Os Bolcheviques, Islã e as mulheres do Leste

Por Naima Omar, via Socialist Worker, traduzido por Barbara Maggioni

Durante meu amadurecimento, eu sempre tive panoramas socialistas, mas acreditava que não poderia ser socialista e Muçulmana, nem que poderia ser a favor da libertação feminina e usar um hijab. Essa é uma crença comum entre os muçulmanos, baseada na suposição de que, para ser socialista você deve ser ateu, como se todo socialista odiasse religião.

Essa suposição pode ser vista quando se baseia em grande parte da esquerda atual em toda a Europa e além. Muitos têm dificuldades para lidar com questões religiosas, em particular com o Islã. Alguns tem até se posicionado em apoio ao banimento do hijab e do véu em nome da libertação feminina.

Mas existe uma outra tradição na esquerda, enraizada nos escritos de Karl Marx sobre religião, que foi aprendida com uma abordagem dos Bolcheviques aos muçulmanos do Império Russo durante a Revolução de 1917.

Marx compreendeu a natureza contraditória da religião. Como ele escreveu em “Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”: “O sofrimento religioso é, ao mesmo tempo, a expressão do real sofrimento e um protesto contra o real sofrimento. A religião é a visão da criatura oprimida, o sentimento de um mundo sem coração, e o espírito de condições desalmadas. É o ópio do povo.”

A resistência pode emergir e ser expressada através da religião, mesmo que a própria religião seja materializada pela opressão e alienação. Os Bolcheviques em 1917 também entenderam isso. Ainda que o Partido Bolchevique fosse desvinculado da religião, o ateísmo nunca foi uma condição para ser membro do partido — a religião era tratada como uma questão privada.

O líder Bolchevique Lênin era particularmente claro a respeito da religião. Ele nomeava aqueles dentro da esquerda que – assim como os militantes ateístas de hoje – proferiam ofensas a pessoas com crenças religiosas como “materialistas infantis”. Ele encorajava o recrutamento de pessoas de fé, os chamando de “recrutas revolucionários crus que batem em nossa porta”, que eram cruciais para o crescimento do partido e da revolução.

Na época em que houve a revolução, o Império Russo era lar de 16 milhões de muçulmanos – aproximadamente 10 por cento da população. Os povos Muçulmanos da região Leste do Império haviam sido radicalizados pelas crises do regime Czarista, nas mãos de quem eles sofreram anos de terríveis opressões. O cerne de suas demandas eram a liberdade religiosa e direitos civis.

Prioridade

A garantia de tais direitos era uma prioridade para Lênin e os Bolcheviques logo depois que a Revolução de Outubro aconteceu em 1917.

Sexta-feira, o dia da semana sagrado aos Muçulmanos, foi oficialmente declarado como o dia de descanso em toda Ásia Central; monumentos Islâmicos sagrados, livros e objetos que foram roubados pelos Czares foram devolvidos às mesquitas; em 1921 ua corte Islâmica paralela foi estabelecida de acordo com a lei Sharia, assegurando às pessoas a escolha entre a Justiça religiosa ou revolucionária. Sentenças como o apedrejamento e o amputamento de mãos foram proibidos.

Em 1922, uma educação paralela Islâmica havia sido introduzida, com os direitos de determinadas propriedades Islâmicas sendo novamente garantidas para seu uso à educação. A partir daí, centenas de Madrassas (escolas Islâmicas) foram fundadas.

Esses direitos não foram simplesmente garantidos pelos de cima; eles foram garantidos pela luta de Muçulmanos junto de outros Bolcheviques como parte da revolução.

Os esforços feitos pelos Bolcheviques significou que a maioria dos líderes Muçulmanos foram persuadidos a suportar o novo regime Soviético, e a população Muçulmana estava determinada a lutar e morrer por isso na Guerra Civil. No início de 1919 aproximadamente 250 mil Muçulmanos serviam no Exército Vermelho sob oficiais Muçulmanos, com dezenas de milhares como parte dos “esquadrões Sharia”. O Exército Vermelho garantiu aos povos nativos das antigas colônias Czaristas se auto governarem nas novas Repúblicas Autônomas.

Em Setembro de 1920 uma importante assembleia foi realizada em Baku, no Azerbaijão: o Primeiro Congresso dos Povos do Leste. Um jovem Muçulmano Azerbaijano, que serviu como guarda durante o congresso, recordou que ele colocaria sua arma de lado para atender ao chamado de oração e depois retornaria “para defender a conferência e a revolução”.

O congresso foi um ponto de partida na luta contra o colonialismo na Ásia – não apenas contra o antigo regime czarista, mas contra o imperialismo Britânico. Delegações de tão ao Leste quanto o Japão compareceram, incluindo delegações que encararam ameaças de morte em suas jornadas; diversas delegações foram assassinadas em seus caminhos. O governo Britânico fez tudo o que estava em seu poder para barrar a jornada das delegações à Baku, com ataques ao navio à vapor e patrulhas no Mar Negro da Turquia. Isso afirmava a ameaça que o congresso representava ao Imperialismo Ocidental, especialmente à Grã Bretanha.

No centro do congresso estava um chamado para uma “Guerra Santa” contra o imperialismo Ocidental. Isso significava “a libertação de toda a humanidade do jugo capitalista e da escravidão imperialista, pelo fim de todas as formas de opressão de um povo pelo outro e de toda exploração do homem pelo homem”.

Contudo, o preço pago pela Guerra Civil para defender a revolução foi severo. Em 1922 o novo regime Soviético estava com dificuldades de suprir as necessidades mais básicas do povo. Isso, inevitavelmente, significou que os soviéticos lutaram para continuar seus esforços em garantir a liberdade religiosa e os direitos civis para as populações Muçulmanas em termos práticos. O subsídio à Ásia Central teve de ser cortado, com o encerramento de escolas estaduais, significando que as madrassas tiveram que ser financiadas pela comunidade local. Dois anos após, em 1924, os tribunais de Sharia tiveram todos os seus fundos centrais cortados.

Necessidade

Mas esses cortes foram resultados de necessidade, e não de qualquer mudança na política. Em contraponto, o crescimento do Stalinismo de meados dos anos 1920 em diante significou uma guerra total contra a religião, e, particularmente, o Islã. Lênin e Trotsky entendiam que liberdade religiosa era uma forma de fazer reparações pelos crimes do Czarismo, enquanto também trazia à luz as divisões de classe na comunidade Islâmica; era uma pré-condição necessária da unidade da classe trabalhadora. Stálin, por outro lado, não fazia nenhuma distinção de classe entre o opressor e o oprimido de mesma fé religiosa.

As mulheres Muçulmanas, durante e depois da Revolução Russa, tinham feito grandes saltos em termos de libertação feminina e liberdade religiosa. O primeiro Congresso de Mulheres Muçulmanas de Toda a Rússia, em Kazan, em 23 de Abril de 1917, teve 59 delegações de mulheres que foram eleitas por suas organizações locais, e uma audiência de 300 mulheres. Foram passadas resoluções que demandavam os mesmos direitos políticos para mulheres e homens, o direito ao divórcio e a abolição do casamento infantil, dentre outras demandas.

As dez resoluções passadas no Congresso das Mulheres Muçulmanas foram discutidas no Congresso Muçulmano de Toda a Rússia, em Maio de 1917, que teve debates sobre os direitos femininos durante um dia inteiro. O centro dos debates era a questão da poligamia (homens com mais de uma esposa). Algumas delegações tomaram uma posição reformista, enquanto o Congresso da Mulher Muçulmana tomou a decisão histórica de exigir que isso fosse banido.

As discussões no congresso Muçulmano de Toda a Rússia enfatizaram o efeito que a Revolução Russa havia tido sobre as mulheres – durante as dicussões sobre poligamia, o delegado Ismais Imanov concluiu que às mulheres deveriam ser dados os direitos que elas queriam, pois elas iriam conquistá-los de qualquer forma. Os Muçulmanos tinham então uma voz maior que tinham sob os Czares.

De uma forma interessante, com essa nova voz, a questão do hijab ou do véu praticamente não foi comentada. O Primeiro Congresso dos Povos do Leste foi o primeiro no mundo a libertar mulheres de restrições típicas de sociedades Islâmicas naquele tempo. Mas delegações de mulheres na conferência disseram que “a questão do chador [um tipo de véu longo], pode-se dizer, está em última prioridade.”

Depois da Revolução de Outubro, o Zhenotdel (organização Bolchevique dos direitos das mulheres) liderado por Inessa Armand e depois por Alexandra Kollontai, organizou voluntárias, frequentemente em véus, para viajar às populações Muçulmanas no Leste e trabalhar com mulheres que usavam véus. Elas conduziam programas educacionais e conversavam com as mulheres sobre suas preocupações. Algumas delas pagaram com a própria vida para combater o machismo em comunidades Islâmicas isoladas.

Disfarce

O ataque de Stalin ao Islã foi disfarçado sob o banner da libertação das mulheres. Isso foi em oposição direta ao trabalho feito pelos Bolcheviques nos anos iniciais da revolução. Stalin iniciou uma campanha chamada Khudzhum, no Dia Internacional das Mulheres, em 8 de março de 1927. Khudzhum significa furioso ou agressão. A campanha forçava mulheres muçulmanas a removerem seus véus em público.

O ataque de Stalin não libertou as mulheres Muçulmanas, mas o contrário; significou que milhares de crianças Muçulmanas, especialmente meninas, fossem retiradas das escolas soviéticas e resignadas da Liga de Jovens Comunistas. Meninas que eram forçadas a entrar em casamentos arranjados ou poligâmicos não tinham como se recusar sem empregos ou oportunidades.

Stálin não libertou as mulheres; ele as pressionou de volta para o lar. Isso culminou no mais generalizado ressurgimento da família tradicional pela Rússia, onde todas as mulheres se viram, uma vez mais, encorajadas a priorizar a maternidade. Ele quebrou a tradição Bolchevique e jogou fora ganhos importantíssimos da revolução.

Hoje os ataques aos Muçulmanos, em especial às mulheres Muçulmanas, ainda são postas sob o banner de libertação da mulher, seja em inspetores de escolas perguntando à meninas da escola primária o por quê delas usarem seus véus, ou policiais armados na França forçando uma mulher Muçulmana a se despir na praia.

Infelizmente, algumas pessoas de esquerda apoiam esses ataques. Uma grande coalizão feminista na França, CNDF, tentou barrar mulheres Muçulmanas que usavam hijab a fazer parte de protestos no Dia Internacional das Mulheres, se colocando em aliança com o Estado imperialista francês contra suas cidadãs mais oprimidas.

Socialistas devem se posicionar 100 por cento ao lado dos oprimidos quando eles estão sob ataque e lutando pelos seus direitos. Nós devemos sempre manter nossas políticas e entendimento de qual classe molda as formas de opressão e qual é a chave para desafiá-la.

Essa é a tradição dos Bolcheviques. Trotsky disse que para mudar o mundo em que se vive, se deve olhá-lo pelos olhos das mulheres, e então, pelos olhos das mulheres Muçulmanas, nós mudaremos o mundo em que vivemos.

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