Sectarismo vs Ecumenismo: O caso de V.I. Lênin

Por Roland Boer, via Monthly Review, traduzido por Diego Costa da Silva Araújo

Era Lenin, como as interpretações iniciais entenderam, um sectário que procurava destruir todos que discordavam dele? Ou ele também possuía tendências ecumênicas ao lado, ou em tensão com o seu sectarismo? Há, talvez, uma relação mais profunda entre sectarismo e ecumenismo em seus trabalhos?


O material da época, especialmente antes da Revolução de Outubro, é cheio de evidências abundâncias do sectarismo de Lenin, e a lista de diversos grupos e indivíduos que ele se opôs durante os anos é de fato longa – Narodniks, Mencheviques, Construtores-de-Deus, Bundits, Liquidadores, Otzovistas, Socialistas-Revolucionários, etc. Contra esses grupos, ele instiga que a “pureza da Social-Democracia revolucionária é mais preciosa do que a unidade do partido.”[1] Por esse motivo, ele era contra a conciliação com os demais partidos de esquerda ou liberais nas Dumas (1905-17). Ele era contrário aos “conciliadores”, conduzidos por Trotsky, que buscou unificar as facções em conflitos entre os Sociais-Democratas. Ele até mesmo conseguiu argumentar que esses conciliadores, em cooperação de todas as formas com os oponentes, na verdade, eram divisões agravantes.[2] Por que? O resultado seria sempre o compromisso, uma diluição da tarefa socialista. À luz de tudo isso, seus oponentes certamente sentiram que ele era um jogador de facção, doutrinário e imperdoável. E eles fizeram o seu melhor para culpar todas as diferenças, fragmentações e polêmicas acrimoniosas aos seus pés, ao ponto de perserguirem aqueles no movimento socialista internacional, como Karl Kautsky e Rosa Luxemburgo, deixando em paz  os estudiosos subsequentes.[3] De fato, longe de ser uma invenção de camaradas após a Revolução de Outubro,  o termo “Leninismo” foi inicialmente usado como algo pejorativo pelos opositores, como uma acusação de fragmentação.[4]

Entretanto, um exame mais microscópico do material revela um padrão constante de conflitos polemicos com oponentes e simultaneamente conduz à unidade. O exemplo mais claro diz respeito à ruptura dos Bolcheviques-Mencheviques, que surgiu da consternação de muitos no Partido Social-Democratico após o Segundo Congresso. Ainda sim, dentro desse período das Dumas, até 1905, eles concordaram em realizar uma conferência em conjunto, o marco histórico do congresso unido de 1906.[5] Os documentos do congressos são cheios de declarações do tipo “O Congresso Unificado do Partido Trabalhista Social-Democrata Russo realizou-se. A fragmentação não existe mais.”[6] Ademais, a concordância incluía também o Partido Social-Democrata Letonio, Polaco e também o Bund. Mas assim como o desejo da unificação ganhou forças, o mesmo ocorreu com as tendências de sectarismo que se manifestaram mais uma vez. Então encontramos acusações de manipulação de votos e intrigas ardilosas, ambas durante e após o congresso.[7] Mais uma vez, as diversas facções se fragmentaram, apenas para alguns anos depois, tentar mais um projeto de unificação.[8] Parecia que forças exponenciais estavam em constante conflito, inviabilizando quaisquer tentativas de união.

Uma tensão similar surgiu durante o mesmo período das reuniões nas Dumas, quando os Sociais-Democratas frequentemente consideravam alianças com outros partidos socialistas, como os Socialistas-Revolucionários, e mais partidos liberais, como os Trudoviques e os Cadetes. O texto de Lênin “Os Sociais-Democratas e as Acordancias Eleitorais.”[9] capta muito bem essa tensão. De um lado, é absolutamente vital se manter fiel à causa e não comprometer fazendo quaisquer tipos de acordos com quaisquer outros partidos políticos, não fazer nenhum bloco, aliança ou bilhetes conjuntos.[10] Contudo, em uma situação de extrema necessidade talvez seja necessário formar alianças, mesmo com partidos liberais, e apenas temporariamente. Como Lenin argumenta mais tarde, preocupando-se com a necessidade de aliar-se a oponentes após a Revolução de Outubro, às necessidades das lutas talvez dite as necessidades por alianças, porém essas alianças nunca devem sacrificar um pingo da independência ideológica. Sobre esse tópico, há de se trabalhar em conjunto por uma mesma causa, mas então usar da situação para demonstrar como os outros partidos estão errados – como os Bolcheviques fizeram quando juntaram forças de tempos em tempos com os liberais na luta contra o czarismo, com os Mencheviques e os Socialistas-Revolucionários nos meses cruciais de 1917, e até mesmo com as forças de Kerensky da Assembléia Provissional com a intenção de combater o golpe de Kornilov no mesmo ano.[11]

Eu sugiro ao menos três motivos para a extensão dessa tensão no pensamento político e na prática de Lenin. O primeiro é puramente prático. Em uma situação política específica, pode-se aprovar um “acordo de luta”; se os Socialistas-Revolucionários, partidos de camponês e até mesmo outras organizações semi-políticas compartilham uma oposição aos proprietários da terra, o czar, a Duma, o governo provisório ou a exploração capitalista, e se eles representam os objetivos gerais dos camponeses e até mesmo a pequena-burguesia, então os Sociais-Democratas irão se juntar a um front unido. Tal acordo de luta é, apesar de tudo, o interesse no socialismo; será até mesmo providenciado a oportunidade de expor posições semi-socialistas de outros partidos.[12]

A segunda razão é pessoal. Lenin era conhecido por trabalhar muito próximo, praticamente diariamente, com aqueles que ele atacava na imprensa ou nos encontros do partido. Para mais, ele também não hesitaria em atacar o camarada mais próximo se ele pensasse que esse camarada tivesse cometido um erro, apenas para encontrar o mesmo camarada no dia seguinte para acolhê-lo com base em seu objetivo em comum[13]. Alguns exemplos torna isso claro: apesar de seu ataque à Trotsky, Lenin e Trotsky eram dois pilares da Revolução Russa e também do governo bolchevique inicial do que viria a se tornar a URSS; e os intrigantes God-Builder, Anatoly Lunacharsky, cujo Lenin atacou sem piedade na primeira década do século XX, foi nomeado Comissário da Iluminação após a Revolução Russa e se tornou particularmente próximo a Lenin.[14]

Em um nível teórico (sem relação com as motivações práticas e pessoais), Lenin sentiu que o caminho para a união não era através da conciliação, ao invés disso, era dialético, pois apenas discussões abertas e incisivas levariam à união. Ele argumentou de novo e de novo que, como o epigrafe para WITBD (referido à Lassalle) coloca que, os conflitos do partido levam a força e vitalidade.[15] Ele estava sempre ciente da necessidade de ter essas discussões em lugares abertos para participar com grande entusiasmo, pois apenas assim argumentos sólidos surgem. A chave consiste, como Lih deixa claro em uma análise cintilante das consequências da famosa fragmentação ocorrida durante o Segundo Congresso, sobre a soberania do partido e as suas organizações. O chefe característico dos Bolcheviques não era – como as interpretações iniciais compreendiam – o sectarianista mal-humorado.[16] Ao invés disso, os Bolcheviques tinham um profundo comprometimento com a soberania do partido, com a sua condução, decisões, e leis, tudo que foi conquistado através de debates por vezes calorosos, mas sempre abertos. Assim, os Bolcheviques, e não os Mencheviques, eram os favoráveis a um partido eleito no Congresso e aderem às diretrizes apontadas pelo Congresso – pois este é o lugar onde debates abertos e vigorosos devem acontecer.

A conclusão só pode ser que o sectarismo e ecumenismo de Lênin são dois lados da mesma moeda; ou melhor, eles estão dialeticamente conectados: nem um, nem outro, mas os dois em tensão. O compromisso apaixonado de Lênin pelo debate aberto era um caminho para acordos e comprometimentos mais sólidos pela organização.[17] Por essa razão, ele estava morto contra uma abstinação passiva, de laissez faire, laisser passer, o emparelhamento sob diferenças, o comprometimento entre diferentes grupos, até mesmo querelas atrás de portas fechadas. Ao invés disso, a chave era uma unidade de ação, liberdade de discussão e criticismo” aberta e pública, que levaria ao reconhecimento da mais profunda verdade e prover a base da união da classe e do partido.[18]

Notas:

[1] Lenin 1907 [ 1963]-f: 172

[2] Lenin 1911 [1963]-a: 179; 1911 [1963]-b, 1912 [1963]-b, 1912 [1964]-a; 1912 [1964]-b: 445; 1914 [1964]: 61; 1914 [1965]-a. Ele os chama de “vacilantes” – em outras palavras, os “conciliadores” que estão tentando preencher o abismo com frases vazias e chavões abrangentes” (Lenin 1911 [1963]-a 179). Mais substancialmente, Lenin contesta o argumento de Trotsky de que com o “amadurecimento”do proletariado, as várias facções, que eram elas próprias discussões entre intelectuais, desapareceriam. Para Lenin, o resultado é simplesmente um compromisso (Lenin 1911 [1963-b: 258).

[3] Valentinov 1969 [1954], 1968 [1953]; Lincoln 1986: 235-6; Read 2005.

[4] Lenin 1912 [1964]-c: 407.

[5] Lenin 1906 [1962]-e; 1903 [1961]-a: 307-9; 1906 [1962]-d.

[6] Lenin 1906 [1962]-a: 310; 1906 [1962]-c: 376.

[7] Lenin 1906 [1962]-f, 1906 [1962]-c, 1907 [1962]-b, 1907 [1962]-d.

[8] Lenin 1910 [1963]-c, 1910 [1963]-b, 1910 [1963]-a.

[9] Lenin 1906 [1963]-d.

[10] Lenin 1906 [1962]-f: 294-8; 1905 [1963]-b: 382-95; 1905 [1963]-a: 468-74; 1906 [1962]-b, 1907 [1962]-e; 1907 [1963]: 132; 1906 [1963]-d: 279, 282-3, 288; 1906 [1963]-a, 1906 [1963]-c; 1906 [1964]: 417-18; 1907 [1962]-a: 424-5; 1907 [1962]-c: 452-5; 1907 [1962]-g: 458, 466; 1914 [1965]-b: 517, 519.

[11] Lenin 1906 [1963]-d: 296; 1906 [1963]-b: 300-1; 1912 [1963]-a: 469-70; 1907 [1962]-g: 471; 1907 [1962]-d: 40-1; 1920 [1966]: 66-77.

[12] Lenin 1905 [1966]-a: 70; 1905 [1966]-b; 1906 [1962]-e: 158-9.

[13] Como Krupskaya escreve: Poderiamos citar dezenas de exemplos como esse, Ilych revidou com força quando foi atacado e defendeu o seu ponto de vista, mas quando novos problemas tiveram que serem enfrentados ele cooperou com os seus oponentes, Ilych conseguiu abordar seu oponente de ontem como um camarada. Ele não teve que fazer nenhum esforço especial para isso. (Krupskaya 1960 [1930]: 251)

[14] Lih fornece outro exemplo de uma discussão acalorada com Georgy Solomon enquanto ambos estavam em Bruxelas em 1908. Discutindo sobre o papel dos sociais-democratas na Duma, Lenin estava cada vez mais acalorado e polemico. Salomon ficou ofendido e disse isso: “Lenin voltou atrás, deu-lhe uma espécie de abraço e assegurou-se que as expressões dirigidas a ele foi apenas devido ao calor do momento e não deveriam ser tomadas como pessoais. (Desculpas semelhantes podem ser encontradas em todas as correspondencia de Lenin) O abuso impessoal de Lenin não foi dirigo a Salomão como individuo, mas contra todos os céticos, pessimistas e derrotistas. (Lih, 2011: 110)

[15] Lenin 1902 [1961]: 347.

[16] Lih 2008 [2005]: 489-553

[17] Krupskaya escreve novamente: “Ele sempre, enquanto viveu, deu enorme importância aos congressos do Partido. Ele realizou o congresso do partido na mais alta autoridade, onde todas as coisas pessoais tinham que ser deixadas de lado, onde nada deveria ser escondido e tudo deveria ser aberto e acima de tudo. (Krupskaya 1960 [1930]: 89)

[18] Lenin 1906 [1963]-c: 320; 1904 [1961]: 404, 447-8; 1903 [1961]-b: 117; 1914 [1965]-b, 1915 [1964]; Bensaïd 2007: 155.

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