Uma Igreja de Gente de Mentira – o Lacanismo para Lacanianos

Por Philippe Campos

Não faço ideia de quantas vezes algum amigo ou amiga psicanalisa me contou de uma tirada brilhante feita pelo seu analista ou de uma sessão interrompida num momento fantástico. Nunca atendi um psicanalista, nem um estudante de psicanálise, assim, foram poucas, bem poucas, as vezes em que minhas análises decorreram desse jeito brilhante; outro modo de dizer seria: “desse jeito lacaniano”. Gostaria, assim, de levantar hipótese de que a psicanálise lacaniana funciona muito bem para lacanianos.


Seria necessário mais material para investigar essa hipótese, mas a pobreza de casos clínicos e de discussão clínica no campo lacaniano me parece ser algo patente – indico aqui um psicanalista inglês lacaniano chamado Dariam Leader, mas ele não tem nada de lacaniano em sua escrita ou apresentação de casos; pelo que pude perceber, sua atuação clínica não tem o apanágio lacaniano, embora suas balizas o sejam. Seria proveitoso, outrossim, se perguntar porque no campo lacaniano temos tão poucos estudos de caso se comparado com a quantidade de obras sobre teoria lacaniana – coisa que não exploraremos aqui. Aponto aqui que quase a totalidade, isso mesmo, quase a totalidade dos jovens lacanianos que conheci, alguns nem tão jovens assim, trabalham seu lacanismo a partir de citações ou parágrafos eloquentes; os bons de serviço o fazem com comentários, os não tão bons, com (livre-)associações inspiradas. Em suma, um encantamento pela psicanálise, a lacaniana em particular, está presente nas psicanálises “brilhantes” sofridas pelos meus colegas analistas, e, rigor, é o que não se encontra no nosso campo.

 Aos outros que se interessarem por esse texto, mas que não fazem parte da nossa igreja, peço que fiquem tranquilos para desconfiar da ladainha de qualquer psicanalista em seus arroubos pirotécnicos – “o gozo barrado do real do Outro que não cessa de não se inscrever que cai da libra de carne do objeto causa do desejo”: ao escutarem algo semelhante a isso, saibam que estão sendo enganados.

O Lacan e sua linguagem enigmática forjou uma série de conceitos ou ferramentas teóricas que, parecem-me, são usadas de um jeito muito dogmático. Os quatro discursos, a tal da lalangue, os nós borromeanos… não são entidades que os psicanalistas utilizam com muita precisão, não são entidades que, em geral, se derivam, mas são tomadas como dadas e seus usos são dados a toda sorte de interpretações, como se um guru ou mestre tivesse deixado seus enigmas ou suas inscrições verdadeiras, cabendo aos discípulos interpretá-las de um jeito inspirado. Coisa parecida ocorre, por exemplo, com o marxismo, e, de tempos em tempos, apreceram alguns textos convocando o campo a não utilizar as palavras do guia barbudo de um jeito dogmático, é o caso do Lênin com seu Esquerdismo, Doença Infantil do Comunismo, Lukacs com o O que é Marxismo Ortodoxo? ou Sartre com Questão de Método, todos esses textos se voltavam contra o uso dogmático do marxismo – seja ele relativo ao sentido história, seja o esquema de base e superestrutura ou qualquer outra “verdade” da teoria. Além disso, mesmo Marx, foi alguém que se voltou contra o uso dogmático do hegelianismo pelos, assim chamados, hegelianos de esquerdaA sagrada Família e A Ideologia Alemã. Continuando a lista, não seria Jesus alguém que se voltou contra o uso dogmático das várias correntes do judaísmo de então? Se inserindo, precisamente: contra a hipocrisia dos fariseus, contra a capitulação dos Saduceus – os mais próximos dos romanos –, contra o purismo dos essênios – os quais se isolavam do restante do povo judeu – e contra a rebeldia inconsequente dos Zelotes – rebeldia esta que levou ao enfraquecimento do judaísmo na época. E, por fim, não seria São Paulo, alguém que lutou, e foi assassinado por isso, contra o uso dogmático do Cristo, contra aqueles que pretendiam que o evangelho foi restrito a judeus e não a qualquer um que aceitasse a Palavra?

O ponto é que o Lacan foi uma das pessoas que se voltaram contra o uso dogmático do freudismo.

É como se em cada um desses corpus – cristianismo, marxismo e freudismo – houvesse um impulso interno que convocasse à repetição do ato radical original fundante do campo, ato este que se perde ou é adulterado em suas derivações, e, de tempos em tempos, esse ato se atualizasse numa gramática inusitada, mas se preservasse exatamente por sua atualização excêntrica – a renovação dessas doutrinas, nos parece, é sempre empreendida fora do mainstream.

Coisa é que a tipificação do judaísmo da época de Cristo pode nos servir como pontos cardeais para se gabaritar o rebaixamento de corpos doutrinários a formas inócuas: hipocrisia, capitulação, purismo e rebeldia compõem o mapa no qual Jesus se inseriu excentricamente. Diante do exposto, dogmatismo e encantamento funcionariam como dois mobilizadores de fundo para situar os agentes nesse espaço simbólico ou cardeal, o primeiro mais vinculado a participantes prestigiados, enquanto tais, institucionalizados e com poder, o segundo a novos ou aspirantes a psicanalistas; em resumo, velhos fiéis tendem ao dogmatismo e aqueles ainda não ou recém batizados, ao encantamento. Aplicando tal gramática, portanto, ao lacanismo – essa igreja de gente de mentira –, podemos citar meio ao léu algumas características para compor um mapa:

  • Retracemos a árvore genealógica dos analistas de uma escola para sabermos o quão próximos estamos da verdade do mestre.
  • Façamos um uso zeloso do aparelho teórico, como se não precisássemos de nenhuma inovação para lidar com o mundo de hoje, que já não é mais o mesmo daquele do Lacan (aliás, o Brasil nunca foi a França do wellfare State).
  • Tome a psicanálise como uma grande teoria sobre mecanismos defensivos (rivalidade, narcisismo, adoração, comportamento de rebanho etc.), veremos todos eles sendo exercitados incessantemente em toda igrejinha lacaniana – como podemos encontrar tudo isso num ambiente que tem por fundamento exatamente combater isso? (Aliás, nesse ponto o lacanismo estaria para o protestantismo assim como a IPA para o catolicismo, o primeiro com uma miríade de divisões e subdivisões e o segundo mantendo tensões internas mas permanecendo uno; lendo o que aconteceu, não parece muito ruim o Lacan ter se autointitulado excomungado).
  • O purismo de alguns almofadinhas, como se a gramática lacaniana pudesse operar como instância judicante ou legisladora de outros campos, a política ou a arte – a nação não se deita num divã. Sugeriria tentar resolver primeiro a politicagem nas e entre escolas de psicanálise antes de cuspir regra sobre o nosso povo.
  • Nunca devemos esquecer que Freud e Lacan não eram exatamente bolcheviques, o iluminado Lacan, inclusive, votava na direita… talvez a psicanálise não seja um negócio exatamente revolucionário, talvez psicanálise não seja de esquerda.

Entretanto há um revés nessas características, que as justifica. Estar perto da Palavra do Lacan, um zelo com a teoria e cuidado com a heterodoxia, a necessidade de institucionalização para fortificação da coisa, a novidade que o olhar psicanalítico traz para o mundo e a rebeldia intrínseca a esse novo olhar; se olhadas de viés, são potências da psicanálise e da psicanálise do Lacan, mas perdem todo o fôlego se o fundo desses operadores for o encantamento ou a dogmatismo em detrimento da verdade. Entendo verdade, aqui, como a repetição do ato original de fundação de uma teoria quando esta é submetida a um interrogatório ou tortura mordaz. Seguindo o raciocínio, o que sobra do cristianismo, do marxismo ou do freudismo quando os submetemos a uma crítica terrorista impiedosa é a própria potência dessas teorias. Ao cristianizar o cristianismo obteríamos o sujeito do amor e da comunhão radical; ao marxizar o marxismo, obteríamos o sujeito de uma prática organizativa e rebelde à lógica do lucro; ao lacanizar o lacanismo obteríamos um sujeito que se coloca como instrumento de transformação imanente do mundo do paciente.

Quando entrei na faculdade e comecei a frequentar alguns espaços em que se pregava o Lacan, eu olhava para as pessoas um tanto impressionado pelo jeito difícil que essas pessoas falavam, sempre pensava que um dia eu ia estudar e entender o que eles diziam. Passado algum tempo eu saquei que grande parte deles não sabia muito bem o que dizia, a minha sensação de burrice foi aplacada porque comecei a perceber um certo blefe generalizado no ar. Se não estou enganado, essa sensação de burrice se torna depois a capacidade do blefe, é a metamorfose de base da igreja lacaniana. Gostaria que algumas pessoas não transformassem ignorância em blefe, mas permanecessem burras e desconfiadas, acho que desse jeito a gente tem mais chance de aprender e trabalhar melhor como terapeutas. É a essas pessoas que talvez tenham esse mesmo incômodo que eu tive que eu dedico esse texto e espero que elas não se rendam ao charme do idioma lacaniano.

O lacanismo como uma igreja de gente de mentira só serve para lacanianos.

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30 comentários em “Uma Igreja de Gente de Mentira – o Lacanismo para Lacanianos”

  1. Excelente colocação. Muita retórica e pouco, quase nada, sobre casos clínicos, um contrassenso tao óbvio que chega a cegar aqueles que também nao wntendem, mas preferem se colocar do lado de quem, um dia, vai blefar igual e dizer wue a nova roupa do rei é “brilhante”. Agradeço pela sua coragem em dizer que tem algo de nu em tudo isso.

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    • acho que nunca frequentaram um espaço de formação lacaniana de verdade. Quem fala Lacanês é quem nada entende do riscado. Casos clínicos te dou vários se quiser.
      Falácia de quem não é da área. Ou quer ser e não consegue.

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      • Achei no mínimo engraçado alguém criar uma conta chamada “Lacan” pra falar mal de um texto que critica justamente como o lacanismo só funciona com seus convertidos. Estudei linguística e fui, por um tempo, encantado por meus professores lacanianos. Esse texto conseguiu formular um mal-estar que tenho em relação a certos autores de psicanálise, mas de forma muito mais bem escrita do que eu conseguiria expressar. Não é um texto crítico a Lacan, mas aos charlatões do lacanismo. Achei excelente, nunca li uma crítica tão boa. Renderia um livro com potencial de muita polêmica e ruptura boa no campo (atenção LavraPalavrers).

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    • Parece-me estranho uma pessoa que não compreende o que lê atribuir ao escrito sua própria dificuldade; como se houvesse uma transparência imanente das Ideias. Como diria Pascal Engel:
      Va Savoir! Vai estudar Philip antes de emitir um juízo de valor tão consistente como algodão doce

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  2. É admirável que um autor consiga resumir todo o trabalho de elaboração de um psicanalista, às deturpacoes que seu ensino promoveu, assim como outros, citados no próprio texto. Mas convenhamos, não estamos mais na época do rigor, mas sim, em querer transformar a limitação de alguns alunos em passaporte para likes com roupagem de humildade e simplicidade.

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  3. Vocês se lembram da história da roupa do rei que era elogiada por todos, até que chegou uma criança e disse “o fei esta nu!”?
    Estou esperando o momento se criança falar para os lacanianos: _ vocês estão nus!
    Todos falam falam mas não explicam nada , e todos fingem que entendem. Se se.perdem em divagações teóricas, faltam exemplos práticos da clínica.

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  4. Quanta besteira…a Psicanálise é recheada de Casos clínicos…claro, muitos deles sigilosos, como devem ser…Até para criticar a Psicanálise é necessário um mínimo de leitura e conhecimento…Psicanálise não é Ciência…talvez, Arte.

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  5. Há um salto entre perceber adequadamente que há muitos lacanianos que se utilizam do jargão para disfarçar sua própria não compreensão da teoria e afirmar universalmente que todos os lacanianos não sabem (o suficiente) do que fazem. Concordo que há uma tendência a disfarçar o não saber dentro do campo, mas é – uso sua palavra – mentiroso sustentar que o edifício teórico lacaniano inteiro é um blefe. Também é mentiroso afirmar que não existem muitos estudos de caso feitos por lacanianos. Para isso, basta usar um Google Acadêmico. Não vejo a área se contentar, também, com o que foi ensinado por Lacan. A maioria esmagadora das teses e dissertações produzidas em psicanálise hoje se voltam hoje para o estudo do Brasil, questões de identidade ou interfaces com a crítica da economia política. Basta, novamente, simplesmente acessar um bom repositório de universidade e pesquisar brevemente sobre o que vem sendo estudado em Psicanálise nos últimos 15 anos.

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  6. Qual a sua VERDADE na ant-IGREJINHA ideológica dos seus pensamentos?

    Talvez a mentira que te manteve com a sensação de ser BURRO e preso no Lacanez fosse a sua verdade egoica daquele momento. Tão necessária a ser trabalhada para sua libertação como sujeito desejante e perceptivo do que é faltoso.

    NÃO há mentiras e verdades em nenhuma teoria… apenas fatos, que sustentam resoluções reais em questões reais apresentadas ou desvalidam as mesmas. Se no amanhecer da nossa razão elas já não tem mais sentido ser, então se permita mudar e florescer.

    Sim, há abusos narcísicos e pomposos em todas as formações. Somos “humanos”, temos nossa carga de buscar o reconhecimento afetivo que nos é possível para poder gozar e suprir nossas necessidades básicas neuroafetivas. Isso é fato.

    Um ataque a quem pensa diferente nas igrejinhas ou fora delas é a mesma coisa que “meninas gostam de rosinha e meninos de azul”, geram jihads separatistas.

    O olhar que temos perante algumas coisas, fatos e observações diz mais de nós do que a própria coisa em si.

    Pluralismo sem “pré”-conceitos pode ser talvez a solução de um prato colorido de pensamentos diversos a serem degustados dependendo do paladar que você busca para se ter o gosto daquele suposto saber.

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  7. Excelentes observações. Os comentários deixados aqui apenas servem como ilustração das críticas feitas no texto. Observem que a crítica se volta às articulações conceituais – ou à falta delas – feitas por analistas ditos lacanianos, não aos conceitos em si mesmos.

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  8. Que alivio me encontrar com pessoas que parecem ter a mesma experiência subjetiva que tenho com o lacanês. Como.me irrita “la langue” . Zero identificação com um certo pedantismo inócuo face às questões aflitivas que se apresentam na clinica contemporânea. Fica sempre a questão: sobre o que pode , como funciona e qual a eficácia da escuta teórica lacaniana diante das sintomatologias que se apresentam nos tempos atuais . Realmente, o manejo clinico dificilmente é falado. Um enigma!

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  9. Parabéns Philippe Campos pela coragem de expor o que pensa.
    Observando as “análises” sobre teu texto, em que alguns analisam o autor e não o texto, fiquei na dúvida se os Lacaneses são uma igreja ou uma seita.

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  10. Ave, Lacan!

    Se não fosse tão narcisista Lacan teria superado Freud, pois conseguiu, com muito conhecimento e inteligência, incorporar antropologia, filosofia e sociologia ao saber freudiano.
    Mas, infelizmente, seu narcisismo o impeliu a usar a linguística para dogmatizar as necessárias revisões e complementações do pensamento freudiano, e difundí-las através de evangelização proselitista.
    E, então, Deus, usufruindo de sua onipresença, onipotência e onisciência, disse : “Que surja a psicanálise fundamentalista.”
    E assim, no século XX, foi introduzido este novo versículo ao livro Gênesis da Bíblia Sagrada.

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