O cristal vermelho – sobre o realismo de Thiago Cervan

Por Carlos Eduardo Carneiro*

Thiago Cervan sabe que cumprir a função de intelectual não é um dom, é fruto da superprodução de valores de uso da indústria capitalista e que ele, oriundo da periferia do ABC paulista, é uma das exceções que conseguiram, devido à inúmeras circunstâncias de vida, livrar-se da condição de exército reserva de trabalhadores imediatamente desempregados e adentrar nas relações sociais dos artistas, professores e outros intelectuais. Cervan é um assalariado não-proletário, ganha seu salário exercendo a função social de intelectual: é professor, palestrante, escritor.


1. Não existem rotas conciliatórias de fuga (Editora Urutau, 2016). Para convertê-lo em lucro, a burguesia jamais cessará a drenagem do tempo de vida dos trabalhadores. O sofrimento diário provocado pela economia de mercado à cada indivíduo deste planeta – e não estou exagerando, afinal, estamos falando de 99% dos indivíduos da espécie humana – é convertido, na melhor das hipóteses, em informação através da qual se pode desenvolver conhecimento; é convertido em informação através da qual se pode desenvolver compaixão. Mas isto é pouco. A pena capital é global. Hoje, no Brasil, a polícia militar mata mais que nos anos de chumbo da ditadura de 64. Milicianos pagos pelo dinheiro do agronegócio matam diariamente no Brasil, índios, camponeses, quilombolas, militantes de movimentos populares, negros e pobres. Diariamente. A ignorância nunca ajudou ninguém, é verdade, tampouco se deve confiar em quem não sente compaixão pelos que sofrem por este mundo afora. 

Todavia, repito: conhecimento e compaixão é pouco. A cada vinte minutos um adolescente negro é assassinado; a cada onze minutos uma mulher é estuprada; a cada dezesseis minutos um operário da GM produz valor equivalente ao seu salário mensal, o resto do mês é tempo de vida roubado que se converte na riqueza do patrão; um terço da vida de um paulistano é desperdiçado no trânsito; a depressão, a ansiedade, o pânico, a falta de perspectivas, o custo de vida… Para o materialista prático, o comunista, o sofrimento humano além de objeto de conhecimento e compaixão, é motivo de organização e luta. O conhecimento não é intelecção, é prática, e a compaixão é genuína, porque solidária. Por isso, André Nogueira saúda a poesia de Thiago Cervan, pois cada verso é escrito “com a violência da verdade mas com amor de foice e martelo”. 

A matéria prima de seus versos é sua própria vida e a vida de cada um dos 99% que sofrem com a exploração e a miséria física e moral a que são submetidos pelo poder do dinheiro e das armas. A substância de seus versos é a luta junto aos movimentos populares e ao movimento comunista revolucionário; é a periferia, os trabalhadores e as trabalhadoras. Para um comunista como Cervan, não há pressuposto senão aquele enunciado no manifesto de 1848: a realidade diante de nossos olhos. Mas o poeta não observa a realidade como grande parte  dos artistas que afirmam produzir arte para além destas “polarizações” e “disputas” políticas, como se as problematizações postas pela civilização do capital não lhes dissessem respeito. Cervan não abstrai o mundo como a maioria dos artistas: faz questão de lembrar que não planta o feijão que come, nem operou a máquina na linha de montagem que produziu sua obra. Conhece a divisão social do trabalho. Sabe que se fosse pra manter a divisão entre artistas e operários não precisaríamos do comunismo. Por isso, na introdução do livro de Cervan, o também poeta comunista Andre Nogueira escreve com toda a razão que “é tão importante que a perna da poesia esteja chutando, como um golpe de capoeira, os números dessa dança das estatísticas macabras. Saudamos a poesia de Thiago Cervan e seu cristal vermelho (…)”.

Não existem rotas conciliatórias de fuga. Este é o título do terceiro livro de Thiago Cervan. Como exposto no próprio livro, o título é uma citação do professor e militante comunista István Mészáros, defensor intransigente da autogestão social pelos produtores livremente associados e da autoeducação dos iguais. Por isso, os poemas de Cervan tem endereço certo. Não faz arte pela arte, vocaliza o movimento real de negação do capital. Escreve para os que sonham e lutam por uma organização social na qual cada um receba conforme sua necessidade e, a partir daí, possa contribuir conforme suas capacidades. 

2.

Algumas determinações explicam o surgimento de uma nova geração de poetas, à qual pertence Cervan. Dentre essas determinações, destacamos quatro: 1) o movimento cultural dos saraus nas periferias, que divulgaram nomes como Sergio Vaz e Binho, este último teve o bar criminalizado e fechado pela sanguinária aristocracia tucana de São Paulo; 2) esses movimentos culturais nas periferias estavam e estão intrinsecamente articulados com os movimentos sociais contra-hegemônicos como o MTST, Mães de Maio e outros; 3) a entrada em massa dos trabalhadores e pobres nas escolas e, em menor número, nas universidades a partir das contrarreformas da era FHC e Lula e 4) o acesso a novos instrumentos de comunicação como smartphones e computadores, que uniram ainda mais a juventude, sobretudo através das redes sociais. Neste contexto, formam-se não apenas poetas, mas uma geração de intelectuais organicamente ligados a uma das classes fundamentais do capitalismo: a classe trabalhadora.

O comunista italiano Antonio Gramsci, morto em 1937 pelo fascismo, analisara que todos os indivíduos são intelectuais, mas nem todos os indivíduos exercem a função social de intelectual. A função social dos trabalhadores é a produção de valores de uso, que são de dois tipos: 1) meios de subsistência, objetos que garantem o metabolismo dos indivíduos como alimentos, roupas, moradias; 2) meios de produção, objetos empregados para a produção dos meios de subsistência ou de outros meios de produção, tais como máquinas, galpões, estradas. Os intelectuais, por sua vez, cumprem outra função social, não criam valores de uso, criam signos: meios que atuam sobre a consciência própria ou alheia; seus produtos visam modificar o comportamento próprio ou alheio, como as palavras, fotografias, mapas, aulas, sistema de numeração, música, teatro. Um poeta é um intelectual, não um trabalhador. Com a distinção entre valores de uso e signos acaba-se a querela teológica “trabalho imaterial” e por mais que muitos outros escritores se considerem operários das palavras, nada mais afirmam que uma metáfora ou uma ilusão. Como explicou Walter Benjamin, professor e ensaísta comunista que se matou para escapar do nazismo, a proletarização do intelectual não faz dele um proletário. Thiago Cervan compartilha desse pensamento, conhece seu lugar no interior da divisão social do trabalho. Consciência rara não apenas entre poetas ou artistas, mas entre os intelectuais em geral. Nestes tempos de obscurantismo e irracionalismo, de ascensão da direita e dos genocídios, faz lembrar a correção do que escreveu Walter Benjamin: “(…) quanto mais exatamente conhecer sua posição no processo produtivo, menos se sentirá tentado a apresentar-se como intelectual puro. A inteligência que fala em nome do fascismo deve desaparecer. A inteligência que enfrenta, confiante em suas próprias forças miraculosas, de desaparecer. Porque a luta revolucionária não se trava entre capitalismo e a inteligência, mas entre capitalismo e proletariado” [1].

Thiago Cervan sabe que cumprir a função de intelectual não é um dom, é fruto da superprodução de valores de uso da indústria capitalista e que ele, oriundo da periferia do ABC paulista, é uma das exceções que conseguiram, devido à inúmeras circunstâncias de vida, livrar-se da condição de exército reserva de trabalhadores imediatamente desempregados e adentrar nas relações sociais dos artistas, professores e outros intelectuais. Cervan é um assalariado não-proletário, ganha seu salário exercendo a função social de intelectual: é professor, palestrante, escritor. No caso destes intelectuais das periferias, a inserção no movimento revolucionário de expropriação dos exploradores não significa a traição de sua própria classe como antes ocorria com a maioria dos intelectuais, basta lembrarmos alguns poucos escritores comunistas brasileiros como  Érico Veríssimo, Oswald de Andrade e João Cabral de Melo Neto, filhos das classes abastadas ou mesmo da burguesia. Para o comunista, a questão é a socialização dos meios de produção dos valores de uso, mas para o comunista que ganha a vida como intelectual a questão que imediatamente se apresenta é a socialização dos meios de produção intelectual. Ou seja, os intelectuais, sobretudo os orgânicos das periferias, devem agir pela expropriação dos proprietários dos meios de produção intelectual. Os meios de produção intelectual são aqueles que os humanos empregam para criarem e porem os signos com os quais se comunicam, como estúdios de TV e rádio, editoras e gráficas, escolas, universidades, centros de pesquisas e laboratórios, museus, bibliotecas, igrejas, teatros e outros. Estes meios não podem ser propriedade de privados, nem de políticos ou tecnoburocratas estatais, nem de intelectuais especialistas, ao contrário, deve ser propriedade social sob a autogestão dos trabalhadores e sua juventude organizados que, assim, se autoeducam. Daí, novamente, a atualidade de Walter Benjamim: “Consegue promover a socialização dos meios de produção intelectual? Vislumbra caminhos para organizar os trabalhadores no processo produtivo? Tem propostas para a refuncionalização do romance, do drama, da poesia? Quanto mais completamente o intelectual orientar sua atividade em função dessas tarefas, mais correta será a tendência, e mais elevada, necessariamente, será a qualidade técnica do seu trabalho”. É justamente o que observamos nos poemas de Thiago Cervan: a elevada qualidade técnica deriva de sua tendência política e literária a favor da revolução social global contra o capital. Como bem descreve a maravilhosa imagem de André Nogueira, Não existem rotas conciliatórias de fuga de Cervan é um cristal vermelho.

3.

Evidente que a relação entre tendência político-literária e a qualidade técnica dos versos não é, necessariamente, uma relação imediata. É bem conhecido o fato de que autores como Balzac, ao construírem seus personagens e suas ações, via-se muitas vezes contrariado, pois o método realista lhe obrigava a revelar a decadência da classe à qual nutria simpatia. Com a decadência ideológica da burguesia após a revolução de 1848, a “primavera dos povos”, essa postura criativa se torna cada vez mais difícil, e os escritores românticos e realistas que permanecem na história como bons escritores são verdadeiros traidores de sua classe, a burguesia, ou dos estamentos cultos da qual se originavam (juristas, pedagogos, artistas, etc). No Brasil, os escritores citados acima são todos exemplos desta traição. A força criativa destes grandes escritores está na sua relação com o humanismo prático dos trabalhadores organizados que, em luta contra o capitalismo, apontam para uma organização social muito mais solidária, livre, justa e amorosa que rompe e traz à tona a falsidade e a mais sutil e cotidiana violência de nossas ações enquanto personagens no palco do capitalismo. 

Com a decadência ideológica de todas as classes e estamentos, a finalidade da obra de arte já não é comunicar valores, conhecimentos e sentimentos a partir dos sujeitos típicos de uma época, ao contrário, é apenas dar vazão para o artista se expressar (sic!). Muitas vezes a palavra utilizada como sinônimo de “expressar” é vomitar, significando algo espontâneo que brota de dentro, como se a criação do artista não tivesse nenhuma relação com sua própria história de vida e, portanto, de suas relações sociais concretas, determinadas em última instância pela classe em que nasce e que determina seu espaço-tempo e forja sua personalidade e gostos. A maioria dos artistas e poetas mantém uma relação não consciente com os pressupostos de sua própria criação, como se eles próprios não tivessem sido educados por uma determinada sociedade, a capitalista.

Expressar na obra a tendência histórica de uma época, com seus sujeitos típicos em situações típicas, significa hoje expressar a inevitável luta dos indivíduos contra o “sofrimento universal” articulando a forma como esse sofrimento se manifesta na vida do indivíduo, o personagem, e as causas histórico-sociais deste sofrimento, a sua essência. Nas palavras de Lukács: “É descendo a essas profundezas e trazendo-as à tona em sua representação que o grande realista executa a tarefa verdadeiramente original, criativa da literatura”. Se é verdade que a correta tendência política e literária de nosso tempo de crise capitalista global não assegura a boa obra, por outro lado, sem uma correta compreensão da realidade humana, seus dramas e suas tragédias, tampouco é possível criar uma obra capaz de comunicá-las com elevada qualidade. Ao lermos os poemas de Thiago Cervan essas relações são explicitadas com imagens que articulam a aparência e a essência e que são capazes de comunicar uma verdade que não é o ponto de vista do autor, mas da vida em comum daqueles que sofrem, por isso, na ainda curta trajetória do poeta que está em seu terceiro livro, muitos de seus poemas já embalam saraus e encontros diversos. Outros são utilizados em salas de aulas por aqueles que sabem que devem tomar uma posição histórico-universal diante das alegrias e das dores alheias: o fim do capitalismo.

É justamente por saber que a boa arte não é espontânea nem uma mera expressão do ponto de vista do artista que fazem de Cervan um dos grandes poetas desta nova geração. Não capitula ao mercado, nem se enclausura no seu umbigo. A tendência filosófico-política de Cervan deriva da luta anticapitalista, pelo fim da propriedade privada e pela autogestão social dos trabalhadores. Teoricamente, sobretudo de dois grandes pensadores, o comunista alemão Karl Marx para quem o “amor à humanidade” é característica dos grandes cientistas e o comunista húngaro Georg Lukács, que considera o “amor à vida” característica fundamental para o artista realista. Amor e conhecimento objetivo não se dissociam; amor e realismo também não.  Citando novamente André Nogueira, os versos de Cervan são edificados com a violência da verdade e com o amor de foice e martelo.

Duas são as epígrafes de seu novo livro. A primeira do grande realista brasileiro João Cabral que, ao narrar a luta de Severino contra seu sofrimento e o de sua família, versificou: “muita diferença faz / dentre lutar com as mãos / e abandoná-las para trás”. Existem escritores em que os versos revelam a própria miséria moral, são versos escritos com as mãos abandonadas para trás, sem potência humanista e crítica, sem amor à vida. Outros escrevem seus versos como quem luta com as mãos. Porém, escrever e lutar são formas de práticas bem diferentes. Como Cervan escreveu em seu segundo livro, Dentro da betoneira (2014), a poesia não é arma e nunca foi. As armas da crítica nunca substituirão a crítica das armas. Em seus poemas há diversas referências aos grandes poetas brasileiros que lhe influenciaram, mas, sobretudo, falam dos indivíduos típicos, anônimos da classe trabalhadora periférica e dos que foram assassinados a mando dos capitalistas por milícias legais, como a PM, ou ilegais. Daí sua segunda epígrafe que é uma citação de Karl Marx: “A tradição de todas as gerações passadas é como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos”. A estes famosos poetas e anônimos da classe trabalhadora, Cervan declara sua compaixão genuína, solidária, e apresenta seu livro conscientemente como um objeto de conhecimento sem concessões aos hipócritas e covardes que se dizem cidadãos de bem, politicamente corretos e aos que se dizem dotados de bom senso ou acima de esquerda ou direita.

Quem lê Não existem rotas conciliatórias de fuga conhecerá o drama e a tragédia humana de nosso tempo. Será obrigado a tomar posição diante do sofrimento universal. Seu livro é dedicado à memória de Nicinha, do Movimento dos Atingidos por Barragens, brutalmente assassinada pela milícia do agronegócio de Rondônia  em 2015. Justa homenagem. Poderia ter dedicado à muitos outros e outras camaradas assassinadas todos os anos, todos os dias. A tradição dos mortos comprime nossos cérebros e é preciso elaborar a experiência humana para que tenhamos não apenas a convicção teórica de que a história não para e que tudo o que surge, perece. Precisamos reduzir as dores do parto de uma nova sociedade. O capitalismo surgiu em algum momento de nossa história; o estado surgiu em algum determinado tempo-espaço; o dinheiro surgiu tal como a violência e o ódio também surgiram no passado, e estão todos condenados a perecer um dia. A história prova que todo império cai, toda classe dominante cai. A burguesia sabe e teme, por isso, é a mais sanguinária de todas as classes exploradoras da história humana. A chamada liberdade de mercado que os capitalistas e seus intelectuais tanto defendem é a desgraça humanitária global, gerador do sofrimento universal que serve apenas para gerar lucro aos proprietários.

A tendência político-literária, como já afirmamos, não garante uma boa obra de arte, mas um bom domínio da escrita e das formas literárias também não. É preciso ter o método correto, mas não basta. Não basta auto intitular-se “materialista histórico e dialético”, dizer-se marxista, anarquista ou seja lá o que for. Marx e Lukács estão corretos: é preciso amor à vida. Não ser indiferente. Os poemas de Thiago Cervan são uma declaração de amor à humanidade com a certeza de que a classe trabalhadora traz o futuro nas mãos. A revolução social, como bem escreveu Walter Benjamin, não apenas liberta as gerações futuras, como também vinga as gerações passadas. Cada indivíduo sabe a dor que tem e os mortos que carrega. Se a revolução social triunfará ou não, dependerá de nossas ações conjuntas e organizadas. Cervan não titubeia, não desconversa com abstracionismos e conceitualismos. Como todo comunista, sabe e explicita seus objetivos: expropriar os capitalistas e colocar suas propriedades à disposição dos que realmente produzem a riqueza e não a fruem. Escreve para quem não capitula diante da “liberdade de mercado” que mata centenas de milhões todos os anos de fome e guerra.  

4.

Vejamos alguns versos do livro.

O livro abre com o poema “Seculares” que, com riquíssima aliteração, relaciona a travessia dos refugiados sírios nesta segunda década do século XXI, vítimas da guerra imperialista, pelo mediterrâneo rumo à Europa com a travessia pelo atlântico dos povos escravizados da África, nos séculos XV-XIX, rumo à América. Secularmente, os oprimidos são forçados a abandonarem suas terras, famílias e amigos, histórias e vidas. A história do capitalismo é um registro desta espoliação, desde a prensa e da litografia às câmeras digitais:

 

não há corrente

nos calcanhares

embora correntes

arrastem embarcações

abarrotadas de gente

para o silêncio dos mares

das impressões nas gravuras

às capturas das lentes

praias registram rastros

de afogados e sobreviventes

(…)

O internacionalismo comunista e a excelente qualidade técnica de seus versos são constantes. No ritmo do atabaque, Cervan constrói um encadeamento em redondilhas menores para homenagear os refugiados haitianos de São Paulo:

O preto de cá

Foge da fome

O preto de lá

Foge da fome

O preto de cá

Tem tropa na rua

O preto de lá

Tem tropa na rua

(…)

Para selar o internacionalismo de Cervan, em “A combatente de Kobani”, a resistência das mulheres curdas da comuna entre a Turquia e a Síria, “grávidas de sonhos praticáveis”, liberta gerações futuras e vinga as gerações passadas resgatando os sonhos de um mundo sem fronteiras e livre de exploração e opressão:

(…)

a firmeza da mão de mãe

maneja segura a hk

resgata o brigadista sem pátria

da espanha de 1936

(…)

depois da vitória

comunhão é dança bonita na rua

e abraço nos seus

na ciranda bonita da praça.

Três poemas tematizam nossos vizinhos latino americanos cuja espoliação é fundamental na origem da moderna sociedade burguesa: a Bolívia. Em “Paisagem boliviana”, Cervan contempla as cordilheiras e sua vegetação; em “Potosí” narra o sofrimento dos mineradores da cidade da prata que continuam “escondidos sob a terra / soterrados pela memória / e esquecidos pelo sol”. No poema “Tiwanaco” uma indefectível imagem cabraliana:

o enigma –

das pedras

(…)

cortadas

com navalha

desconhecida

(…)

está

no encaixe

da pedra

sobre a pedra

e nas brechas

[entre pedras]

empedra –

não quebra

Outra imagem digna de ser adjetivada de cabraliana está num poema sem título na qual narra os crimes do agronegócio no Brasil que “faz secar macaxeira / sem casa-de-farinha”. Ou no poema “O afogado do mediterrâneo”, que não faz referências à pedra ou à secura da vida, mas ao sal, mineral das águas do mar nas quais os refugiados morrem  sem cerimônia. 

(…)

o fugitivo

de bombardeios

buscava

em outra terra

o que fora

destruído em 

seu quintal

boia

no velório

das marés

coberto

por manta de sal

Em meio ao internacionalismo, referências a outros grandes nomes da poesia nacional. Em “Tianducheng”, o poeta narra a farsa do capitalismo chinês em replicar a cidade luz francesa forjada nas tragédias das revoluções. Neste poema, Cervan faz referência à “Vou-me embora pra Pasárgada” de Manoel Bandeira, mas, ao contrário da mitológica cidade grega que é outra civilização na qual o poeta modernista buscava uma vida de livre fruição, o capitalismo hodierno em decadência, incapaz de criar um mundo no qual o ser humano se reconheça, cria e reforça o vazio de uma existência sem sentido contra a qual é preciso se rebelar:

(…)

em tianducheng

há bulevares

e lindas fontes

sem casais apaixonados

sendo visitados pelo

pôr do sol chinês

por isso

não vou-me embora

para tianducheng

lá e cá

sou imigo

do rei.

O grande poeta Ferreira Gullar, que morreu em 2016 como um indivíduo de direita, é também referenciado em dois poemas, o que revela o não imediatismo na relação entre a qualidade estética e a tendência político-literária, bem como o não sectarismo do realismo de Cervan. Referência diversas podem ser observadas em seu livro, de poetas como José Paulo Paes ao grupo de rap RZO.

Cervan escreve sobre os dramas e as tragédias brasileiras. Os despejos violentos executados pela PM em manhãs nas quais “nem as crianças / são café com leite”. Fala sobre os motoboys; a crise hídrica; dos maconheiros; de fotografias; da Favela da Prainha e o pré-sal; a Hidroelétrica de Jirau no rio Madeira; fala das usinas de reciclagens que se conectam aos bairros nobres através dos rastros de chorume no asfalto e dos coletores que “acumulam escassez”; das chacinas de Osasco e Barueri e muito mais. Não existem rotas conciliatórias de fuga é um cristal vermelho através do qual é possível conhecer as várias faces da barbárie capitalista que vivemos e cujo brilho não agrada nem aos capitalistas nem aos intelectuais covardes ou vendidos, afinal, este cristal é vermelho.

Não poderia finalizar este texto sem registrar que Cervan produziu dois poemas de imagens arrebatadoras sobre a infância. Escreve sobre a peleja de crianças pobres que lutam contra a propriedade privada da água ao pularem o alambrado de um clube para mergulharem na piscina reservada aos sócios. Bedéis querem a expulsão, mas os meninos não se importam: “mostram o dedo médio / submersos de rebeldia / mergulhados na razão”. Em outro poema fala sobre o pião com precisão:

o corpo de madeira

enrolado no barbante

[ feito balão

         em nuvem

                circundante]

não revela

      o equilíbrio

                 do instante

em que o bico

                de aço

                   se expande no espaço

(…)

Com este terceiro livro, Thiago Cervan firma-se como um dos grandes poetas brasileiros desta nova geração. Realista, o poeta canta a liberdade e a revolução social global, pois para ele o amor não é o “algo mais” ou qualquer abstração vazia de conteúdo prático. Numa releitura de Leminski, conceitua o amor: “amar é um elo / entre a foice / e o martelo”.


NOTAS:

[1Esse é o fundamento para a crítica prática à política. Deixaremos para outra oportunidade esse tema tão necessário.


* Carlos Eduardo Carneiro é comunista e pedagogo.

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