Trilogia do Inumano – Inside: Distopia como destino

Por Gabriel Bichir

“Não há como salvar a arte após a extinção do sujeito, muito menos ao estufá-lo, e o único objeto que hoje seria digno dele, o puro desumano, escapa à arte tanto pela desmedida quanto pela desumanidade.” (Adorno)

Nessa trilogia, trataremos de três jogos que, a partir de premissas bem diferentes, abordam a dialética entre humano e inumano numa mirada apocalíptica. O primeiro e o terceiro – Inside e Nier: Automata – partem de um cenário pós-humano para explorar as consequências de um mundo capitalista devastado, explorando tensões próprias ao conceito de liberdade e como essas podem ser incorporadas no modo de jogabilidade. Já o segundo – Life is Strange – aposta numa narrativa mais tradicional, de verve trágica, centrada na relação entre duas amigas e na impossibilidade de reviverem a nostalgia da infância. Os três jogos levam suas respectivas premissas às últimas consequências, produzindo um choque interessante entre forma e conteúdo, que servirá de fio condutor de nossa análise.

Inside, jogo lançado em 2016 pela empresa Playdead, sucede Limbo, de temática semelhante. Num cenário distópico e sombrio, controlamos um menino sem feições definidas que deve escapar de seus perseguidores e ultrapassar uma série de obstáculos para alcançar um objetivo não revelado inicialmente ao jogador. O cenário orweliano de uma sociedade de controle absoluto é utilizado como crítica da massificação da conduta sob a égide do capitalismo avançado. O título já evidencia o motivo central: o jogo todo se passa no interior de um gigantesco complexo industrial e cada vez mais se mergulha em suas instalações subterrâneas; não há propriamente um lado de fora – no momento em que se escapa, o jogo termina.

Um jogo no estilo plataforma já traz em si uma série de expectativas cristalizadas que estão atreladas à limitação da jogabilidade: a movimentação é unidimensional e unidirecional (deve-se sempre seguir em frente, apesar de, em momentos específicos, haver certa variação nas direções possíveis). Espera-se uma narrativa linear com algum tipo de progressão e recompensa ao longo do caminho. Inside busca subverter tais expectativas: não possui história clara, não recompensa de maneira alguma o jogador, nem sugere uma progressão, pelo contrário, passa-se a ideia de que se penetra cada vez mais fundo naquele ambiente sufocante. A própria ideia de divertimento é imprópria para caracterizar os afetos que mobiliza: há, na verdade, uma experiência de urgência, para que o jogo seja finalizado o mais rápido possível, pois em certos momentos ele beira o insuportável.

O jogador vê-se constantemente perpassado por uma forte experiência de angústia: o menino-protagonista, completamente indefeso, é perseguido e assassinado das maneiras mais brutais por seus perseguidores, humanos ou animais. Não há qualquer explicação para essa perseguição incessante, embora o jogo forneça elementos para a formulação de algumas hipóteses. O cenário colabora para reduplicar esse sentimento: escuro e desolado, com uma paleta de cores frias e pouco saturadas, ele se torna cada vez mais sufocante, criando uma experiência de desconforto e claustrofobia. Pouco resta da natureza nesse mundo pós-apocalíptico, o que mais se vê são as inúmeras instalações cinzentas pertencentes ao complexo industrial, povoado por dois tipos de homens: os responsáveis pela sua administração e as cobaias de algum tipo de experimento, homens-zumbi que perderam sua autonomia e só reagem a comandos e estímulos externos. Como não é explicada a origem dessa condição, não é possível saber se as cobaias já estavam assim previamente ou se foram criadas em experimentos de laboratório.

Ao contrário de Limbo, ainda mais obscuro com relação às origens das personagens e ao contexto que as circunda, Inside afirma claramente seu conteúdo social ao longo de seu desenvolvimento. O complexo industrial serve como microcosmo de um mundo de controle total: nele, observamos experimentos absurdos, linhas de montagem de zumbis, soldados armados até os dentes e uma vigilância incessante. O cenário distópico possui uma forte conotação onírica, sobretudo em seus momentos mais estáticos e silenciosos. Essa impressão é acentuada devido ao fato de as personagens humanas terem rostos genéricos e serem incapazes de demonstrar sentimentos, à exceção do protagonista. O jogo é, porventura, monotônico e repetitivo; seu caráter beira o sadismo, dada a dificuldade de ultrapassar os obstáculos na primeira vez, o que força o jogador a observar inúmeras vezes as mortes violentas do protagonista até ter sucesso na fuga.

O final do jogo é central para a compreensão da temática que mobiliza: o menino, penetrando no núcleo do complexo, encontra uma grande centrífuga habitada por um experimento bizarro: trata-se de uma massa humana sem forma definida, composta de inúmeros corpos aglomerados. O menino é assimilado a essa massa e o jogador passa a controlá-la, buscando escapar do complexo. Quando a fuga termina, o jogo se encerra. Por meio desse procedimento, o jogo visa assimilar em sua forma o elemento crítico ao livre-arbítrio: nessa sociedade de controle, aparentemente o único elemento ainda humano era o menino-protagonista (não por acaso, o único vestido com cores quentes). Esse livre-arbítrio era, porém, ilusório: parece que todo aquele esforço serviu apenas para que ele fosse assimilado ao aglomerado disforme. O próprio jogador vê-se frustrado em seu intento e de certa forma manipulado pelo jogo: a identificação inevitável que adquire com o protagonista é brutalmente negada, como se tudo fosse um jogo de cartas marcadas.

A crítica ao poder de controle do jogador visa desestabilizar a ideia de um fim já dado de antemão, o happy ending gratificante e reconciliador. Inside, no entanto, não termina. Sugere-se que o jogador era apenas uma peça na realização de um objetivo que lhe era alheio; de tal forma que, finalizado seu papel, torna-se tão descartável quanto a personagem que controlou. Esse fim transcendente à intenção subjetiva expressa, em seu teor de verdade, a alienação do produto humano no capitalismo. A liberdade do jogador de manipular os elementos do jogo é tão falsa quanto a liberdade do indivíduo no interior da sociedade de mercado, que já está sempre assimilada à não-liberdade do sistema. Nesse sentido, a tentativa de subversão de uma forma enrijecida fala a favor de seu conteúdo crítico: Inside compreende que a única maneira de levar a crítica às últimas consequências é desativando hábitos subjetivamente internalizados no modo de jogabilidade.

Essa experiência deve, necessariamente, implicar um choque. A ilusão do livre arbítrio produz monstros: um horror somatizado numa forte experiência de angústia diante do destino do protagonista, aliado à frustração pelas mortes sucessivas e pela impossibilidade de significar a experiência do jogo. Isso fica evidente em certos momentos em que vemos o minúsculo protagonista cercado pela maquinaria infernal daquele cenário gigantesco, numa imitação distópica de Caspar David Friedrich, e quando acompanhamos seu afogamento durante vários minutos numa tomada propositalmente estetizada, como nos slow motions de von Trier.

Nessa narrativa que nada narra, alegoria de um tempo sem acontecimento, o final deve permanecer em aberto. Em certo sentido, Inside não deixa de esboçar um caráter utópico na medida em que a massa humana é capaz de escapar da zona de controle. Dessa forma, subscreve à ideia de um indivíduo plenamente assimilado, desprovido de perspectiva crítica, mas que descobre uma válvula de escape enquanto coletivo. Não deixa, porém, de fornecer uma imagem desoladora e, portanto, verdadeira, de um mundo administrado que submete implacavelmente o indivíduo às suas exigências de conformação. A reificação dos modos de sentir é tensionada quando a posição-jogador de neutralidade e distanciamento dos fatos narrados é posta em xeque; para evidenciar tal tensão, faz-se necessária a experiência visceral de uma identificação com o menino que, para resguardar o resquício de humanidade que exprime, precisa ser violentamente negada.

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