Revolução: da forma valor ao Comunismo

Pedro Henrique Juliano Nardelli (1)

Introdução

Nascemos todos subordinados às forças físicas que constituem o universo material; esta é uma determinação fundamental. Como seres vivos, somos subordinados a outras determinações biológicas, que diferenciam objetos que podem ser classificados como vivos. Por acasos peculiares da evolução, nossa espécie humana tem um atributo específico de produzir um universo simbólico entrelaçado com o mundo material; tal universo simbólico é transindividual e define o que chamamos de social, abrindo outro domínio (quase ilimitado, pois simbólico) de determinações, que afeta e também é afetada pela realidade material física e biológica.

Para evitar confusão, é importante desde já indicar que a existência de determinações não implica em determinismo, nem a existência de diversas determinações implica em indeterminismo. Um exemplo ilustrativo é dizer que nós humanos não podemos voar pela determinação física (em última instância) da lei da gravidade. Podemos dizer de maneira similar que nós humanos não podemos viver por mais de trezentos anos pelas determinações biológicas da constituição dos processos fisiológicos. Na mesma linha, nós – seres humanos que vivemos no século XXI – via de regra, não podemos obter acesso a riqueza social, como por exemplo a uma moradia ou a um computador, sem pagar (ou sem um outro alguém ter pago) porque existe uma determinação social específica; ela é a determinação social da forma valor, que conforme será discutido posteriormente, caracteriza o modo de produção capitalista como tal. Tais determinações (factuais, mas produzidas como parte de um discurso resultante de uma prática social teórica-científica) explicam a realidade em termos gerais e mais profundos; são necessárias para explicar tais fenômenos citados acima, mas insuficientes para explicar suas minúcias (por exemplo, a explicação do porquê a pessoa X pagou Y pela casa Z; ou da pessoa A morrer aos noventa e três anos e dois dias). Neste artigo, consideramos o nível mais fundamental das determinações, das condições necessárias.

Neste caso, o modo de produção capitalista classifica o período histórico contemporâneo, em que o social é organizado em última instância pelo capital, definido como o valor que se valoriza através da exploração para a acumulação. Como um objeto científico purificado, podemos argumentar que o modo de produção capitalista é caracterizado pela forma valor como sua abstração fundamental, em que outras formas sociais se particularizam. Por exemplo, formas mais concretas (mas ainda assim abstratas e necessárias) como a forma-mercadoria, forma-estado, forma-sujeito e forma-dinheiro são particularizações (ou derivações primárias) desse “campo de força invisível”.

Como uma determinação social, a forma valor não é eterna e pode ser transformada. No entanto, isso implica que uma revolução social em sentido estrito demanda a própria destruição de tal forma abstrata que ao mesmo tempo caracterizam o modo de produção capitalista como tal e que de fato organizam materialmente a sociedade através de diferentes instâncias de poder, especificamente poder repressivo, poder ideológico e poder econômico. O objetivo deste artigo é entender as implicações lógicas e práticas da teoria da forma valor para a luta revolucionária. Em outras palavras, nosso objetivo é produzir ciência sobre o objeto teórico purificado chamado modo de produção capitalista a fim de buscar seus pontos mais vulneráveis em termos da lógica fundante da forma valor para enfim indicar o potencial revolucionário de intervenções concretas anticapitalistas. Mais do que isso, nosso objetivo é reforçar que nem todo anticapitalismo aponta (logicamente) para formas sociais em que a sociedade não seja dividida entre classes exploradoras e exploradas; dessa forma, mostraremos também os princípios fundamentais para um modo de produção que seja anticapitalista e comunizante, ou seja, o modo de produção comunista.

O modo de produção capitalista e a forma valor

Marx (2017) produz a crítica da economia política, apresentando as determinações lógicas do capital, definido como o processo de metamorfoses do valor que se valoriza para acumulação. Heinrich (2012; 2021) e Holloway (2022), cada um à sua maneira, explicam bem como Marx procede no Capital para determinar as relações lógicas mais fundamentais do modo de produção capitalista.

Especificamente, Heinrich (2021) entra nos detalhes dos primeiros capítulos, incluindo aspectos linguísticos baseados nos manuscritos organizados através do projeto Marx-Engels-Gesamtausgabe (MEGA), até mesmo questionando algumas escolhas dos tradutores para a versão dos escritos de Marx mais conhecida em língua inglesa. Em contraste a leituras que consideram a apresentação de tais capítulos como uma reconstrução histórica de como as formas sociais capitalistas se estabeleceram, Heinrich defende a tese, retomando uma abordagem iniciada por Rubin (1987) e seguida por uma série de autores que propõe uma “nova leitura de Marx”, que o que o Capital nos apresenta são as relações lógicas essenciais do modo de produção capitalista já estabelecido e como um objeto científico purificado. O conteúdo de tais capítulos é a derivação das formas sociais e suas relações lógicas necessárias para o capitalismo poder ser reconhecido cientificamente como um modo de produção específico.
Holloway (2022) também entende que as relações entre as formas sociais são de derivação lógica e criam o que ele chama de “os anéis da corrente da destruição (que) são difíceis de quebrar” (p. 102). Indo além de Marx, Holloway inclui outras formas sociais como específicas do capitalismo, especificamente o Estado como sua forma política seguindo o debate da derivação do Estado iniciado na Alemanha ocidental nos anos 70. De fato, o próprio Holloway trouxe o debate alemão para o público anglo-saxão com a tradução para inglês dos seus principais textos ainda nos anos 70. Mascaro (2013) contribui na teorização da derivação do Estado através da uma proposta de leitura que avança no entendimento das formas sociais lógicas através de derivações primárias, sendo o Sujeito de Direito a forma de subjetividade jurídica (demonstrada por Pachukanis (2017)) e o Estado a forma política ambos derivados da e necessárias à forma mercadoria. Mascaro vai além e propõe que o Estado de Direito é uma derivação secundária de tais formas derivadas primárias, se conformando. O interessante dessa abordagem é que indica um caminho teórico para explicar a materialidade da realidade das instituições políticas e jurídicas, e suas variações (e daí também suas invariantes estruturais, necessariamente capitalistas) nas formações capitalistas sociais existentes, criando a possibilidade de introduzir aspectos da conjuntura e do antagonismo social entre as classes trabalhadoras e capitalistas na própria dinâmica institucional dos órgãos estatais.

As formas sociais e suas relações lógicas servem então para prover a “ciência” do domínio social, e suas respectivas determinações fundamentais, indicando o que é necessário e suficiente para existir na realidade concreta algo que possamos identificar como modo de produção capitalista. Em sua reformulação da leitura até então dominante do Marxismo soviético, chamado de economicista em que as forças produtivas (associadas ao desenvolvimento técnico) determinam a sociedade em última instância, Althusser (2014, 2017) propõe (também contra um humanismo teórico) que a sociedade é um todo complexo articulado em dominância pela economia, mas sobredeterminado por outras práticas e instâncias sociais. É importante relembrar que Althusser diferencia uma estrutura “dominante” em um dado local e período histórico, e uma estrutura “determinante” relacionada ao modo de produção. Por exemplo, o poder estatal ou judiciário pode ser dominante numa dada conjuntura como o Brasil em 2016, mas o poder econômico é a determinação fundamental pois o modo de produção capitalista ainda se reproduz. Em outras palavras, as estruturas dominantes podem variar para um dado modo de produção, mas sua estrutura determinante, não. Apesar da capacidade de internalizar teoricamente a complexidade e a temporalidade das diversas determinações sociais, tal formulação não consegue, ao nosso ver, responder satisfatoriamente como a determinação em última instância se dá.

Nossa tese é que a solução para tal formulação está na teoria da forma valor apresentada anteriormente; a pergunta a ser respondida agora é: como a forma valor (o “econômico”) determina em última instância o todo complexo que é a sociedade capitalista? Nossa resposta passa novamente por Althusser, mas em suas formulações associadas ao chamado materialismo aleatório (MASCARO; MORFINO, 2020). Em sua contribuição, Mascaro expõe didaticamente como diferentes fenômenos sociais pouco relacionados podem se encontrar e pegar, através de processos que se reforçam mutuamente. Uma vez que a uma forma social pega, um padrão de relação social reconhecível emerge factualmente, e daí pode-se caracterizar tal objeto através de suas diferenças específicas. No entanto, se tal padrão deixar de existir, tal objeto também desaparecerá. A formulação de Althusser olha para o modo de produção capitalista definido pelo capital, que é o valor que se valoriza para acumulação através da exploração do trabalho. Mascaro (2013) e Althusser (2014, 2017) nos mostram como diversas instâncias e práticas sociais dependem materialmente não só da produção de valor e mais valor, mas também da reprodução das relações de valor (incluindo as relações de produção). Ou seja, o modo de produção capitalista é a permanência da forma valor. Se tal permanência é real, ela é então reconhecível cientificamente, implicando que a sociedade caracterizada como capitalista se reproduz materialmente.

Se considerarmos que a forma valor aja como um campo de força em que há uma causalidade estrutural emboçada por Althusser (2020, p. 33-36) em que só é possível verificar sua existência através de seus efeitos, pode-se compreender que a realidade social concreta das formações sociais capitalistas tem como princípio organizacional instituições e práticas materiais que tendem a preservar a sociabilidade capitalista existente. Assume-se a forma valor como fundamento lógico – a determinação em última instância – que a sociedade capitalista existe. As formas sociais derivadas primariamente da forma valor (por exemplo, forma-mercadoria, forma-sujeito-de-direito, forma-Estado e forma-dinheiro) são as formas necessárias para a existência de tal sociedade, mas cada qual sozinha não é suficiente e sua existência é necessariamente conjunta dentro do campo definido pela forma valor; outras formas derivadas secundariamente como conformações provêm o entendimento de um outro nível de abstração, mais concreto e menos necessário, num caminho a partir das formas para as formações existentes.

Melo (2022) sintetiza magistralmente o tema de sua dissertação de mestrado que é uma reconstrução do universo lógico, mais abstrato, das formas sociais capitalistas e do que chamamos aqui de campo da forma valor:

“Este quadro geral, que representa as bases sobre as quais este trabalho procura se assentar, configura uma espécie de “concerto de formas sociais”. Neste sentido metafórico, é como se as formas sociais da mercadoria, do dinheiro, do direito e do Estado correspondessem, cada qual, a um diferente instrumento musical, todos componentes de uma mesma orquestra capitalista. E embora distintos uns dos outros pela especificidade de cada um de seus timbres, todos esses instrumentos reproduziriam a mesma frequência sonora das notas musicais dadas pela forma do valor e – na medida em que impostas em ritmo crescente – pela forma do capital. Por isso mesmo, essas duas últimas formas corresponderiam à própria partitura da presente sinfonia de exploração e dominação.” (MELO, 2022, p. 37)

Com isso verificamos que no modo de produção capitalista, há nucleações distintas: há uma forma política que é distinta da forma econômica que é distinta da forma jurídica; há uma instância pública distinta da privada. Tal divisão é material, e emergiu no processo histórico em que o capitalismo “deu pega”. Allen (2011) expõe de maneira interessante as condições e processos que se reforçam mutuamente para o capitalismo ser o capitalismo, também indicando uma explicação bastante convincente, em termos da própria lógica do capital, sobre o “desenvolvimento” de diferentes regiões do mundo (apesar de seu livro ser uma introdução bastante breve e longe de ser crítica ao capitalismo).

Voltando ao trecho acima, entendemos que a “partitura” da forma valor indica o vínculo mais profundo e abstrato das formas sociais identificadas estruturalmente com o Estado, direito, mercadoria e dinheiro; ela é o campo em que tudo isso existe e está nela a diferença específica do capitalismo para outros modos de produção que existiram até então, em que a diferenciação de tais instâncias do tecido social não eram nucleadas através de um dominação impessoal das relações de valor (seguindo a formulação de Heinrich (2012, p. 75)). Vale ressaltar que a forma social do valor e suas derivadas primárias se põe estruturalmente e intervém na realidade material diretamente através de instituições e aparelhos ideológicos e repressivos (ALTHUSSER, 2014; MASCARO, 2013) e também indiretamente através do poder econômico impessoal, agindo como a “compulsão silenciosa” que emerge materialmente como o elemento da “unidade-na-separação” impondo a forma-valor como a “cola” necessária para a satisfação das necessidades mais básicas da reprodução humana e daí sendo socialmente necessária (MAU, 2023; ENDNOTES, 2015). Este último ponto abre o espaço para se conjecturar sobre a existência de uma outra forma social derivada primariamente da forma valor, a forma tecnociência, em que conhecimentos científicos são produzidos pelos agentes de produção teórica necessariamente para servir à valorização do valor, materializando-se em tecnologias, infraestruturas, maquinaria etc. que não só visam um aumento do mais-valor (e do lucro) mas também subordinam a reprodução da vida a tal materialidade (subsunção real).

Apesar desse aparente fechamento lógico e sua consequente materialidade social “estável” em que padrões são identificáveis (por exemplo, compra e venda de bens de consumo e mão de obra são onipresentes)), é importante ressaltar os limites das formas sociais e sua capacidade em limitar os “conteúdos” da realidade social. Holloway (2022) argumenta de maneira convincente que, apesar da coerção das formas sociais, ela nunca é perfeita, daí o conteúdo sempre ter o potencial de transbordar às restrições impostas pelas formas. Seguindo Mascaro (2013, 2020), a luta de classes e os antagonismos sociais rearticulados no campo da forma valor perpassa todo o tecido social, abrindo a possibilidade de “encontros” que possam desestabilizar as formas particularmente capitalistas para então abrir uma fase de transição.

Ainda assim, vivemos submersos na realidade determinada pelo campo de força da forma valor e, como revolucionários, é necessário lutar “dentro-contra-e-além” [in-against-and-beyond] (HOLLOWAY, 2022, p. 25). Mas, por onde começar? Nossa resposta é lutar contra a forma social capitalista que, pode-se dizer, é a face material da forma valor, abstrata e universal: ela é a forma-dinheiro. Holloway nos diz:

“Pensemos nisso como um vínculo forçado [binding], um vínculo forçado de nossa atividade e, cada vez mais, um vínculo forçado de toda a atividade humana. Nós, humanos, nos relacionamos uns com os outros de uma forma que molda o que fazemos. Temos um número aparentemente infinito de maneiras de nos relacionarmos: amar, odiar, desdenhar, apoiar, compartilhar, cooperar, explorar, desejar, matar, acasalar e assim por diante. Aparentemente infinito, mas na verdade é finito. Finito não no sentido de que há um fim na lista, mas no sentido de que há um limite, uma ligação de nossos relacionamentos uns com os outros dentro de uma certa lógica. A lógica é a lógica do dinheiro, a vinculação forçada é uma vinculação ao dinheiro. O dinheiro é uma ligação de nossas ações e de nossas relações, um empurrão delas para certos padrões, padrões assassinos-suicidas, padrões que estão nos matando.”(HOLLOWAY, 2022, p. 84) [tradução e ênfase minhas]

Melo (2022) explica muito bem como a forma dinheiro é articulada com outras formas fundantes da forma valor, como ela é necessária para a orquestra. Mascaro (2013) aponta também num outro nível de abstração como o Estado de Direito e os aparelhos jurídicos dependem da forma-dinheiro (com suas diferentes funções) nas formações sociais existentes. Holloway (2022) põe com todas as letras o motivo para enfrentar a forma dinheiro a fim de destruir o coração desse monstro sem coração, e daí matar a Hidra que é o capitalismo:

“A esperança é a esperança-contra o sexismo, o racismo, a destruição da terra, todas aquelas cabeças de Hidra que estão unidas de alguma forma ao corpo capitalista, o corpo que tem o dinheiro como o coração desse monstro sem coração [heartless heart]. O dinheiro parece ser o recipiente infinitamente flexível que recupera qualquer vitória nossa e o reintegra na lógica do capital, mas não é assim, porque nosso “vocês não nos conquistaram, nós resistimos e nos rebelamos” entrou no próprio dinheiro e o tornou frágil, quebradiço.” (HOLLOWAY, 2022, p. 247) [tradução e ênfase minhas]

Se a forma-dinheiro é o vínculo “mais visível” da sociedade capitalista, podemos então entender “a revolução como desvinculação” [revolution as unbinding] (HOLLOWAY, 2022, p. 119). Em outras palavras, Holloway propõe como intervenção revolucionária consequente acabar com a forma-dinheiro e os vínculos profundos que ele representa. Mas, o que isso implica? Nós autodenominados revolucionários (é o que eu espero dos leitores deste texto) estamos mesmo preparados para a revolução social?

E, se sim, para que tipo de revolução social? Queremos um comunismo (definido cientificamente através da forma comum, ou do comunizar, contra a forma valor) ou outra coisa (que possa até mesmo ser ideologicamente autodeclarada por seus apoiadores de socialismo ou comunismo ou qualquer outro termo)? Trataremos disso na próxima seção.

A revolução social, o comunismo e a forma comum

Convido ao leitor a parar um momento e refletir consigo mesmo e com potenciais camaradas revolucionários sobre a seguinte afirmação sobre a revolução social: A revolução social hoje significa a destruição de todas as formas específicas do modo de produção capitalista, ou seja, a forma valor, a forma Estado, a forma dinheiro e a forma sujeito de direito deixarão de existir materialmente. Isso quer dizer: não haverá garantias sociais nos termos capitalistas (propriedade, aposentadoria, emprego, código cível, etc.). É isso que queremos?

Vamos pensar quais seriam os motivos revolucionários, as razões profundas para a ação revolucionária, como muito bem colocadas por Bernes (2020)

“Este ser em que as pessoas se esforçam para perseverar não é idêntico para cada pessoa, e alguns aspectos dele são muito claramente determinado historicamente, únicos a relações sociais e instituições particulares, mas todas as sociedades ou comunidades humanas têm como dado que ela deve permitir que as pessoas sobrevivam, ou até mesmo floresçam, e os motivos que correspondem a essas necessidades de sobrevivência formarão a base de muito do que as pessoas fazem (embora certamente não tudo): os humanos se esforçarão para se alimentar, para se refugiarem dos elementos da natureza, e para evitar a dor e doença, para falar dos três dos motivos materiais mais básicos.
No capitalismo, estes motivos básicos alimentam o fogo da acumulação. O aparato do salário, por exemplo, depende da ação motivada-mas-livre [motivated-yet-free] dos proletários que, despojados dos meios de produção, vendem voluntariamente sua força de trabalho a fim de sobreviver. Proletários não são agarrados pelo capital ao nível neuromuscular, seus corpos diretamente recrutados para produzir coisas de valor. Dominação e poder estão em todos os lugares, e sua história é milenar, mas as pessoas quase nunca foram simplesmente objetos ou ferramentas de outros. Mesmo aquelas formas de dominação que imaginamos operar quase inteiramente através da força e ser mais indiferente ao consentimento do dominado presume alguma margem de liberdade limitada.
(…) A teoria dos motivos revolucionários, portanto, enfatiza o raciocínio prático que habita a lacuna entre a compulsão e a ação. Em situações revolucionárias, os proletários refletem sobre o que eles estão fazendo. Eles não agem simplesmente de forma instintiva.” (BERNES, 2020, p.196-197) [tradução e ênfase minhas]

O argumento apresentado neste ensaio é bem mais profundo, e responde adiantadamente a possíveis críticas de ser voluntarista ou humanista. O trecho indicado acima serve para mostrar que os motivos revolucionários devem ser relacionados a materialidade das necessidades mais básicas, e os revolucionários anticapitalistas principalmente nos momentos de ruptura devem raciocinar que há sim a perspectiva de que uma nova sociedade existirá sendo capaz de prover o necessário sem as restrições das formas impostas pela forma valor.

Tal abordagem é bastante trabalhada pelos adeptos do chamado “Marxismo aberto” ou “autonomista”. Apesar da classificação ser válida, ela também pode de alguma maneira amputar a importância de uma visão da transição ao comunismo que rejeita tomar o poder do Estado como necessária. Por exemplo, Holloway (2018) aponta

“Mudar o mundo através do Estado: este é o paradigma que tem dominado o pensamento revolucionário por mais de um século. O debate entre Rosa Luxemburgo e Eduard Bernstein há cem anos sobre a questão da “reforma ou revolução” estabeleceu claramente os termos que deveriam dominar o pensamento revolucionário durante a maior parte do século XX. Por um lado a reforma, por outro lado a revolução. A reforma foi uma transição gradual para o socialismo, a ser alcançada através de vitórias eleitorais e da introdução de mudanças por meios parlamentares; a revolução foi uma transição muito mais rápida, a ser alcançada através da tomada do poder estatal e da rápida introdução de mudanças radicais pelo novo Estado. A intensidade dos desentendimentos escondeu um ponto básico de acordo: ambas as abordagens focalizam o Estado como o ponto de vantagem a partir do qual a sociedade pode ser mudada. Apesar de todas as suas diferenças, ambas visam à conquista do poder do Estado. Isto não é exclusivo, é claro. Na perspectiva revolucionária e também nas abordagens parlamentares mais radicais, a conquista do poder estatal é vista como parte de um surto de convulsões sociais. No entanto, a conquista do poder estatal é vista como o centro do processo revolucionário, o centro a partir do qual a mudança revolucionária irá irradiar. As abordagens que se situam fora desta dicotomia entre reforma e revolução foram estigmatizadas como sendo anarquistas (uma distinção acentuada que se consolidou mais ou menos ao mesmo tempo que o debate Bernstein-Luxemburgo). Até recentemente, o debate teórico e político, pelo menos na tradição marxista, tem sido dominado por estas três classificações: revolucionário, reformista, anarquista.” (HOLLOWAY, 2018, p.11) [tradução e ênfase minhas]

Certamente, Mudar o mundo sem tomar o poder pode ser considerado anarquista e, então, falhando em “ser Marxista” (segundo a ortodoxia).

Tanto Holloway quanto Bernes são alinhados com a “esquerda comunista” dos conselhos e de formas organizacionais mais horizontais (se é que podemos chamar assim) que entendem a transição ao comunismo através de atos comunizantes a serem tomados desde já, sem esperar a cartilha programática de “tomar o Estado antes, para definir por cima a transição (socialismo), para enfim se chegar ao comunismo”. O Coletivo Endnotes logo após a crise de 2008 propõe a releitura dos grupos associados à “teoria da comunização” adeptos ao comunismo de conselho e seus teóricos fundamentais. Em um artigo bastante relevante em sua segunda edição, o coletivo Endnotes (2010) analisa como as teorias da forma valor e da comunização (a primeira muitas vezes considerada por demais acadêmica enquanto a segunda por demais politicista/voluntarista/utópica no mal sentido do termo) podem dialogar. A conclusão do texto nos sumariza essa proposta:

“A leitura crítica de Marx capta a radicalidade do que a negação revolucionária do valor envolve: estamos falando tanto da superação de nós mesmos quanto de algo “lá fora”. A contribuição da TC [Théorie Communiste] é compreender como e por que a configuração da contradição entre capital e trabalho em um período anterior não representava tal superação. Na época de Marx, e durante o movimento histórico dos trabalhadores, a relação do capital e do proletariado representava uma revolução em termos de afirmação e não da negação do trabalho, do valor e da classe. O trabalho da TC sugere que a “saída” radical implícita pela teoria da forma de valor pode ser determinada pela evolução histórica da própria relação capital-trabalho, em vez de ser o produto de uma consciência correta não-histórica, de um ponto de vista científico flutuante ou de uma perspectiva de crítica. A perspectiva histórica sobre a relação de classe complementa a teoria da forma de valor. E a análise sofisticada das relações sociais capitalistas na dialética sistemática e na teoria da forma de valor pode informar a perspectiva da comunização, oferecendo uma elaboração do que é exatamente essa relação de classe, e como as relações sociais particulares da sociedade capitalista são determinadas pela forma como tal. A dialética sistemática e a teoria da forma de valor podem nos ajudar a entender o caráter da relação de classe capitalista, ou seja, o que exatamente pode ter uma história na qual a revolução se apresentou anteriormente sob a forma de programatismo, e cujo horizonte adequado de superação é agora a comunização. O comunismo necessita da abolição de uma relação multifacetada que evoluiu ao longo do tempo, mas aboli-lo significa simplesmente que deixamos de constituir valor, e ele deixa de nos constituir. A radicalidade de nosso próprio período é que esta é agora a única maneira que podemos concebê-la.” (ENDNOTES, 2010, p.105) [tradução e ênfase minhas]

A questão da comunização como transição para o momento atual é também tema do próprio Holloway (2022, p. 106), contrastando o comunizar contra o vínculo forçado [binding] da campo da forma valor. Endnotes (2010, p. 74) vai mais a fundo e explica:

“Aqueles que desenvolveram a teoria da comunização rejeitaram esta postura de revolução em termos de formas de organização e, em vez disso, visavam compreender a revolução em termos de seu conteúdo. A comunização implicava uma rejeição da visão da revolução como um evento em que os trabalhadores tomavam o poder seguido de um período de transição: ao invés disso, ela deveria ser vista como um movimento caracterizado por medidas comunistas imediatas (como a distribuição gratuita de bens) tanto por seu próprio mérito, quanto como uma forma de destruir a base material da contrarrevolução. Se, após uma revolução, a burguesia é expropriada, mas os trabalhadores permanecem trabalhadores, produzindo em empresas separadas, dependendo de sua relação com aquele local de trabalho para sua subsistência, e trocando com outras empresas, então se essa troca é auto-organizada pelos trabalhadores ou dada direção central por um “estado operário” significa muito pouco: o conteúdo capitalista permanece, e mais cedo ou mais tarde o papel ou função distinta do capitalista se reafirmará. Em contraste, a revolução como movimento comunista destruiria – deixando de constituí-las e reproduzi-las – todas as categorias capitalistas: intercâmbio, dinheiro, mercadorias, a existência de empresas separadas, o Estado e – o mais fundamental – o trabalho assalariado e a própria classe trabalhadora. “(ENDNOTES, 2010, p.74) [tradução e ênfase minhas]

Neste caso, percebe-se que na transição deve-se focar mais na reprodução dos conteúdos comunistas (que devem se cristalizar como formas sociais necessárias num modo de produção comunista) para destruir as formas especificamente capitalistas, que estruturalmente existem para garantir a existência da forma valor. Ou seja, impor “por cima” – ou seja, através de uma forma social especificamente capitalista – um tipo de transição que impõe conteúdos comunistas através de formas capitalistas, é perigosa, pois inevitavelmente a forma capitalista, irá exercer uma coerção estrutural para sua a preservação bem como a preservação da forma valor e suas derivadas, moldando “conteúdos estruturalmente capitalistas” (ou seja, contrarrevolucionários). Daí, o conteúdo “comunista” introduzido de fora como uma relação social imposta pelo Estado ou pelo Direito à sociedade tem poucas chances de se reproduzir sem uso de um aparato repressivo. Com isso, pode-se entender a relação profunda entre a forma e o conteúdo, e como impor uma forma “externa” a um conteúdo já formatado pode ser problemático; de certa maneira, Rubin (1987) e Pachukanis (2017) já apontavam isso em seus textos que buscam no Capital a relação profunda entre a forma e o conteúdo no modo de produção capitalista, não podendo então ser dissociados de maneira modular.

A tese defendida aqui é entender a transição como uma “epidemia” de relações comunizantes que “matam” a forma valor. Assim, tal propagação exerce materialmente um processo em que a “comunização” deve ser estabelecida e reproduzida como uma forma social “do comum” através de práticas sociais (no sentido amplo) que vão dando pega. A revolução então deve-se passar por novas relações sociais que irão definir novas formas sociais, em que os homens possam se associar livremente sem vínculos forçados, pessoalmente ou impessoalmente. Ou seja, o conteúdo comunizante tem que ser capaz de destruir as formas capitalistas que tentam o conter. Conquistar a forma estatal para então impor conteúdos comunistas traz consigo o grande perigo de portar a contrarrevolução dentro da própria revolução. Nesse caso, a visão proposta aqui é que a revolução comunista deve ser entendida como um fenômeno emergente em que os elementos submetidos a estrutura determinante capitalista sejam capazes de se reorganizar de tal maneira que ela seja desestruturada em suas formas fundamentais ao mesmo tempo em que outra estrutura social determinante se estabeleça e se reproduza materialmente. Ressalta-se, no entanto, que utilizar “formas capitalistas” como uma possibilidade para a revolução não é descartada, mas é conjuntural (ou seja, depende da estrutura dominante e da relação de forças).

Nessa linha, Holloway (2018) a partir da segunda edição de Mudar o mundo… (disponível em inglês) rebate o argumento de que “sim, concordamos com isso, mas também devemos tomar o Estado” (por exemplo, defendido por Hirsch). Holloway nos diz:

“Não há espaço aqui para um “mas também”. Não há espaço para dizer “Sim, devemos construir formas de autodeterminação, mas também é importante lutar através do Estado”. As duas formas de luta não podem existir pacificamente lado a lado simplesmente porque se movem em direções opostas: o Estado é uma intervenção ativa e constante contra a autodeterminação. Não há mas também, mas há espaço para um mas apesar de? Em certas circunstâncias faz sentido dizer: “Estamos construindo formas de autodeterminação e sabemos que o Estado é um processo de negação da autodeterminação, mas apesar disso, pensamos que, nesta situação particular, lutar através do Estado pode nos dar uma forma de fortalecer ou proteger nossa luta pela autodeterminação”? Esta é uma questão que é, pelo menos inicialmente, bastante distinta da questão de tomar o poder do Estado. Há muitas pessoas que claramente rejeitam a noção de tomar o poder do Estado, mas ainda assim a consideram importante para sua luta influenciar ou ganhar o controle de partes do aparato estatal.” (HOLLOWAY, 2018, p.234) [tradução e ênfase minhas]

Nesse contexto, podemos resgatar dois autores que propõem, cada um à sua maneira, a transição ao comunismo através do Estado, mas dialogando com as consequências da existência da forma valor e suas formas derivadas (mesmo quando não se refiram a elas com esses termos). Em resposta aos movimentos operários na Itália e a situação da União Soviética, Turchetto (2005) tenta responder a questão da revolução e da transição ao comunismo através de uma abordagem que dialoga com os debates levantados por Althusser na França introduzindo, mesmo que de forma latente, a questão da forma valor e da necessidade fundamental de uma transição no modo de se produzir materialmente (isto é, na economia mas com uma abordagem nao economista de tal domínio, de certa forma, alinhando-se com o estudo de Mau (2023)). Para ela, apesar de ver como necessário tomar o poder do Estado, isso parece não ser o aspecto prioritário, que seria destruir as formas sociais relacionadas à produção de valor. Em sua visão, “a divisão técnica do trabalho é o “social” do modo de produção capitalista” (p. 45). Com isso, a tese defendida por Turchetto é que a transição do capitalismo ao comunismo é diferente da transição do feudalismo ao capitalismo, pois o comunismo é um modo de produção onde não há exploração de uma classe por outra, e com isso, não é possível coexistência de diferentes modos de produção sob a dominância de um deles, e daí a transição ser o período quando um modo de produção ainda não domina os outros. Isso poderia até ser válido para entender a relação entre o modo de produção (e exploração) feudal e a transição ao capitalismo através da subsunção formal e real do trabalho. Mas, a transição para o comunismo é necessariamente a destruição de todas as formas de exploração de classes, sendo elas diretas ou indiretas. Ao se olhar o modo de produzir e a divisão técnica do trabalho, Turchetto aponta a destruição da subsunção real e formal do trabalho como uma condição necessária para a livre associação produtiva. De outra maneira, seguindo Holloway (2022), isso significa destruir a identidade imposta pela forma trabalho (abstrato) ao mesmo tempo em que se liberta a atividade humana produtiva de suas amarras (técnicas e sociais). Tal conclusão também pode ser implicada nos escritos produzidos pela vertente Crítica do Valor, como nos ensaios de Jappe (2017).

Linera (2020) também nos apresenta um estudo bastante interessante sobre a revolução russa de 1917, tentando entender a onda revolucionária e a contrarrevolução dentro dela. Olhando pela ótica da forma valor, ele argumenta que o modo de produção capitalista nunca foi superado, pois suas formas peculiares nunca desapareceram; as que foram combatidas num primeiro momento, se recompuseram posteriormente (mesmo quando houve uma mudança de denominação, mas jamais da realidade concreta avaliada cientificamente). Apesar de um certo tensionamento entre a necessidade de se fazer mudanças através do Estado e a vida comunitária tradicional dos povos andinos, Linera entende a comunização existente dessas sociedades como um caminho que pode levar a um modo de produção comunista, sendo o Estado como um catalisador de mudanças da população, que daí poderá se expandir, eliminado a necessidade do Estado como forma política terceira.

Olhando contribuições não-marxistas, o fenômeno das mudanças climáticas colocou o tema “transição” na agenda mainstream. Por exemplo, a teoria de sistemas complexos estuda transições e coloca à disposição alguns termos que podem ajudar a análise da transição comunista. Apajalahti e Kungl (2022) nos apresentam didaticamente modos que a transição energética pode acontecer através de: quebra de caminhos [path break-outs] que enfraquecem os mecanismos de reforço mútuo [self-reinforcing mechanisms] em processos sociais e institucionais que são acoplados. Argumenta-se que tal break-out pode ser intencional ou não intencional, mas que conhecendo sua dinâmica, a transição energética pode ser acelerada. Apesar de pouco revolucionário, tal visão pode ajudar a entender a transição como a articulação das rachaduras do modo de produção capitalista, criando uma dinâmica comunizante onde se produz e se aprende a produzir para dividir, onde as técnicas podem ser desenvolvidas para melhorar a alocação de recursos sem mediação monetária, o acesso à riqueza social é aberto e irrestrito, o gerenciamento da escassez é determinado “politicamente” etc. Certamente, pode-se e deve-se pensar em como organizar isso agora, durante rebeliões, e eventualmente no momento da transição de fato, levando em conta os “motivos revolucionários” já apresentados. Mas como saber se as intervenções propostas estão caminhando ao comunismo (livre associação) como um modo de produção capaz de prover a sobrevivência e o florescimento do ser humano?

Novamente, Bernes (2021) nos provê um excelente ensaio em que ele propõe o “teste do comunismo”, bem como o “teste do valor”. A partir de uma leitura dos textos e comentários de Marx, Bernes propõe dois testes lógicos para entender se intervenções propostas ou tomadas de fato são capazes de destruir a dinâmica da forma valor (“teste do valor”) e, se sim, essa dinâmica vai levar ao comunismo (“teste do comunismo”). O teste do valor é caracterizado como “um teste lógico, uma crítica imanente que, diante de qualquer proposta comunista de economia, revela seus pressupostos e, a partir daí, constrói um curso especulativo de desenvolvimento.” Ou seja, Bernes argumenta que “(a) partir da ciência do valor, podemos desenvolver uma ficção científica crítica do valor, traçando o curso que uma revolução deve tomar ao delinear certos pontos lógicos de falha, certas proteções.” A proposta de Bernes é diferenciar o teste do valor e o teste do comunismo, argumentando que esse último deve levar em conta uma prospecção lógica que indique que as medidas a serem tomadas não apenas passem do teste do valor mas também do teste do comunismo, que conforme Bernes pode ser definido como: “[uma] sociedade sem classes, sem dinheiro e sem Estado; trabalhadores livremente associados atendendo às suas necessidades com os meios de produção sob controle consciente e planejado. O comunismo é prismático e, portanto, qualquer uma dessas definições é suficiente e intercambiável.”

A análise proposta por Bernes revisita as argumentações de Marx contra algumas propostas políticas reformistas e estende esse entendimento aos autores relacionados a “esquerda comunista” e suas contribuições teóricas e políticas. Para nós, tais testes podem ser aplicados pensando nas formas sociais especificamente capitalistas e em um futuro em que não haja classes, em que a reprodução social seja possível através da livre associação sem existir, por exemplo, trabalho compulsório e a forma dinheiro. No final de seu ensaio, Bernes indica que o teste do comunismo é conceitual, e daí propõe tarefas comunistas que podem ser derivadas diretamente dos testes; elas são:

“• Abolição imediata do estado parlamentar, burocrático e repressivo e de todos os sujeitos de direito.
• Expropriação dos meios de produção por entidades auto-organizadas que produzem diretamente para uso social.
• Romper o vínculo entre direito e responsabilidade, contribuição trabalhista e recebimento da riqueza social. Racionamento, se necessário, com base na necessidade, não na contribuição.
• Comunizar o consumo, a distribuição e a produção de acordo com um plano comum e livremente planejado. (BERNES, 2021)” [tradução minha]

Tais pontos parecem bastante convincentes como tarefas que conseguem ao mesmo tempo eliminar a forma valor (e materialmente combater sua face mais visível: a forma dinheiro) e constituir novas práticas e formas sociais que podem ser caracterizadas como comunistas.

Conclusões

Neste texto, argumentou-se que a revolução social hoje é a destruição das formas abstratas peculiares ao capitalismo. Com isso, indicou-se que tomar o poder do Estado não parece ser o caminho prioritário para a revolução, mas sim atos comunizantes articulados para que ao mesmo tempo enfraqueçam os mecanismos que reforçam mutuamente os processos derivados primariamente da forma valor, a fim de os destruir, e ao mesmo tempo constituir materialmente de maneira imanente novas relações sociais não exploratórias que irão permitir uma transição revolucionária acelerada.

Note que isso certamente não é simples e a conjuntura afeta a dinâmica real do processo. No entanto, segundo Holloway (2022), a forma dinheiro está em crise e não podemos lutar para “salvá-la”; no momento de crise monetária, devemos ajudar a destruí-la através da comunização da riqueza social incluindo o ensino aberto e mútuo de conhecimentos científicos e técnicos para permitir uma reprodução social sem exploração de classes, sem dinheiro e sem restrições ou contrapartidas compulsórias. Deve-se destruir a subsunção real, a divisão técnica para eliminar as classes sociais especificamente capitalistas e também as determinações sociais que levam populações imensas a viverem em condições abjetas já que não conseguem ser absorvidas como trabalhadores no sentido estrito. O modelo de transição do feudalismo ao capitalismo então não serve de exemplo para a transição ao comunismo.

Entendemos que não há teleologia e que processos e eventos aleatórios podem acontecer, e nós revolucionários devemos estar preparados para articular o break-out da forma valor através de intervenções comunizantes, ou seja, que passem pelo teste do comunismo. Lembremos o Maquiavel lido por Althusser (2010): os revolucionários devem ter ambos sorte [fortuna] e coragem [virtù] para intervir na conjuntura, de criar as condições para consumar o fato que desejamos, o fact to be accomplished.

A proposta dos centros socialistas por Mascaro aponta a necessidade da luta “ideológica” material e de base, mas em si ela é mais do que isso: ela é um ambiente que é (ou deve ser) constituído o mais longe possível da política institucional e de questões econômicas (no sentido capitalista). A materialidade do comunizar, do dividir, do “fazer o que der para ajudar” sem esperar nada em troca pode ser o caminho ao socialismo, quando a conjuntura permitir. Fecho esse texto com um trecho da Carta sobre o socialismo escrita por Mascaro (2018):

“Parece então, de início, impossível ou infrutífera a palavra da crítica. Mas a própria sociabilidade do capitalismo nem fecha e nem é fundada em positividades perfeitas. Vende-se a si mesmo sempre, e de modo cada vez melhor, para a exploração. O positivo é seu próprio negativo. Do consumo à carreira, à tecnologia, ao amor, ao lar e ao sentido da vida, o capitalismo se estabelece como a interpelação máxima do sujeito para a sua total insignificância. A palavra da crítica ao capitalismo, nesse mundo, é nada em termos de referência e sentido, mas tem um alto potencial de ser tudo nesses mesmos termos.” (MASCARO, 2018, p.189)

Comunizar hoje pode parecer sem sentido, mas talvez amanhã (ou no eventual dia em que a forma dinheiro colapsar), ela pode ser a resposta para a existência humana – parafraseando Holloway, esta é a esperança nestes tempos sem esperança.

Referências:

ALLEN, Robert C. Global economic history: a very short introduction. Oxford University Press, 2011.
APAJALAHTI, Eeva-Lotta; KUNGL, Gregor. Path dependence and path break-out in the electricity sector. Environmental Innovation and Societal Transitions, v. 43, p. 220-236, 2022.
ALTHUSSER, Louis. Machiavelli and Us. Verso Books, 2010.
_____. On the reproduction of capitalism: Ideology and ideological state apparatuses. Verso Books, 2014.
_____. Philosophy for Non-philosophers. Bloomsbury Publishing, 2017.
_____. History and Imperialism. Cambridge: Polity, 2020.
BERNES, Jasper. Revolutionary Motives. Endnotes 5. 2020.
_____. The Test of Communism. COMMUNISTS IN SITU, 2021
ENDNOTES, Collective. Communisation and Value-Form Theory. Endnotes 2. 2010.
_____. Unity in Separation. Endnotes 4. 2015.
HEINRICH, Michael. An introduction to the three volumes of Karl Marx’s Capital. NYU Press, 2012.
_____. How to Read Marx’s Capital: Commentary and Explanations on the Beginning Chapters. NYU Press, 2021.
HOLLOWAY, John. Change the World Without Taking Power: The Meaning of Revolution Today. Pluto Press, 2018.
_____. Hope in Hopeless Times. Pluto Press, 2022.
JAPPE, Anselm. The writing on the wall: On the decomposition of capitalism and its critics. John Hunt Publishing, 2017.
LINERA, Álvaro García. ¿Qué es una revolución?. CLACSO. Prometeo, 2020
MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Boitempo, 2017. (Livro I: o processo de produção do capital).
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e forma política. São Paulo: Boitempo, 2013.
_____. Crise e golpe. Boitempo Editorial, 2018.
_____; MORFINO, Vittorio. Althusser e o materialismo aleatório. São Paulo: Contracorrente, 2020.
MAU, Søren. Mute Compulsion: A Marxist Theory of the Economic Power of Capital. Verso Books, 2023.
MELO, Romulo Cassi Soares de. Dinheiro e formas sociais: investigação da forma monetária no debate marxista contemporâneo. 2022. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo.
PACHUKANIS, Evguiéni B. Teoria geral do direito e marxismo. Boitempo Editorial, 2017.
RUBIN, Isaak Illich. A teoria marxista do valor. São Paulo: Polis, 1987.
TURCHETTO, Maria. As características específicas da transição ao comunismo. Análise marxista e sociedade de transição. Campinas: UNICAMP, p. 7-56, 2005.

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