A Frente Única entre a lógica formal e dialética

Por Charles Rappoport, via Marxists.org, traduzido por Gabriel Landi Fazzio

O marxista franco-russo Charles Rappoport (1865-1941) foi membro do Partido Operário Social-Democrata Russo e, mais tarde, do Partido Comunista Francês. Autor de diversos escritos filosóficos (como “Materialismo e Idealismo em Kant”) e da mais completa biografia de Jean Jaurès (líder socialista francês), publicou o presente escrito sobre o título de “Uma Frente Única” em 10 de fevereiro de 1922, no Volume II, n. 11, no veículo da Internacional Comunista, “International Press Correspondence”.


René Descartes, o maior filósofo francês, considerou a clareza como o principal critério da verdade. E a lógica é o caminho para tanto. Todo francês que raciocina é cartesiano, muitas vezes sem sabe-lo. Eles são terríveis enquanto lógicos. Uma vez estabelecidas as premissas, as conclusões seguem inevitavelmente. São os jusqu’au-boutistes [linha dura] [1] da razão. Poincaré diz: “A Alemanha assinou. Portanto, a Alemanha deve pagar”. É em vão que a Alemanha lhe mostra os seus bolsos vazios. Shylock [2] Poincaré exige que a Alemanha extraia todas as conclusões lógicas da ratificação do tratado. Eu poderia citar inúmeros ​​exemplos de políticas dominadas por essa lógica formal; esta é a lógica dos agiotas e de seus advogados. A lógica de uma assinatura em um contrato. O contrato é a premissa – o pagamento da conclusão.

Na França, a lógica formal dominou até agora a formação de uma Frente Única. Os opositores da Frente Única raciocinam da seguinte maneira:

“Em Tours, nós nos separamos dos oportunistas, dos reformistas e dos social-patriotas. Nós quebramos a unidade existente. A Frente Única irá restabelecê-la. A unidade de ação trará a unidade de organização. Não se pode estar unido e dividido ao mesmo tempo. Portanto, não à Frente Única. Nossa força está na clareza, na franqueza e na continuidade de nossa atitude. A Frente Única com as Internacionais 2 e 2 ½ trará dissensão e confusão entre os militantes guiados pela clareza da lógica”.

Assim falaram Frossard e seus amigos em nome dos companheiros da esquerda.

Os camaradas da direita (aos quais não pertenço) levam sua lógica ainda mais longe.

“Falar de uma Frente Única é implicar a unidade absoluta com todos aqueles que não pensam como nós. Agora, o Bloco de Partidos da Esquerda apresenta uma perfeita união. Para o bem de uma Frente Única, recriemos o Bloco de Partidos de Esquerda ”.

Assim falou Henri Fabre, Gottenoire de Joury, etc. Até meu amigo Loriot contribui em certa medida para a lógica formal. Ele diz:

“Se a Frente Única é absolutamente necessária, sejamos lógicos e engulamos, com uma careta em nossos rostos, os líderes dissidentes, mesmo que os detestemos.”

Bem, os secretários de quase todas as Federações que se reuniram no domingo, 22 de janeiro, se assustaram com essa lógica. Eles proferiram um grito unânime: “Nós nunca concordaremos em dar as mãos para os dissidentes”! Cada Federação tem seu terror local, seu monstro federal. O Finisterra tem medo de Goude. O Puy de Dome pula de raiva com o nome do dissidente Varenne. O Nord abomina Lebas. O Baixo Ródano, o Alto Ródano, o Mosela, toda a Alsácia e Lorena gritam: “Melhor a morte que Grumbach!”, etc.

Durante quatro longas horas, as Federações da França Comunista protestaram contra sua repulsa pela unidade ao estilo antigo. Isso é reconfortante. É a melhor prova de que a separação em Tours não foi o resultado de um “tiro de pistola de Zinoviev”, mas o produto natural da evolução das ideias socialistas na França. A divisão foi feita, e bem-feita.

Mas acaso alguém terá o direito de limitar o problema de uma Frente Única a um ato indecente: um beijo nas bocas de Renaudel, Varenne e Grumbach? Evidentemente não. O problema é mais sério e mais complicado.

A definição de metafísica de Engels é bem conhecida: “Ela diz: sim, sim; não, não. Fora disso, tudo é diabólico”. Bem, o método da metafísica é também o método da lógica formal. A dialética marxiana é mais do que uma lógica formal: ela não é formal; ela é concreta, e não abstrata. Ela tira suas conclusões não de silogismos, do raciocínio lógico, mas de si mesma. A vida é, em todo, movimento. Seu conteúdo, que, de acordo com Heráclito, “flui”, não se encaixa facilmente em um quadro fixado com antecedência. A vida é fluida demais para repousar confortavelmente no leito de Procusto da lógica formal.

A dialética marxiana do Comitê Executivo corresponde à vida. Ela admite que respondamos aos nossos oponentes “Sim” e “Não” ao mesmo tempo. “Não”, quando se trata de trabalhar no mesmo partido com homens cujos objetivos são diferentes e cujas concepções são fundamentalmente opostas às nossas. Um revolucionário não pode viver e agir no mesmo partido que um reformista; um internacionalista com um patriota; um representante da luta de classes com um representante da harmonia de classes; um destruidor da sociedade capitalista com um salva-vidas dessa mesma sociedade; um Liebknecht com um Noske, um Loriot com um Renaudel. Para todas estas coisas, Tours disse conclusivamente: “Não”!

Outra coisa é quando se trata do pão e da paz que a classe trabalhadora inteira exige. Com base nas exigências imediatas, pode-se colaborar até com o diabo. Todos os proletários devem ser forçados a sair do seu torpor, da sua inércia, da sua indiferença mortal, e serem conduzidos, para a batalha comum, numa Frente Única Proletária, oposta a uma frente única capitalista.

Logicamente, nosso amigo Loriot está certo. Ele disse, na verdade, na conferência dos secretários: “um acordo temporário com os odiosos líderes dissidentes pouco importa para nós, desde que consigamos alcançar as massas”. A Conferência pronunciou-se unanimemente contra Loriot e em favor da moção de Frossard, que habilmente conseguiu fazer o problema de uma Frente Única aparecer como um encontro com a Dame Dissidence [Senhora Dissidência]. Essa também era a visão do Comitê Central (com exceção do Rappoport). A Frente Única, sob essa forma particular, foi espancada.

Há ainda outro ponto de vista que defendi na Conferência junto com diversas Federações. Levando em conta a lógica formal que ainda domina a maioria dos homens, recusei-me a confundir o problema de uma Frente Única com as táticas de sua aplicação. Com os pontos 8 e 10 das teses do Comitê Executivo como base, exigi para a França uma aplicação especial dessas táticas, “a Frente Única com as massas sobre a cabeça dos chefes”. No presente, é impossível falar com os chefes dissidentes. Vamos primeiro agrupar as massas. Uma vez agrupadas as massas, os chefes serão forçados a seguir de acordo com a regra bem conhecida: “Eu sou seu líder, portanto, devo segui-los”. Não é a lógica estrita do meu amigo Loriot, mas este ponto de vista parece-me conformar-se com a dialética marxiana, que se baseia na própria vida e que leva em conta todas as circunstâncias, as condições de tempo e lugar e até mesmo a doença infantil que caracteriza a lógica formal dos compatriotas de René Descartes, que tinham apenas uma falha: ter nascido dois séculos antes de Karl Marx.


Notas:

[1] O termo “jusqu’au-boutistes” foi amplamente utilizado no terreno militar, durante a I Guerra Mundial, a fim de designar alguém que advogasse levar o conflito “jusqu’au bout”, ou “até as últimas consequências”.

[2] Shylock é uma referência à personagem homônimo da comédia de Shakespeare “O Mercador de Veneza”: insensível e cruel usurário que exigia implacavelmente, de acordo com as condições da letra de câmbio, que se cortasse ao seu devedor insolvente uma libra de carne. Marx utiliza a referência pela primeira vez já em sua “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, de 1844. A referência retornará diversas vezes à obra de Marx, inclusive em “O Capital”, ou em sua carta de 1875 a August Bebel.

Lênin, mais tarde, utilizará novamente a personagem como exemplo personificado da lei do valor, em “O Estado e a Revolução”:

“O Estado poderá desaparecer completamente quando a sociedade tiver realizado o princípio: “De cada um conforme a sua capacidade, a cada um segundo as suas necessidades”, isto é, quando se estiver tão habituado a observar as regras primordiais da vida social e o trabalho se tiver tornado tão produtivo, que toda a gente trabalhará voluntariamente, conforme a sua capacidade. “O estreito horizonte do direito burguês – com os seus cálculos à Shylock: “Por acaso, não terei trabalhado mais meia hora que o meu vizinho? O meu vizinho não terá recebido salário maior do que o meu?” – esse estreito horizonte será então ultrapassado. A repartição dos produtos não mais exigirá que a sociedade destine a cada um a parte de produtos que lhe cabe. Cada um será livre de ter “segundo as suas necessidades “.

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