A crítica como forma de superar o quixotismo: sobre o desenvolvimento da crítica em Marx

Por Karl Reitter, traduzido por João Victor Oliveira, militante da UJC/PCB, estudante de Lic. em Ciências Sociais – UFPE.

Que a crítica deve ser prática e revolucionária é algo já estabelecido por Marx em sua famosa décima primeira tese sobre Feuerbach. Mas onde ou em que esfera do social pode começar essa crítica ativa? Onde tem seu lugar? Quais são as suas condições e com o que se relaciona? Marx já desenvolve uma resposta à primeira pergunta em seus primeiros escritos, em sua crítica ao Estado e à política. Se há elementos ocultos para uma sociedade sem classes, então eles devem ser encontrados na área de produção e reprodução, na relação social das classes. Nem mesmo um poder estatal de mentalidade revolucionária pode ser uma alavanca eficaz de crítica revolucionária. Já dez anos antes da publicação do primeiro volume de Capital, encontramos uma resposta para a segunda questão em uma passagem programática nos Grundrisse: “[…], então todas as tentativas de explodi-lo seriam quixotescas”. [1]


Para uma definição da esfera

Para Marx, o social não é um continuum no qual resistência e crítica podem irromper e ter efeito igual em todos os pontos. Marx concebe a realidade social como dividida em esferas totalmente separadas, cuja relação é caracterizada por oposição e conflito. Nela, as esferas decisivas são o Estado, por um lado, e a sociedade, por outro. Marx desenvolve esta tese principalmente no extenso manuscrito “Para uma crítica da filosofia do direito de Hegel”, que não deve ser confundido com o prefácio muito popular, e no texto programático “Sobre a questão judaica”. Essa separação e oposição é um resultado histórico. Sob o feudalismo, de acordo com Marx, o socioeconômico e o político estavam intimamente ligados e os elementos da vida cotidiana eram diretamente elementos do Estado. O principal estudo de Heide Gerstenberger,Die subjektlose Gewalt. Theorie der Entstehung bürgerlicher Staatsgewalt, endossou brilhantemente a visão de Marx. Antes da idade moderna, era inconcebível a ideia de um aparelho de Estado que se opusesse à sociedade e dela se separasse. Domínio e servidão na esfera econômica também significavam domínio e servidão na política: em outras palavras, essas separações faziam pouco sentido então. “Esse caráter pessoal de domínio é bastante difícil para os sociólogos modernos entenderem. Portanto, eles tendem a ver os servos dos monarcas reinantes como os órgãos executivos de um estado moderno primitivo e a aplicar o termo familiar de poder oficial a um poder generalizado. [2]

Marx explica o colapso e a destruição desse feudalismo não como algo dependente das condições do capitalismo nascente, mas principalmente como resultado de um esforço revolucionário e emancipatório. O resultado foi apenas meia emancipação, um beco sem saída que foi reforçado na separação final da existência econômica burguesa do modo político abstrato de existência como cidadãos. “Onde o estado político alcançou seu pleno desenvolvimento, o homem leva uma vida dupla, uma vida celestial e uma vida terrena, não apenas em pensamento ou consciência, mas na realidade. Na comunidade política, ele se considera um ser comunitário; mas na sociedade civil ele é ativo como um indivíduo privado, trata os outros homens como meios, reduz-se a um meio e torna-se o joguete de poderes estranhos. A mente política é tão espiritual em relação à sociedade civil quanto o céu é em relação à terra”. [3]

Segundo Marx, a Revolução Francesa, em particular, tornou completa essa separação entre Estado e sociedade. Em sua representação, Marx usa imagens drásticas: em um ponto, ele fala sobre “forças hostis” [4] que se confrontam, tendo cada membro a opção, se necessário, de mudar de lado. Ele critica fortemente os esforços de Hegel para negociar esse conflito. A burocracia estatal não pode se tornar sociedade, argumenta ele, nem as propriedades e corporações podem evoluir para elementos do Estado. A meu ver, essa análise institucional é a única maneira de explicar as experiências com o destino de forças anteriormente opostas; assim que alcançam sua posição no comando do Estado, rapidamente se tornam forças que o apoiam e traem o que antes eram seus ideais. Da mesma forma, a definição da vida política como “existência rarefeita” caracteriza os fenômenos políticos em toda a sua irrealidade. A oposição entre Estado e sociedade, que Hegel procura conciliar por todos os meios retóricos,

A tentativa histórica de criar uma comunidade política auto-organizada falhou, conclui Marx. A emancipação atinge seu máximo, então, quando o Estado transcende as características específicas da sociedade civil – Marx está pensando também sobre a religião – e quando todos os cidadãos são formalmente considerados iguais. Este desenvolvimento só pode ser protegido de recaídas; não pode mais ser impulsionado para a frente. Assim, os elementos explosivos, aqueles elementos que podem superar o quixotismo, não se encontram na esfera do político, mas, sim, naquela relação social que se expressa também nos valores aparentes das coisas: na relação do capital. A oposição entre Estado e sociedade só pode ser superada pela transformação da própria sociedade, pela abolição da relação capital; todo o resto é uma ilusão, cada defeito da sociedade ao fato de que seu rival está no comando do Estado em vez de si mesmo. Mesmo os políticos radicais e revolucionários procuram as causas do mal não na natureza do Estado, mas em uma forma específica de Estado que gostariam de substituir por outra forma de Estado”. [5]

Para Marx, o poder do Estado não é um meio de crítica emancipatória e revolucionária. Ele observa claramente uma importante impotência por parte do Estado. Se o Estado tentasse intervir na sociedade para moldá-la, inevitavelmente fracassaria. “Se o Estado moderno desejasse abolir a impotência de sua administração, teria que abolir a vida privada contemporânea. E para abolir a vida privada, teria que abolir a si mesma, pois só existe como antítese da vida privada”. [6] E como um resumo da Revolução Francesa, claramente, Marx escreve: “Em momentos de especial preocupação consigo mesma, a vida política procura reprimir seu pressuposto, a sociedade civil e seus elementos, e constituir-se a vida real e harmoniosa do homem. Mas só pode fazer isso em violenta contradição com suas próprias condições de existência, declarando a revolução como permanente, e assim o drama político está fadado a terminar com a restauração da religião, da propriedade privada e de todos os elementos da sociedade civil como a guerra termina com a paz.” [7]

Os elementos ocultos da sociedade sem classes 

Marx reconhece o nível decisivo na relação do capital, na relação entre capital e trabalhadores que é mediada pelo trabalho assalariado. Assim, os momentos ocultos e explosivos só podem ser detectados nesta esfera, se for o caso. Na Capital, Marx não analisa todas as relações sociais imagináveis, mas apenas aquela entre trabalho assalariado e capital. Ao lado da relação do capital, coexistem muitas outras, como a relação sexual, a relação entre filhos e pais, etc. Por que se diz que, no que diz respeito à opressão e à libertação, a relação do capital é a relação chave? É uma posição que é frequentemente vista como a expressão de uma estreiteza específica em relação a Marx. Mas, a meu ver, tal crítica não reconhece a característica distintiva dessa relação. O que é esse recurso?

A própria relação capital apresenta uma peculiaridade que a distingue de todas as outras relações: ela aparece em uma característica (Dingeigenschaft), ou seja, na magnitude valor/preço das mercadorias. Está, portanto, em uma forma em que não aparece mais como uma relação social. Não se pode dizer do capital que consiste em horas extras cumulativas e não pagas, que se baseia, portanto, em uma relação social temporal, ou melhor, que é na verdade essa relação. O resultado da relação de classe é arbitrariamente cumulável em forma monetária; além disso, é utilizável em outro momento e em outro lugar a tal ponto que se reproduz novamente. Todas as outras relações sociais são diferentes; nenhum deles exibe esse recurso específico. O fato de que essa peculiaridade possa se desenvolver historicamente baseia-se na liberação do socioeconômico como uma esfera autodeterminada. Mais uma vez, é a queda do feudalismo, a separação da esfera do estado político da sociedade, que torna possível escolher a economia como relação social como tema central. Só se pode falar de economia, em sentido estrito, dentro do modo de produção capitalista. Como Polanyi mostrou, o econômico está estruturalmente entrelaçado com o político, o moral, referências nobres e culturais nas sociedades pré-capitalistas. Por exemplo, uma análise da dinâmica econômica em sua forma pura, como Marx empreende para o modo de produção capitalista, não pode ser aplicada a uma economia clássica. Portanto, há algo a ser dito para aplicar o conceito de classe e modo de produção no sentido enfático apenas ao capitalismo.

A esfera da economia também não é um continuum

Um comentário sobre a estrutura do Capital é apropriado neste momento. Na análise marxista do capital, encontramos uma dupla mudança de perspectiva, sendo a primeira apresentada de forma mais acentuada e incisiva do que a segunda. A primeira mudança, deliberadamente encenada por Marx como uma peça de retórica, ocorre entre a esfera da superfície da circulação e a esfera da produção. A análise da superfície de circulação, com a qual Marx inicia O Capital, não nos mostra nenhuma dinâmica, nenhum conflito ou desequilíbrio social. Coisas de valor equivalente são trocadas entre partes livres e iguais. Com a mudança para a produção, o quadro muda radicalmente: de repente, ganhamos uma visão da dinâmica. O capital acumula e multiplica o poder real em comparação com o trabalho; no entanto, também desenvolve a produtividade social do trabalho, que por sua vez deve se refletir na tendência geral de queda das margens de lucro. Eu gostaria de destacar dois aspectos em particular disso: em primeiro lugar, Marx mostra que a superfície da circulação – uma esfera muito real da sociedade – não pode ser apreendida por si mesma; em segundo lugar, na transição do dinheiro para o capital, Marx alcança seu conceito mais elaborado de proletariado, isto é, como força de trabalho geral que, se possível – Marx usa a fraseδυνάμει [8] (‘potencialmente’) – está em oposição ao capital. A segunda mudança de perspectiva não pode ser realizada com a mesma nitidez. É a passagem da relação dos capitais individuais e daqueles que se preocupam com ela, da competição entre uma pluralidade de capitais, para o que é principalmente uma relação de classe. Essa relação total é totalmente antecipada, mas só é formulada teoricamente no conceito de preço de produção. Somente através da equalização da taxa de lucro é que a relação do capital se revela pelo que é: uma relação temporal entre as classes.


A relação de classe é uma relação temporal

Se os elementos da sociedade sem classes se encontram “escondidos”, ou melhor, se esses elementos resultam da dinâmica da relação do capital, então eles também devem ser encontrados na ordenação do tempo do capitalismo. E assim são. Os conceitos centrais para isso são tempo de trabalho necessário e horas extras. Com a primeira definição do conceito de tempo de trabalho necessário, no primeiro capítulo de O capital em que se define a grandeza do valor, parece que estamos lidando com um conceito interno do modo de produção capitalista. Sem oferecer nenhum serviço em troca, a classe dominante acumulou tempo de trabalho à sua disposição; depende, portanto, de um novo tempo de trabalho e, portanto, também de um tempo de vida.

Ao mesmo tempo, porém, o conceito de tempo de trabalho necessário transcende a relação de capital. Este tempo de trabalho necessário é também uma quantidade decisiva para uma sociedade pós-capitalista. O conceito de tempo de trabalho necessário pode assim ser articulado de duas maneiras: por um lado, no sistema valor/preço do capitalismo, ou seja, em definições que são “válidas” apenas nesta sociedade; por outro lado, como quantidades de tempo que podem ser expressas independentemente da forma de valor. Castoriadis acusara Marx de oscilar entre os níveis da economia capitalista e todas as formas de economia. Marx não vacila – muito pelo contrário. Que ele foi capaz de articular esse conceito de ambos – e está entre as realizações mais importantes da análise marxista do capital.


Que dinâmica está subjacente à relação temporal?

Em O capital, Marx o analisa “em sua forma pura” Mas deve-se ressaltar que a “forma pura” só pode ser uma questão de “dinâmica pura”. Por um lado, essa dinâmica só poderia ser apresentada por Marx com base em desenvolvimentos anteriores em sua época; por outro, só poderia ser antecipado como um experimento. Uma das passagens mais emocionantes e frequentemente citadas a esse respeito é o chamado ‘Fragment on Machines’ nos Grundrisse. Lendo esta passagem, encontramos um Marx empenhado na busca, na discussão.

O ponto de partida é o esperado aumento maciço da força produtiva do trabalho. Se fosse possível produzir quantidades cada vez maiores de valores de utilidade com cada vez menos trabalho, então a “produção baseada no valor de troca” teria que quebrar. [9]  Sejamos bem claros: em nenhum lugar Marx afirma que, além de um determinado ponto, a lei do valor não é mais válida, como é perceptível na obra de Negri ou Virno. Ao contrário, o trabalho não está mais em relação à quantidade de valores de utilidade produzidos. Se a força produtiva do trabalho é baixa, então todos os membros da sociedade têm que trabalhar o dia todo para poder se reproduzir. Consequentemente, faz sentido falar de uma relação; nessas condições, por exemplo, a exploração só é possível de forma muito restrita. Se o poder produtivo aumenta, facilita as relações de classe. Se aumenta massivamente, a relação tempo de trabalho e produto se desenvolve em uma “desproporção monstruosa” [10] que abala a relação capital até seus próprios fundamentos.

Sobre a produção permanente do proletariado, ou: luta de classes é resistir a ser transformado em classe

A obra de Marx não nos oferece nenhum plano de como a crítica pode realmente se tornar prática; ele, no entanto, oferece uma base de conhecimento metodológico com a qual realmente se coloca a questão em primeiro lugar. Ultimamente, a crítica se tornou sinônimo de luta de classes. Mas o que é classe, o que é luta de classes? Se definirmos o capitalismo como uma ordenação do tempo e o proletariado como a força de trabalho que se opõe ao capital, então podemos reunir essas duas definições: o proletariado é então a força de trabalho que está sujeita à ordenação capitalista do tempo. Em uma análise penetrante, John Holloway se referiu ao aspecto processual. O proletariado não está simplesmente ali; é constantemente produzido de novo. A resistência pode ser constantemente esmagada ou absorvida; a possibilidade de uma fuga do trabalho assalariado pode ser constantemente removida. A luta de classes é a tentativa de lutar contra a transformação em classe. No pós-fordismo, o sino tocou para o início de uma nova rodada nesse embate, muitas vezes assumindo formas que nem os críticos do marxismo nem seus protagonistas ortodoxos reconhecem como diferenças de classe. A expansão das relações de mercado nas profundezas da produção e da sociedade não transcende o modo de existência social do proletariado; em vez disso, ela o expande. A nova independência revela-se uma forma oculta de trabalho por peça, o tempo de trabalho penetra no tempo de vida. Quando Paolo Virno diz que, atualmente,[11] , a afirmação é, sem dúvida, correta. A ampla reformulação do sistema social para o workfare também submete o trabalho não remunerado aos imperativos da economia capitalista do tempo: qualquer tipo de time-out se tornará impossível. Hoje, mais do que nunca, para liberar os elementos ocultos e revolucionários, a crítica deve ser uma crítica da forma: uma crítica do trabalho assalariado, ou melhor, uma crítica da orientação insensata para o trabalho assalariado em vista de sua erosão social.


Bibliografia e referências*

Gerstenberger, Heide, Die subjektlose Gewalt. Theorie der Entstehung bürgerlicher Staatsgewalt, Münster: Westfälisches Dampfboot  2006.

Holloway John, Die Welt verändern, ohne die Macht zu übernehmen, Münster: Westfälisches Dampfboot 2002. [English title: Change the World Without Taking Power, Pluto Press 2002.]

Marx, Karl, Grundrisse der Kritik der politischen ÖkonomieMarx-Engels-Werke (MEW), Bd. 42, Berlin: Dietz 1983.

Marx, Karl, „Kritische Randglossen zu dem Artikel „Der König von Preußen und die Sozialreform. Von einem Preußen“, Marx-Engels-Werke (MEW), Bd. 1, Berlin: Dietz 1957, pp 392–409.

Marx, Karl, „Zur Judenfrage“, Marx-Engels-Werke (MEW), Bd. 1, Berlin: Dietz 1957, pp 347–377.

Marx, Karl, Zur Kritik der Hegelschen RechtsphilosophieMarx-Engels-Werke (MEW), Bd. 1, Berlin: Dietz 1957, pp 201–336.

Polanyi, Karl, The Great Transformation. Politische und ökonomische Ursprünge von Gesellschaften und Wirtschaftssystemen, Frankfurt am Main: Suhrkamp 1995.

[English title: The Great Transformation: The Political and Economic Origins of Our Time, Beacon Press,  Boston 1944]

Virno, Paolo, „Wenn die Nacht am tiefsten … Anmerkung zum General Intellect“, übers. v. Thomas Atzert / Jost Müller (Hg.) in: Immaterielle Arbeit und imperiale Subjektivität, Münster: Westfälisches Dampfboot 2004, pp 148–155.

(*Translator’s Note: where applicable, English sources are referenced in the Endnotes below.)

[1] Karl Marx Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy  tr. Martin Nicolaus  (London:  Penguin Classics, 1993), see www.googlebooks.co.uk, p. 159.

[2] Heide Gerstenberger, Die subjektlose Gewalt. Theorie der Entstehung bürgerlicher Staatsgewalt. Münster: Dampfboot 2006, p. 141 (MO‘N translation, page reference to the German text only).

[3] Karl Marx, “On the Jewish Question”, in Writings of the Young Marx on Philosophy and Society by Loyd David Easton, Kurt H. Guddat, Hackett Publishing 1997, see www.googlebooks.co.uk,   p. 228.

[4] Karl Marx, “Critique of Hegel’s Philosophy of the State (1843)”, in Writings of the Young Marx on Philosophy and Society, see www.googlebooks.co.uk,   p. 199.

[5] Karl Marx, “Critical Notes on the Article “The King of Prussia and Social Reform. By a Prussian”, www.marxists.org/archive/marx/works/1844/08/07.htm ..

[6] Karl Marx, “Critical Notes on the Article “The King of Prussia and Social Reform. By a Prussian”, www.marxists.org/archive/marx/works/1844/08/07.htm .

[7] Karl Marx, “On the Jewish Question”, in Writings of the Young Marx on Philosophy and Society, see www.googlebooks.co.uk,   p. 228

[8] Karl Marx Grundrisse: Foundations of the Critique of Political Economy  tr. Nicolaus, see www.googlebooks.co.uk, p. 91.

[9] Ibid.  p. 705.

[10] Ibid   p. 705.

[11] Paolo Virno, op. cit., p. 151 (MO‘N translation, page reference to the German text only).

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