismo primitivo. Dentro do marxismo clássico[1], assim denominado por Perry Anderson, há quatro obras imprescindíveis que formam a base da interpretação marxista do cristianismo primitivo: a) as obras de Friedrich Engels, Bruno Bauer e o Início do Cristianismo, de 1882, e Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo, de 1895; b) o artigo de Rosa Luxemburgo, Socialismo e as Igrejas, de 1905; c) o volumoso trabalho de Karl Kautsky, A origem do cristianismo, de 1908[2].

Rosa Luxemburgo, em sua obra, visava combater os eclesiásticos que, manipulando seus fiéis, pregavam contra o comunismo afirmando que o cristianismo nada tinha a ver com o marxismo. Em contraposição a isso, Rosa Luxemburgo, realizando uma análise histórica do período dos primeiros cristãos, defendeu duas teses principais: i) o cristianismo primitivo foi um movimento comunista; ii) o cristianismo primitivo teve como base social o proletariado romano.

O cristianismo primitivo como uma expressão do comunismo aparece, no trabalho de Rosa Luxemburgo, sempre em comparação com o comunismo moderno. Nesse sentido, a principal e essencial diferença entre ambas expressões do comunismo reside no fato de que enquanto o comunismo moderno tem como base o proletariado na era do capitalismo, isto é, no período em que a classe do proletariado não só é uma classe fundamental do modo de produção capitalista, mas sobretudo são aqueles que produzem a maior parte da riqueza social, o proletariado na Roma antiga era uma classe improdutiva que vivia nas grandes cidades, principalmente em Roma, das esmolas da classe dominante escravagista-latifundiária: eram os escravos aqueles que sustentavam a sociedade. Como consequência, enquanto o comunismo moderno prega a socialização dos meios de produção, o cristianismo primitivo pregava a socialização dos bens de consumo. Segundo Luxemburgo,

os proletários romanos não viviam do trabalho, mas das esmolas que o governo distribuía. Assim, a exigência, pelos cristãos, da coletivização da propriedade, não diz respeito aos meios de produção, mas aos bens de consumo. Eles não pediam que a terra, as oficinas e os instrumentos de trabalho se tornassem propriedade coletiva, mas apenas que tudo deveria ser repartido entre eles, casas, roupas, alimentos e os produtos acabados mais necessários à vida. Os comunistas cristãos não se preocuparam nada em inquirir acerca da origem destas riquezas. O trabalho de produção recaiu sempre sobre os escravos. O povo cristão desejava apenas que os que possuíam a riqueza abraçassem a religião cristã e fizessem das suas riquezas propriedade comum, para que todos pudessem gozar destas coisas boas em igualdade e fraternidade[3]

A existência de uma plebe urbana que vivia nas principais cidades no fim da república e durante o período imperial de Roma é bem conhecida, assim como a política de panis et circenses aplicada pela classe dominante: cereais gratuitos ou subsidiados e eventos culturais para acalmar as massas. Há autores que interpretam essa classe como uma espécie de lumpemproletariado antigo, visto que não estava vinculada ao processo produtivo e viviam de subsídios estatais[4]. Contudo, é conhecido como Marx classificava-os como sendo um proletariado. No prefácio do Dezoito Brumário de Luís Bonaparte[5], Marx citou a famosa frase de Jean de Sismondi[6]: “o proletariado romano vivia à custa da sociedade, ao passo que a sociedade moderna vive à custa do proletariado”[7].

Para Rosa Luxemburgo, a ausência do capitalismo e de uma indústria pesada nas cidades que absorvesse esse proletariado urbano[8], que havia sido despojado de seus meios de produção devido à expansão do latifúndio escravagista, deixou-os em uma situação de miséria total. Como os escravos não poderiam apresentar uma alternativa histórica para essa situação, o proletariado, vivendo de esmolas da classe dominante, voltaram-se “para o Céu procurando nele a salvação […] a religião cristã aparecia a estes infelizes seres como um cinto de salvação, uma consolação e um encorajamento e tornou-se, logo desde o princípio, a religião dos proletários romanos”[9]. Nesse sentido, o proletariado como uma classe social improdutiva e secundária no modo de produção escravista também não poderia oferecer outra alternativa histórica. Nesse sentido, o comunismo dos primeiros cristãos correspondia à sua posição material. Segundo Luxemburgo,

os cristãos do I e II século foram fervorosos adeptos do comunismo. Mas este comunismo era baseado no consumo de produtos acabados e não no trabalho, e mostrou-se incapaz de reformar a sociedade e de pôr fim à desigualdade entre os homens e de derrubar a barreira que separa ricos e pobres. Por isso, exatamente como antes, as riquezas criadas pelo trabalho — para toda a sociedade — era fornecido pelos escravos. O povo, desprovido de meios de subsistência, recebia apenas esmolas[10]

Engels, em seus dois trabalhos, já havia contribuído para a interpretação marxista do cristianismo primitivo, sobretudo ao apresentar essa religião como de caráter universal e como manifestação dos interesses dos oprimidos. Rosa Luxemburgo acrescentaria o caráter comunista-proletário e sua tese sobre a socialização dos bens de consumo. Há alguns autores que interpretam certa assimetria entre Engels e Luxemburgo, sobretudo no que diz respeito à caracterização comunista e proletária dos primeiros cristãos. Afirmam que Engels nunca teria utilizado o termo “comunista” e, além disso, teria identificado a base social da religião entre os escravos. Porém, no primeiro parágrafo de Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo, o revolucionário prussiano afirmou com todas as letras que o “cristianismo era, na origem, o movimento dos oprimidos: apareceu primeiro como a religião dos escravos e dos libertos, dos pobres e dos homens privados de direitos, dos povos subjugados ou dispersos por Roma”[11]. Embora não tenha realmente utilizado o termo “comunista” para se referir a esse movimento, realiza várias comparações com o movimento socialista moderno, além disso fica claro que Engels entendia que o cristianismo primitivo era um movimento dos oprimidos de maneira ampla, sendo os escravos a maioria da classe produtiva, nada mais natural que tivessem um papel importante no movimento, entretanto Engels não afirmou qual seria a “classe social essencial” do cristianismo primitivo, deixando claro seu caráter abrangente[12].

Sendo assim, entendo o trabalho de Luxemburgo como um complemento importante (talvez superação?) das obras de Engels. Enquanto o Engels lançou as bases para a interpretação marxista do cristianismo primitivo, Luxemburgo apresentaria teses mais pontuais. Caberia a Kautsky produzir uma obra mais volumosa e completa acerca do assunto, mesmo que com algumas divergências importantes, principalmente, com Engels.

Por fim, para concluir, uma citação de August Thalheimer que, em minha perspectiva, sintetiza, em linhas gerais, a interpretação marxista sobre os primeiros cristãos:

O ponto de partida do cristianismo, assim considerado, foi a religião nacional de um pequeno povo da Palestina: os judeus. O deus nacional judeu foi elevado à dignidade de deus mundial. Tinha, com efeito, qualidades particulares que o predestinavam a converter-se no ponto de partida da religião mundial da antiguidade, porque era o deus de um povo oprimido e, naturalmente, as classes e povos oprimidos do Império Romano foram os primeiros crentes desta nova religião[13]


Notas

[1] Ver: ANDERSON, P. Considerações sobre o marxismo ocidental. São Paulo: Boitempo, 2004.

[2] Para uma análise mais aprofundada e sistemática do cristianismo primitivo nas obras dos marxistas clássicos, ver: MOURA, R. P. O Cristianismo Primitivo Segundo o Marxismo Clássico. UFRJ, TCC em História, 2013. Disponível em: < https://www.academia.edu/9537325/O_Cristianismo_Primitivo_Segundo_o_Marxismo_Cl%C3%A1ssico>.

[3] LUXEMBURGO, R. Socialismo e as Igrejas. Marxist.org, 1905. Disponível em: < https://www.marxists.org/portugues/luxemburgo/1905/mes/igrejas.htm>.

[4] Ver: UTCHENKO, S. Classes e estrutura de classes na sociedade escravista antiga. In: PINSKY, J. (org.). Modos de produção na antiguidade. São Paulo: Global, 1982.

[5] MARX, K. O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

[6] Jean de Sismondi (1773–1842) foi um historiador e economista suíço. Teve papel importante nos estudos clássicos da economia política. Sua obra Novos Princípios de Economia Política inicia a crítica da economia política clássica, a se contrapor a tese de que o capitalismo levaria, inevitavelmente, a uma sociedade harmônica e de bem-estar social e ao afirmar que, ao contrário, a produção de maior riqueza leva também ao aumento da pobreza. Marx classificou-o como um socialista pequeno-burguês, devido ter conseguido superar as barreiras da economia política burguesa, mas, em contrapartida, não conseguir ter uma visão para além do capitalismo. Há quem tenha afirmado, provavelmente de maneira exagerada, que Sismondi foi tão importante para Marx quanto Hegel.

[7] “Por fim, espero que o meu escrito contribua para eliminar esse chavão do suposto cesarismo, que se tornou corrente em especial na Alemanha. Quando se faz essa analogia histórica superficial, esquece-se o principal, ou seja, que, na Roma antiga, a luta de classes se travava apenas no âmbito de uma minoria privilegiada, entre os ricos livres e os pobres livres, enquanto a grande massa produtiva da população, os escravos, compunha o pedestal meramente passivo para aqueles contendores. Esquece-se o dito importante de Sismondi: o proletariado romano vivia à custa da sociedade, ao passo que a sociedade moderna vive à custa do proletariado” In: MARX, 2011, op. cit., p. 19.

[8] “Há apenas uma diferença entre Roma na sua decadência e o império dos czares; Roma nada sabia de capitalismo; não existia ali a indústria pesada […] Assim se havia formado em Roma um exército numeroso dos que nada possuíam — o proletariado — , não tendo mesmo a possibilidade de vender a força do seu trabalho. Este proletariado, vindo do campo, não podia, ser absorvido pelas empresas industriais como acontece hoje; tornaram-se vítimas da pobreza desesperada e foram reduzidos à mendicidade” In: LUXEMBURGO, 1905, op. cit., s/p.

[9] LUXEMBURGO, 1905, op. cit., s/p.

[10] LUXEMBURGO, 1905, op. cit., s/p.

[11] ENGELS, F. Contribuição Para a História do Cristianismo Primitivo. Marxist.org, 1895. Disponível em: <https://www.marxists.org/portugues/marx/1895/mes/cristianismo.htm>.

[12] Engels, em seus dois trabalhos, sempre dá certo destaque aos escravos, contudo nunca afirma objetivamente ser uma religião dos escravos, sempre deixando claro que o cristianismo foi uma religião dos oprimidos de modo geral.

[13] THALHEIMER, A. Introdução ao materialismo dialético. Centro de Estudos Victor Meyer, 2014. p. 10.


Sobre o autor

Guilherme Giotti Sichelero é licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e especialista em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do Piauí (UFPI).

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1 comentário em “Rosa Luxemburgo e o cristianismo primitivo”

  1. Olá, aqui Sebastião Aleixo, Cel da PMES e graduando na Ciências Sociais pela UFES, quero externalizar minha imensa satisfação em hoje pela manhã descobrir este site. Parabéns aos organizadores e, mormente ao Guilherme Giotti pelo singelo, porém brilhante post. Continuem!

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