Um discurso para a angústia

Por Igor Pusch

Onde fala a angústia?

Posta a questão, é percorrido aqui um pequeno apanhado literário para elaborar uma proposta de correlação deste afeto que não engana – porque não é sem objeto, aforismo de Lacan – com a lógica do discurso denominado Universitário enquanto narrativa de engodo, cuja estratégia premeditada de sedução, captura e alienação do sujeito, é fórmula sofisticada para a sustentação do discurso Capitalista.


Bordejar o objeto a, na função de tamponamento da falta na estrutura discursiva sem palavras, que na relação analisada destitui o sujeito de sua subjetividade para a satisfação do mais-de-gozar do Outro, é a tentativa de um discurso para a angústia.

ANGÚSTIA

A angústia surge quando algo aparece no lugar da falta (-ϕ), lugar então ocupado pelo a do objeto do desejo (Figura 1). Neste sentido, portanto, a angústia é a falta da falta [1].

Figura 1 – Esquema simplificado do estádio do espelho [1].

“Vocês não sabem que não é a nostalgia do seio materno que gera a angústia, mas a iminência dele? O que provoca a angústia é tudo aquilo que nos anuncia, que nos permite entrever que voltaremos ao colo. Não é, ao contrário do que se diz, o ritmo nem a alternância da presença-ausência da mãe. A prova disso é que a criança se compraz em renovar esse jogo de presença-ausência. A possibilidade da ausência, eis a segurança da presença. O que há de mais angustiante para a criança é, justamente, quando a relação com base na qual essa possibilidade se institui, pela falta que a transforma em desejo, é perturbada, e ela fica perturbada ao máximo quando não há possibilidade de falta, quando a mãe está o tempo todo nas costas dela, especialmente a lhe limpar a bunda, modelo da demanda, da demanda que não pode faltar” [1].

Na fábula do louva-a-deus gigante, veste-se uma máscara sem saber qual identidade ela lhe confere. Não saber qual será a reação da parceira devoradora ao vê-lo com a máscara é precipitador da angústia, não somente pela iminência de se apreender como objeto do Outro, mas também pela incógnita se se vestiu a máscara do objeto que corresponde ao desejo ou ao gozo do louva-a-deus. No momento em que o sujeito cessa de ser sujeito, em que ele se identifica absolutamente como objeto, e em que o desejo fica suspenso, há uma destituição subjetiva “selvagem” – esta é a angústia [2].

A angústia, sendo este corte a se abrir e que deixa aparecer o inesperado, a visita, a notícia, aquilo que é exprimido pelo “pressentimento”, mas também pelo “pré sentimento”, está fora da dúvida. A angústia não é a dúvida, é a causa da dúvida; é aquilo que não engana, e é justamente da angústia que a ação – tanto a passagem ao ato quanto o acting out – retira sua certeza (Figura 2).

  Dificuldade →
Movimento → Inibição Impedimento Embaraço
Emoção Sintoma Passagem ao ato
Efusão Acting out Angústia

Figura 2 – Quadro da angústia [1].

Há similaridade entre a estrutura da fantasia e da angústia. Enquanto a fantasia – $◊a, se lê “S barrado punção de a” – é um artifício imaginário que permite o acesso a um quadro do desejo, ou seja, encena a natureza enganosa do desejo, onde o objeto a está representado por um objeto postiço, artificial, por sua vez a angústia não encobre o real, pelo contrário, o escancara. É desse rasgo que salta algo para dentro da cena, algo muito íntimo, de casa, mas ao mesmo tempo desconhecido e velado. O surgimento do heimlich no quadro representa o fenômeno da angústia, e é por isso que ela não é sem objeto [3].

O corte no real que desencadeia o sinal de angústia é, também, a fenda que revela o campo do gozo. É desse corte que desprende o objeto a. A angústia, portanto, enquanto função de corte, mostra-se fundamental na concepção do objeto a [3].

DISCURSO UNIVERSITÁRIO

Lembremos da estrutura do discurso do Universitário (Figura 3).

S2 a
S1 // $

Figura 3 – Disposição dos elementos no discurso Universitário.

Este discurso é também chamado de discurso do Saber, pois no lugar do agente – posição que determina a dominância deste discurso –, está justamente o significante S2 que é o saber inconsciente, o significante afanisante advindo do campo do Outro que dá significação ao significante mestre S1. Ao colocar seu gozo em prática, o mestre ordena: “continua a saber”.

“Alguém que ocupe o lugar totalizante do saber, um educador, um pai, uma mãe, deixa em posição de alienação absoluta o outro que se pretende educar, ou então governar” [4].

Na lógica deste discurso, quem recebe a ordem do agente é o pequeno a, no lugar do pequeno outro, um semelhante. Nesta posição, o objeto a tem a função “mais-de-gozar” que força a repetição porque o sujeito neurótico resiste em perdê-lo, pois é um excesso de gozo que jamais se satisfaz.

A partir da lógica da fantasia, enquanto processo circular de constituição do sujeito, na operação de interseção, não se trata do que pertence a ambos os conjuntos sujeito e Outro, mas do que falta a ambos, falta que lhes põe em relação [5]. É justamente neste ponto que se localiza o objeto a (Figura 4).

Figura 4 – Díada da operação de separação.

Esta operação é fundamental para as produções de identidade do sujeito a partir das referências do desejo do Outro, nas vertentes dos registros Imaginário, Real e Simbólico: no campo imaginário, com sua imagem produzida a partir de uma relação especular com o outro – i(a); no campo simbólico, com sua imagem produzida dependente da forma como o sujeito se percebe como reconhecido pelo Outro – I(A); e no campo real, fixado ao fantasma como substrato à produção de identificações, ligada a um resto de gozo de quando o sujeito mantinha uma relação primitiva como objeto de gozo do Outro, expressando-se na compulsão à repetição [5].

No laço social cujas relações são ditadas pelo discurso Universitário, algo assume presença no lugar da falta, que não é propriamente causa de desejo para o sujeito. Neste lugar, o sujeito alienado não sabe se encontra identidade ao objeto de gozo ou ao objeto de desejo do Outro, como se vestisse a máscara para o encontro com o grande louva-a-deus.

Este discurso está presente no primeiro plano das relações do capital-trabalho contemporâneas, nas religiões e nas ideologias como estratégia de sedução e controle para sustentação do discurso Capitalista, objetivo último dos mestres nas referidas relações.

A permanência no discurso Universitário traz justamente a produção de um sujeito crente, destituído de subjetividade na relação, e que meramente repete um sistema de valores ordenado pelo discurso. Enquanto houver alienação, haverá o sequestro da subjetividade e o discurso seguirá seu rumo, impedindo o acesso do sujeito ao seu significante mestre S1, ao traço unário que está no lugar da verdade interditada pelo impossível do real e que, portanto, impede a inovação ou a abertura de uma nova cadeia significante.

O sujeito alienado pelo discurso Universitário é peça-chave ao sucesso do discurso Capitalista, pois age com eficiência nos elementos do circuito da insatisfação “produção, consumo, aquisição, trabalho para adquirir” deste discurso que não funda laço social de suplência.

Contudo, o discurso do Outro é obscuro, incompleto, muitas vezes incoerente. Dessa inconsistência se vislumbra nada menos que a falta do Outro, donde vem a pergunta “Che Vuoi?”. Principia aí a operação de separação, onde o real se desvela através do corte que destaca o objeto a – lugar tomado pelo próprio sujeito – precipitando a angústia em suas diversas manifestações e vizinhanças (passagem ao ato e acting out), mas também a possibilidade de abertura de uma nova cadeia significante.

CONCLUSÃO

É na análise que o objeto a pode ser dedutível, através dos discursos em movimento, da transferência e do ato psicanalítico desprendido de um dizer que desvela sua letra. Fazer o descolamento do objeto a torna-se, portanto, necessário em direção à cura ou término da psicanálise, pois à questão “que sou eu em meu desejo e em meu ser?” tem-se a resposta “eu não sou somente um sujeito falta-a-ser (e, portanto, castração): eu sou um objeto” [2].

Somente no Discurso do Analista que o objeto a não se apresenta como objeto de gozo, mais-de-gozar, ou perda de gozo. O analista, enquanto semblante do objeto a, sustenta nesta posição, através do seu desejo, a função que fará cair o objeto de gozo com o qual o sujeito está identificado para aceder à dimensão do desejo [4].

Esta é a travessia do fantasma, o movimento que implica que o sujeito assuma a falta e torne-se ele mesmo o objeto a, para que possa construir criativamente algo a partir disso em seu próprio estilo. É, também, uma destituição subjetiva, porém não “selvagem”. Neste sentido, atravessar a fantasia é também atravessar a angústia, do gozo em direção ao desejo, através do discurso.

Um discurso para a angústia, portanto, retoma eticamente o sujeito ao protagonismo da relação, e permite, a partir dele, novas formas de laço menos misteriosas, em que a máscara das identificações é removida.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] Lacan, J. A angústia, o seminário livro X. Editora Zahar. Rio de Janeiro, RJ. 2005.

[2] Soller, C. Declinações da angústia. Escuta. São Paulo, SP. 2012.

[3] Viola, D. T. D.; Vorcaro, A. M. R. A formulação do objeto a a partir da teorização lacaniana acerca da angústia. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-61482009000300006.

[4] Vegh, I. Os Discursos e a Cura. Companhia de Freud Editora. Rio de Janeiro, RJ. 2001.

[5] Zanola, P. C.; Lustoza, R. Z. Alienação e Separação no Seminário XI de Lacan: uma proposta de interpretação. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/pdf/tpsi/v51n2/v51n2a07.pdf

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