Leituras de Althusser na América Latina

Via Marcelo Rodríguez Arriagada e Marcelo Starcenbaum, traduzido por Reginaldo Gomes*

A discussão sobre a singularidade dos itinerários de Althusser na América Latina formou parte do próprio processo de recepção do filósofo francês na região. A medida em que o pensamento althusseriano se difundia em distintos espaços políticos e intelectuais, os sujeitos implicados nesse fenômeno foram elaborando relatos acerca das particularidades de suas próprias leituras e das de outras pessoas.

Pode-se afirmar que há mais de uma década assistimos a uma recolocação [recolocación] de Althusser como objeto de reflexão em diversos âmbitos do pensamento contemporâneo. Ressurgimento que se expressa na quantidade de livros dedicados a diferentes aspectos de seu pensamento, a reedição de grande parte de sua obra, a publicação de sua correspondência e de materiais inéditos, a publicação de dossiês temáticos, a realização de encontros e colóquios dedicados ao seu trabalho e a existência de revistas dedicadas especialmente aos estudos althusserianos. Um dos efeitos mais significativos desse movimento de recolocação tem sido a tendência a considerar o althusserianismo como um objeto político-intelectual. Embora o deslocamento para a análise histórica represente um avanço significativo na compreensão de qualquer tradição intelectual, essa reorientação foi especialmente produtiva no caso do althusserianismo. Desde sua irrupção em meados da década de 1960 até os anos posteriores a sua morte, Althusser e sua obra estiveram submetidos a um conjunto de operações que empurraram o althusserianismo a um terreno mais próximo ao do juízo político e intelectual do que o da compreensão histórica.

A primeira dessas operações remonta ao surgimento e desenvolvimento da corrente althusseriana. Propiciadora de uma releitura polêmica de Marx em um contexto no qual as inflexões no corpus marxista tinham efeitos políticos contundentes, a obra de Althusser deu lugar a uma das querelas mais importantes da história da esquerda europeia na segunda metade do século XX. Além da famosa refutação de E.P. Thompson[2], o althusserianismo foi objeto de impugnações pelas tradições maoístas[3] e trotskistas[4], espaços comunistas oficiais[5] e correntes marxistas independentes[6] [7]. Como afirmou recentemente Warren Montag, Althusser “poderia ter presumido que no final do século XX se havia escrito mais contra ele do que sobre ele”[8].

Embora essa literatura conspire contra a compreensão histórica da corrente althusseriana, deve-se atribuir a ela sua circunscrição às dimensões teóricas e políticas. Distinta foi a operação a que Althusser foi submetido nos anos oitenta e noventa, que não adquiriu a forma de impugnação, mas sim de repressão, e que não teve como objeto seus posicionamentos políticos e intelectuais, mas sim os avatares de sua vida privada. Nesse sentido, o assassinato de sua esposa em 1980 e os transtornos mentais sofridos até sua morte em 1990 foram esgrimidos ​​como evidência tanto da irracionalidade de seu pensamento quanto da criminalidade do comunismo. Em um contexto no qual a crise do socialismo real se conjugava com um deslocamento da intelectualidade crítica para posições socialdemocratas ou abertamente liberais, o marxismo althusseriano constituiu um objeto privilegiado na constatação do caráter totalitário da experiência comunista. Esse tipo de manobra se desenvolveu especialmente na França, tanto pelo pertencimento de Althusser a seu campo intelectual quanto pelo papel desempenhado pelos nouveaux philosophes. No entanto, também tiveram lugar em outros espaços nacionais nos quais o althusserianismo havia tido importância. No Chile, por exemplo, a revista Hoy publicou por ocasião da morte de Althusser um artigo de Roberto Brodsky intitulado “El loco de la familia”. Na Argentina, um artigo de Álvaro Abós publicado em 1984 na revista Unidos propiciou via Althusser o enlaçamento entre o marxismo, o crime e a loucura para certificar o fracasso do ciclo revolucionário.

Foram precisamente os efeitos dessas operações que levaram Gregory Elliott, autor do primeiro estudo sistemático sobre Althusser, a optar por uma postura “anti-anti-Althusser”[9]. Em outras palavras, o trabalho de situar historicamente a intervenção althusseriana para analisá-la em termos teóricos e políticos só poderia ser levado a cabo suspendendo o juízo a que a figura e a obra de Althusser foram submetidas ao longo de duas décadas. No final dos anos oitenta, Elliott apresentava como inovadoras um conjunto de avaliações que hoje gozam de certo consenso: que Althusser é um dos pensadores marxistas mais importantes do século XX, que seu retorno a Marx constitui o exercício mais importante da filosofia marxista desde História e consciência de classe de Lukács, que seu desenvolvimento do materialismo histórico é tão produtivo como o levado a cabo por Gramsci em seus Cadernos do cárcere e que vários aspectos de sua obra ainda permanecem vigentes. Embora esse posicionamento não seja mais totalmente necessário, subjaz nele um impulso historicizante que resulta fundamental a fim de apreender de maneira não preconceituosa os itinerários de Althusser na cultura de esquerda contemporânea. É nesse sentido que Elliott propunha como principal variável de sua reconsideração de Althusser o esforço de situá-lo “além da bajulação (o althusserianismo como meridiano do marxismo) e dos anátemas (althusserianismo como apoteose do stalinismo), características de muitas respostas ao surgimento e consolidação do filósofo”[10]. Na mesma direção aponta Montag, para quem a produtividade da corrente althusseriana não pode ser captada sem se referir a tudo o que há nela de histórico. Em um sentido análogo a Elliott, ele destaca a importância de se aproximar do althusserianismo desde uma perspectiva que se posicione “por fora do círculo vicioso da mimese e da rejeição”[11]. Deslocamento que permite situar a intervenção de Althusser no campo da esquerda contemporânea, um terreno heterogêneo, em constante desenvolvimento e atravessado por conflitos e divergências.

A configuração de um olhar centrado na explicação do surgimento e desenvolvimento do althusserianismo redundou em uma delimitação das características do contexto em que esses fenômenos se desenvolveram.  Nos parece correta a afirmação de Elliott de que a intervenção original de Althusser deve ser entendida a partir da interrelação de quatro processos políticos e intelectuais[12]. Em primeiro lugar, a crise do movimento comunista internacional depois de Stalin. A releitura de Marx desenvolvida por Althusser na década de 1960 esteve condicionada pela consolidação da linha propiciada por Khrushchev, centrada no processo de desestalinização e a via pacífica ao socialismo, bem como pela cisão sino-soviética, com a consequente construção de uma nova referência revolucionária. Em segundo lugar, a singular adequação do Partido Comunista Francês ao processo de desestalinização. O itinerário de Althusser como intelectual comunista se desenvolveu no seio de um partido que se adequou lentamente as diretrizes kruschevistas e que combateu duramente as tendências pró-China surgidas em suas fileiras. Em terceiro lugar, as características das correntes marxistas desenvolvidas entre o final da década de 1950 e o início de 1960. O marxismo althusseriano se instituiu como um contraponto às tendências humanistas surgidas no calor do processo de desestalinização. Finalmente, a particularidade do cenário intelectual francês dos anos sessenta. A ancoragem na teoria marxista desenvolvida por Althusser se produziu em uma conjuntura teórica na qual se conjugaram a tradição epistemológica francesa com o paradigma estruturalista.

É interessante destacar que essa aproximação contextual ao althusserianismo não só conseguiu transcender as leituras de julgamento, mas também permitiu compreender várias das dimensões que se expressam nelas. Uma porção significativa destes trabalhos de historicização tem se dedicado a desentranhar o caráter singular da intervenção althusseriana. A extinção do ciclo histórico do comunismo possibilitou o surgimento de uma leitura sobre a relação entre intelectuais e política que permite a constatação de contradições e ambivalências. Nesse sentido, o fato de que o althusserianismo foi violentamente combatido tanto a partir de espaços comunistas oficiais quanto desde a esquerda radicalizada obedece, em grande parte, a particularidade do vínculo estabelecido entre Althusser e o PCF. Essa particularidade radica na coexistência entre o pertencimento ao comunismo partidário e a sustentação de uma teoria que empurrava a política comunista para fora dos marcos do partido. Uma dimensão de sua trajetória que já estava presente na tipologia das relações entre intelectuais e partido no século XX delineada por Perry Anderson[13], que foi a mais valorizada por Balibar no momento de se despedir de seu mestre[14] e que ocupa um espaço relevante em análises contemporâneas sobre a tradição althusseriana[15].

Assinalemos um último efeito da passagem de uma aproximação de julgamento do althusserianismo para uma compreensiva. Essa torção interpretativa permitiu uma avaliação não preconceituosa sobre o impacto da obra de Althusser em diversos campos do saber. Em outras palavras, um olhar centrado na constatação da natureza perniciosa da penetração do althusserianismo nos distintos espaços disciplinares foi dando lugar à uma análise atenta ao caráter produtivo desse processo de difusão. Dessa maneira, foi possível reconstruir uma ampla teia de desenvolvimentos teóricos e investigações concretas que bebiam em diferentes dimensões da obra althusseriana. Assim, se tornaram inteligíveis os efeitos de Althusser no campo historiográfico, expressados em trabalhos de Guy Bois, Robert Linhart, Peter Schöttler, Perry Anderson e Gareth Stedman-Jones; na antropologia, através das investigações de Emmanuel Terray e Pierre-Philippe Rey; na teoria política, materializado nas obras de Nicos Poulantzas, Göran Therborn e Ernesto Laclau; na economia, que deu lugar a escola da regulação de Michel Aglietta e Alain Lipietz; na educação, através dos trabalhos de Christian Baudelot e Roger Establet; na teoria literária, expresso na obra de Pierre Macherey; e na linguística, com o trabalho de Michel Pêcheux[16].

A discussão sobre a singularidade dos itinerários de Althusser na América Latina formou parte do próprio processo de recepção do filósofo francês na região. A medida em que o pensamento althusseriano se difundia em distintos espaços políticos e intelectuais, os sujeitos implicados nesse fenômeno foram elaborando relatos acerca das particularidades de suas próprias leituras e das de outras pessoas. Por se tratar de discursos configurados ao mesmo tempo que o processo receptivo, esses relatos se caracterizam principalmente pela busca de potencialidades e limitações nos usos que os intelectuais latino-americanos realizavam do pensamento de Althusser. Um exemplo desse tipo de leitura pode ser encontrado no trabalho de Oscar del Barco intitulado “Althusser en su encrucijada”. Publicado em fins da década de 1970 em seu exílio mexicano, o filósofo argentino referia-se de maneira negativa às apropriações da obra de Althusser entre os intelectuais latino-americanos por ela conter aqueles elementos regressivos para uma política emancipatória. Em outras palavras, que a atenção prestada aos exercícios de leitura de Althusser na região estava indissoluvelmente ligada a necessidade de evidenciar que o althusserianismo propiciava uma delegação da política ao aparelho partidário e uma delegação do saber ao dispositivo filosófico[17].

Se deixarmos de lado essas interpretações, que estão inscritas no próprio objeto de estudo, podemos afirmar que as primeiras reconstruções sobre os itinerários de Althusser na América Latina se desenvolveram na segunda metade da década de 1980. Esses primeiros esboços estão delineados por dois aspectos característicos dos marcos no quais se inscrevem. O primeiro deles é que elas formam parte de reconstruções mais amplas da vida intelectual e política latinoamericana na segunda metade do século XX. O segundo aspecto é que são realizadas por intelectuais que haviam sido protagonistas da recepção de Althusser nas décadas de 1960 e 1970.

Uma delas se encontra no marco da reconstrução dos itinerários de Gramsci realizado por José Aricó em eu livro La cola del diablo. Circunscrita a experiências da militância de esquerda em fins da década de 1960, a alusão de Aricó aos itinerários de Althusser está estruturada ao redor de três hipóteses. A primeira está relacionada com um efeito de sutura entre política e cultura. De acordo com essa leitura, o althusserianismo havia contribuído para superar a excisão entre as dimensões cultural e política da velha esquerda através da redução da teoria à uma ideologia legitimadora da prática política. Segundo Aricó, uma geração de militantes havia encontrado nas elaborações teóricas de Althusser “a base doutrinária e política para uma ação caracterizado por seu extremo voluntarismo”[18]. Lida desde as transformações da esquerda na década de 1980, a releitura cientifizadora de Marx se apresentava como uma reformulação das matrizes clássicas do marxismo-leninismo. Assim, Aricó se centrava no reforço que o althusserianismo propiciava as posições vanguardistas. A esquerda althusseriana latinoamericana havia visto no marxismo althusseriano a possibilidade de refundar sua condição de portadora de uma verdade científica em um contexto marcado pela crise do stalinismo e o surgimento de processos revolucionários fora da órbita soviética.

Segundo o percurso proposto por Aricó, a recepção de Althusser havia tido um efeito contraditório. Por um lado, o althusserianismo havia devolvido o prestígio aos aspectos teóricos do marxismo após a suspeita que pairava sobre eles desde a experiência stalinista. Através de sua ancoragem no estruturalismo, o althusserianismo havia favorecido uma inflexão na tradição marxista centrada no registro da teoria. Por outro lado, Althusser havia contribuído para consolidar em suas posições ideológicas as vanguardas desprendidas dos partidos de esquerda tradicionais. É por isso que uma releitura de Marx que se pretenda científica teria acabado ligada à ação de organizações guerrilheiras que se acreditam depositárias de uma tarefa histórica não cumprida. O coroamento da reconstrução de Aricó evidencia que a constatação dessa contradição está realizada principalmente sobre as elaborações de Régis Debray: “ninguém ignora o papel desempenhado pelos escritos de Régis Debray na formulação de uma proposta estratégica global revolucionária que fundia elementos do ‘foquismo’ de matriz guevariana-castrista com as ideias de Althusser”[19].

Um exemplo de outro esboço reconstrutivo a que nos referimos pode ser encontrado em Nuestros años sesentas. La formación de la nueva izquierda intelectual argentina de Oscar Terán. As menções ao lugar de Althusser na cultura argentina ali realizadas são breves, dado que sua análise da experiência da nova esquerda intelectual acaba com o golpe de Estado de 1966. No entanto, o contraponto que estabelece no livro entre as formações marxistas de fins da década de 1950 e princípios da década de 1960 com as que se imporão na segunda metade dos anos sessenta, bem como o fato de que as primeiras leituras de Althusser na Argentina sejam anteriores ao golpe de Onganía, levam Terán a se pronunciar sobre os itinerários do althusserianismo. Sua hipótese é de que a obra de Althusser teve dificuldades para ingressar na vida intelectual argentina devido à forte presença na nova esquerda de um voluntarismo humanista revolucionário. Terán chega a essas afirmações logo depois de ter reconstruído o lugar do homem e da vontade em um conjunto de agrupamento políticos e intelectuais que se inspiraram nas tradições sartreana e gueravista.  Nesse sentido, o livro reconstrói o processo através do qual o humanismo historicista dos anos cinquenta se encontra com a noção de revolução dos anos sessenta, dando lugar a um humanismo otimista que permeará o discurso marxista da época. Uma formação intelectual que propiciava um resgate do homem como sujeito soberano e que se esforçava, portanto, em desembaraçar o marxismo dos seus lastros positivistas, reforçando a unidade entre teoria e prática, não poderia mais do que estabelecer um vínculo conflitivo com uma corrente como a althusseriana.

Terán remetia a Oscar Mosotta e seu movimento de abertura ao estruturalismo, mas também de cautela frente o abandono do compromisso, a fim de exemplificar “a encruzilhada em que se acharam alguns intelectuais de franja crítica da cultura argentina entre as demandas do que entediam ser a adoção atualizada de novos códigos teóricos e as de uma moral pública fortemente atraída pelos deveres da política”[20]. De acordo com a sua leitura, o estruturalismo havia aberto duas frentes conflitantes entre os intelectuais da região. Por um lado, impugnando o antropocentrismo reinante na cultura de esquerda da época. A ênfase nos processos de sujeição do homem era dificilmente compatível com a crença na capacidade do homem de transformar seu entorno de acordo com a sua vontade. Nesse mesmo sentido, o estruturalismo centrava sua análise nos mecanismos ideológicos de sujeição ao mesmo tempo que carecia de uma explicação da mudança histórica. Desequilíbrio que tornava suspeita essa tradição em um contexto no qual existia uma forte confiança na capacidade dos seres humanos para se organizar e levar a cabo transformações políticas e sociais.

Embora as menções realizadas por Aricó e Terán permitam iluminar algumas vias de ingresso de Althusser na América Latina e ofereçam alguns eixos explicativos para compreender tal processo, os percursos propostos se revelam como limitados em ambas as direções. Por um lado, porque as instâncias selecionadas estão distantes de esgotar os canais através dos quais o pensamento althusseriano foi recepcionado na cultura latinoamericana. Embora as organizações armadas e os intelectuais sartreanos tenham sido importantes na difusão e problematização dos aportes althusserianos, estão longe de serem os únicos sujeitos inscritos nesse processo. O mesmo pode ser dito das conclusões analíticas. Apesar de terem produzido articulações entre o althusserianismo e a luta armada, bem como uma rejeição do pensador francês por parte de intelectuais pertencente a tradição sartreana, os efeitos do pensamento de Althusser foram mais complexos do que se desprende desses relatos. Por um lado, porque a circunscrição a uma única instância de recepção implica uma generalização a partir de processos singulares. Desse modo, se olharmos para a reconstrução de Aricó, podemos concluir que o althusserianismo foi hegemônico na esquerda latinoamericana. Agora, se lermos apenas o percurso de Terán, podemos crer que o althusserianismo foi duramente combatido. Por outro lado, porque as leituras realizadas por aqueles sujeitos são absolutizadas, bloqueando a advertência de nuances ou de transformações em um plano diacrônico.

Grande parte dessas limitações se devem, indubitavelmente, ao cariz autorreferencial desses relatos e as marcas epocais que os delinearam. Nesse sentido, La cola del diablo e Nuestros años sesentas devem ser captados como reconstruções históricas, mas também como balanços políticos da experiência da esquerda latinoamericana. Enquanto o que se tratava de pensar eram as particularidades de um projeto coletivo que havia sido duramente derrotado, as historizações ali desdobradas tenderam a se sobrepor com olhares críticos sobre as suas próprias experiências políticas. Daí que uma parte significativa das reconstruções coincidiram com as discussões que tiveram nas décadas de 1960 e 1970. Os termos da reconstrução dos itinerários do althussserianismo de Nuestros años sesentas coincidem com os da leitura que Terán fazia de Althusser em 1969. Desde as páginas de Los Libros, um jovem Terán sartreano e guevarista suspeitava de uma releitura de Marx que tendia a sujeitar o homem e não oferecia uma teoria da mudança social. Do mesmo modo, esses relatos reconstruíram os itinerários de Althusser na Argentina desde um ângulo no qual se condessaram as transformações experimentadas pela esquerda na década de 1980. O fenômeno que nos interessa investigar foi apreendido por um olhar que tendia a detectar os erros da nova esquerda e processá-los em um horizonte político mais democrático do que revolucionário. Daí a preponderância que adquiria a questão do vanguardismo em Aricó, à qual o althusserianismo teria vindo reforçar, e o problema do voluntarismo em Terán, com o qual o pensamento de Althusser teria estabelecido vínculos conflitantes.

Esse tipo de aproximação foi declinando junto a mencionada recolocação de Althusser como objeto de reflexão. A transformação do althusserianismo em um objeto político-intelectual contribuiu para o surgimento de um interesse por reestabelecer os itinerários de Althusser na América Latina desde uma perspectiva analítica e histórica. Nesse sentido, o trabalho de Miguel Valderrama, que reeditamos neste volume, tem se constituído como um divisor de águas[21]. Publicado no final da década de 1990, contém um conjunto de linhas interpretativas fundamentais para dar conta do fenômeno de difusão do pensamento althusseriano na região. De acordo com Valderrama, a importância política da leitura de Althusser no subcontinente estaria situada na potencialidade que ela acarretava para outro tipo de leitura de Marx e do marxismo. O ingresso de Althusser teria possibilitado o surgimento em distintos espaços políticos e intelectuais de um novo tipo de textualidade teórica na qual se articulou um inovador discurso científico sobre a história e a sociedade latinoamericanas. Esse efeito inovador teria gerado nos países latinoamericanos uma ruptura tanto com o horizonte do marxismo clássico da III Internacional quanto com o terreno das ciências sociais. Nesse sentido, Valderrama iluminava uma dimensão relevante desses efeitos de ruptura ao enfatizar que o pensamento de Althusser habilitava um conjunto de deslocamentos que implicavam a ativação de campos originalmente estranhos ao marxismo, tais como a psicanálise, a linguística e a semiologia. Igualmente, o texto insistia que os efeitos de ruptura do althusserianismo na América Latina só podiam ser entendidos a partir das particularidades de um contexto que se sente interpelado pelas suas teses. Com isso, resulta fundamental a afirmação de Valderrama de que a recepção de Althusser na região está determinada desde o ponto de vista histórico e teórico pela emergência significativa da revolução cubana como acontecimento disruptivo da hegemonia stalinista. Nesse sentido, foi possível falar de uma convergência significativa entre a releitura de Marx propiciada por Althusser e a crie da racionalidade política revolucionária experimentada na região na década de 1960.

O mencionado afã historicizante possibilitou que, além do trabalho de Valderrama, hoje tenhamos um conjunto de investigações que abordaram os itinerários de Althusser nos diferentes marcos nacionais. Nesse sentido, pode-se mencionar os trabalhos de Anna Popovitch[22], Marcelo Starcenbaum[23] e Adrián Celentano[24] para o caso argentino; o de José Ramírez, Cecilia Cortés e Marcelo Rodríguez Arriagada[25] para o chileno; os de Jaime Ortega[26] e Hugo Saéz Arreceygor[27] para o mexicano; os de Löwy[28], Saes[29] e Arrúa[30] para o brasileiro e os de Jaime Ortega[31] e Natasha Gómez Velázquez[32] para a recepção cubana.

Este volume pretende ser um espaço de reunião de investigações que vinculam os impulsos mencionados. Ou seja, por um lado, aquele tendente a pensar o althusserianismo em termos político-intelectuais, o qual envolve a atribuição de um caráter histórico ao desdobramento desta tradição de pensamento. Por outro lado, o de calibrar os itinerários do althusserianismo na América Latina desde uma perspectiva analítica, o qual implica necessariamente o distanciamento com os termos das querelas abertas por esse processo de difusão político-intelectual.

Um primeiro agrupamento de trabalhos propicia abordagens gerais da relação entre Althusser e a América Latina. É o caso do mencionado artigo de Miguel Valderrama, que constitui o ingresso das teses althusserianias no subcontinente como um fenômeno inaugurador de uma nova textualidade para o marxismo latinoamericano. Ao ser produzido no calor da gramática política aberta pela revolução cubana, o althusserianismo teria contribuído para legitimar novos caminhos da esquerda latinoamericana uma vez que teria sido objeto de uma fixação semântica. Valderrama também investiga as releituras da década de 1980, aquelas que em plena valorização dos vínculos entre socialismo e democracia teriam colocado Althusser como um exemplo das tendências totalitárias do marxismo. Junto ao trabalho de Valderrama, o de Bruno Bosteels aborda os itinerários de Althusser na América Latina dentro de um esforço mais amplo ao investigar as potencialidades da lei do desenvolvimento desigual. Deste modo, o voo panorâmico pelas recepções de Althusser no subcontinente se articula com uma reflexão acerca das possibilidades de colocar a prática teórica nas margens e desdobrá-la em outros sentidos que não simplesmente filosóficos.

Esses trabalhos são seguidos por investigações que circunscrevem a recepção de Althusser aos diferentes quadros nacionais. Entre eles, o texto de Natasha Gómez Velázquez se detém em uma das estações fundamentais do althusserianismo latinoamericano, o contexto da Cuba pós-revolucionária. Enquadrado em uma leitura crítica e renovada da história do marxismo cubano, o texto de Gómez Velásquez da conta do amplo fenômeno da recepção do pensamento de Althusser entre os intelectuais da ilha. Se destaca nessa reconstrução a análise do lugar ocupado pelo althusserianismo nos esforços dos marxistas cubanos em transcender as limitações do marxismo-leninismo de fabricação soviética. No mesmo sentido, se pode encontrar no trabalho linhas sugestivas sobre a circulação de Althusser nos marcos de uma chegada à ilha do pensamento francês, em suas vertentes marxistas e não marxistas.

A significativa recepção de Althusser no México faz com que contemos com três trabalhos dedicados ao país do Norte. Em primeiro lugar, o texto de Jaime Ortega Reyna apresenta de maneira panorâmica a difusão do althusserianismo entre a intelectualidade mexicana. Nesse sentido, seu trabalho recorta um conjunto de leituras significativas de Althusser que marcaram o pulso do processo de recepção naquele país, tais como as realizadas por Raúl Olmedo, Carlos Pereyra e Enrique González Rojo. É precisamente a este último intelectual que é dedicado o trabalho de Víctor Hugo Pacheco Chávez. Através de uma revisão pormenorizada de sua obra, Pascheco Chávez reconstrói os distintos modos por meio dos quais González Rojo foi se vinculando com o pensamento althusseriano. No âmbito dessa relação, o artigo se detém especialmente no interesse despertado no intelectual mexicano na formulação althusseriana da diversidade de práticas, o qual se materializou na tese da necessidade de uma revolução articulada. Finalmente, o trabalho de Susana Draper recorta o processo receptivo desenvolvido na década de 1980, centrando-se fundamentalmente na figura e na obra da filósofa mexicana Fernanda Navarro. Através de uma perspectiva que evita colocar Navarro como mera difusora da obra de Althusser, Draprer mostra as torções que a mexicana opera sobre o corpus althusseriano e como este é transmitido em uma proposta política renovadora para o contexto mexicano daqueles anos.

O lugar ocupado por Althusser nos debates marxistas brasileiros é analisado nos trabalhos de Luiz Eduardo Motta e Lidiane Soares Rodrigues. O primeiro se concentra na recepção de Althusser entre os intelectuais do Rio de Janeiro. Nesse sentido, Motta analisa as leituras de Althusser desenvolvidas na revista Tempo Brasileiro. Através de um percurso minucioso pelas páginas desta revista e de outras, tais como a Revista de Cultura Vozes e a Encontros com a Civilização Brasileira, o trabalho da conta dos debates que a releitura althusseriana de Marx propiciou nos diferentes agrupamentos intelectuais brasileiros. O segundo trabalho se situa em outro espaço de investigação. Por um lado, porque está recortado sobre uma figura intelectual de São Paulo, José Arthur Giannotti. Por outro lado, porque escolhe uma perspectiva analítica não tão centrada na história intelectual quanto na sociologia dos intelectuais. Através de uma reconstrução da polêmica desenvolvida por Giannotti contra Althusser, Rodrigues Soares evidencia a diferença entre as tradições marxistas brasileira e francesa, com suas respectivas disparidades levando em conta as legitimidades e capitais específicos.

Após as recepções mexicanas e brasileira, um conjunto de investigações dão conta dos itinerários de Althusser na Argentina e no Chile. Em relação a recepção argentina, o trabalho de Marcelo Starcenbaum se concentra em um dos espaços desse país nos quais o althusserianismo teve maior presença, o da cultura psicanalítica. Através de uma revisão dos grupos que questionavam a instituição psicanalítica oficial, seu trabalho evidencia o vínculo complexo que estabeleceram com Althusser os psicanalistas argentinos que se inspiravam na tradição freudo-marxista. A análise sobre um desses psicanalistas, Gregorio Baremblitt, permite evidenciar as tensões existentes entre um uso freudo-marxista de Althusser e outro inscrito na incipiente tradição lacaniana. Sobre a recepção chilena, Claudio Aguayo Bórquez analisa a circulação de Althusser em dois espaços da esquerda daquele país. Por um lado, o texto se detém nas discussões ao redor da transição nos quadros da experiência da Unidade Popular. Por outro lado, Aguayo Bórquez destaca a figura de Carlos Cerda, um intelectual comunista que encontra em Althusser uma instância produtiva para pensar as especificidades de uma política revolucionária. Finalmente, o trabalho de Néstor Arrúa pode ser pensado como uma abordagem transversal às recepções circunscritas a espaços nacionais, pois tem como objetivo a reconstrução dos itinerários de Althusser entre os assistentes sociais sul-americanos. Através da revisão das obras de assistentes sociais argentinos, brasileiros, chilenos e uruguaios, o trabalho de Arrúa ilumina as distintas operações de leitura a que foi submetida a obra de Althusser por parte de intelectuais imersos nas transformações desenvolvidas nesse campo profissional.

*O presente texto é a tradução da “Introdução” ao livro “Lecturas de Althusser en América Latina”[1] organizado por Marcelo Rodríguez Arriagada e Marcelo Starcenbaum. – Nota do tradutor.

Notas de rodapé

[1] Esse livro pode ser acesso na íntegra neste link: https://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/libros/pm.795/pm.795.pdf – Nota do tradutor.

[2] Thompson, E.P. Miseria de la teoría. Barcelona, Crítica, 1981.

[3] Rancière, Jacques. La lección de Althusser. Buenos Aires, Galerna, 1975; Lisbonne, Bernard. Philosophie marxiste ou philosophie althussérienne. París, Anthropos, 1978.

[4] Löwy, Michael. Dialectique et révolution. Essais de sociologie et d’histoire du marxisme. París, Anthropos, 1973; Fougeyrollas, Pierre. Contre Lévi-Strauss, Lacan et Althusser. Trois essais sur l’obscurantisme contemporaine. París, Editions de la Jouquère, 1976; Vincent, Jean Marie et al. Contre Althusser. París, Union Génerale d’ Editions, 1974.

[5] Garaudy, Roger. Marxisme du XXe siècle. París, La Palatine, 1966; Sève, Lucien. Marxismo y teoría de la personalidad. Buenos Aires, Amorrortu, 1973; Schaff, Adam. Structuralism and Marxism. Oxford, Pergamon Press, 1974.

[6] Lefebvre, Henri. L’ idéologie structuraliste. París, Du Seuil, 1971; Schmidt, Alfred. Historia y estructura. Crítica del estructuralismo marxista. Madrid, Alberto Corazón, 1973; Goldmann, Lucien. Marxismo y ciencias humanas. Buenos Aires, Amorrortu 1975.

[7] Para uma abordagem panorâmica das leituras anti-althusserianas, ver: Elliott, Gregory. Althusser: The Detour of Theory. Leiden, Brill, 2006, pp. XIII-XXIV.

[8] Montag, Warren. Althusser and His Contemporaries. Philosophy’s Perpetual War. Durham, Duke University Press, 2013, p. 1.

[9] Elliott, Gregory. Althusser: The Detour of Theory. op. cit., p. XXI.

[10] Elliott, Gregory. Althusser: The Detour of Theory. op. cit., p. XVIII.

[11] Montag, Warren. Althusser and His Contemporaries. Philosophy’s Perpetual War. op. cit., p. 7.

[12] Ibid., p. 1.

[13] Anderson, Perry. Consideraciones sobre el marxismo occidental. México D.F., Siglo XXI, 1987, p. 58.

[14] Balibar, Étienne. “Adiós”. Escritos por Althusser. Buenos Aires, Nueva Visión, 2004, p. 99

[15] Ver: Elliott, Gregory. Althusser: The Detour of Theory. op. cit., p. 52; Matheron, François. “Louis Althusser o la pureza impura del concepto”. Demarcaciones. Revista Latinoamericana de Estudios Althusserianos. N° 1, Abril 2014, p. 55; Diefenbach, Katja; Farris, Sara; Kirn, Gal e Thomas, Peter. Encountering Althusser. Politics and Materialism in Contemporary Radical Thought. Londres, Bloomsbury, 2012, p. XIV. A constatação dessa dimensão também abriu um caminho de investigação sobre as relações entre o althusserianismo e o maoísmo, ver: Bourg, Julian. “The Red Guards of Paris: French Student Maoism in the 1960’s”. History of European Ideas. N° 4, 2005, 472-490; Robcis, Camille. “China in our Heads: Althusser, Maoism and Structuralism”. Social Text. Vol. 30, N° 110, 2012, pp. 51-69; Celentano, Adrián. “Althusser, el maoísmo y la revolución cultural”. Políticas de la Memoria. Anuario de investigación e información del CEDINCI. N° 15, Verano 2015/2016, pp. 220-226

[16] Essa listagem não é exaustiva, ademais de se ater sobretudo as décadas de 1960 e 1970. Ecos do althusserianismo podem ser encontrados, igualmente, na epistemologia, na filosofia do direito, na estética, nos estudos culturais, no feminismo e na filmologia. Para uma revisão detalhada dos campos nos quais a obra de Althusser teve efeitos significativos, ver: Elliott, Gregory. Althusser: The Detour of Theory. op. cit., pp. 308-311 e Sotiris, Panagiotis. “[Guide de lecture] Althussérisme”. Période. 11 de Septiembre de 2017.

[17] Del Barco, Oscar. “Althusser en su encrucijada”. Dialéctica, N° 3, 1977, pp. 7-54.

[18] Aricó, José. La cola del diablo. Itinerario de Gramsci en América Latina. Buenos Aires, Siglo XXI, 2005, p. 130.

[19] Ibid., pp. 131-132.

[20] Terán, Oscar. Nuestros años sesentas. La formación de la nueva izquierda intelectual argentina, 1956-1966. Buenos Aires, El Cielo por Asalto, 1993, p. 108.

[21] Valderrama, Miguel. “Althusser y el marxismo latinoamericano. Notas para una genealogía del (post)marxismo en América Latina”. Mapocho. Revista de Humanidades y Ciencias Sociales. Nº 43, 1998, pp. 168-183.

[22] Popovitch, Anna. In the Shadow of Althusser: Culture and Politics in Late Twentieth-Century Argentina. Ann Arbor, UMI Dissertation Publishing, 2011.

[23] Starcenbaum, Marcelo. Itinerarios de Althusser en Argentina: marxismo, comunismo, psicoanálisis (1965-1976). Tesis doctoral. Universidad Nacional de La Plata, 2017.

[24] Celentano, Adrián. “El althusserianismo en la filosofía y la política de la nueva izquierda”. XIV° Congreso de la Asociación Filosófica Argentina. San Miguel de Tucumán, 2007.

[25] Ramírez, José Antonio. “Marta Harnecker y el marxismo pedagógico. Itinerarios del pensamiento de Marta Harnecker en la Revista Punto Final, Chile 1967-1969”. VIII° Jornadas de Historia de las Izquierdas – CeDINCI/UNSAM. 2015, pp. 333-342 y Rodríguez Arriagada, Marcelo; Ramírez, José; Cortés, Cecilia. “Lecturas de Althusser en Chile (notas preliminares)”. Ramal. Revista de filosofía y crítica. N° 1, Diciembre 2013, pp. 4-9.

[26] Ortega, Jaime. “El cerebro de la pasión: Althusser en tres revistas mexicanas”. Izquierdas. Una mirada histórica desde América Latina. N° 25, octubre 2015, pp. 143-164 y “De Lecumberri a Lacandona: Louis Althusser y México”. Rebelión. Agosto de 2016.

[27] Sáez Arreceygor, Hugo. “La tesis de filosofía del sub Marcos: una lectura de Althusser”. Pacarina del Sur. Revista de Pensamiento Crítico Latinoamericano. Año 3, Nº 12, julioseptiembre 2012

[28] Löwy, Michel. “Notas sobre a recepção crítica ao althusserianismo no Brasil (anos 1960 e 1970)”. Elide Rugai Bastos, Marcelo Ridenti e Denis Rolland. Intelectuais: sociedade e política. São Paulo, Cortez, 2003, pp. 213-223.

[29] Saes, Décio. “O impacto da teoría althusseriana da história na vida intelectual brasileira”. João Quartim de Moraes (org.). História do marxismo no Brasil. Volume III. Teoria. Interpretações. São Paulo, Editora da UNICAMP, 1998, pp. 11-122.

[30] Arrúa, Néstor. “El marxismo en clave althusseriana de los trabajadores sociales brasileños en los años setenta”. VIII° Jornadas de Historia de las Izquierdas – CeDINCI/ UNSAM. 2015, pp. 315-332.

[31] Ortega, Jaime. “Incendiar el océano. Notas sobre la(s) recepción(es) de Althusser en Cuba”. De Raíz Diversa. Revista Especializada en Estudios Latinoamericanos. Vol. 2, N° 4, julio-diciembre 2015, pp. 129-153.

[32] Gómez Velázquez, Natasha. “El pensamiento althusseriano entre los cubanos: sus primeros acercamientos”. Utopía. N° 15, marzo 2002.

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