Medida Provisória: é possível um antirracismo sem luta de classes?

Acauam Oliveira[1]

No fim das contas, Medida Provisória acaba servindo como um excelente exemplo de como conteúdos políticos progressistas podem cumprir função conservadora tão bem quanto conteúdos propriamente reacionários.

I

Confesso que estava ansioso para assistir ao filme de estreia do Lázaro Ramos como diretor. Afinal, Medida Provisória trata de uma temática que me interessa de perto; conta com a participação preciosa de diversos artistas e intelectuais que admiro; tem a presença magnética do Seu Jorge, a meu ver um dos grandes atores brasileiros da atualidade; parte de uma premissa distópica pra lá de interessante (o governo brasileiro baixa uma medida provisória que permite aos negros residentes no país voltar para a África, a princípio por opção, depois compulsoriamente); e é dirigido por um homem negro comprometido há tempos com a temática racial. Com tudo isso em vista, fui para o cinema cheio de expectativas e torcendo verdadeiramente pelo filme, com o coração o mais aberto possível.

E posso dizer que por algum tempo pensei que minha torcida seria recompensada, ao menos no terço inicial da obra, enquanto a boa premissa inicial seguia em aberto. Infelizmente, tão logo ela se resolve, com as coisas passando para o que seriam as “vias de fato”, o filme envereda por uma sucessão de clichês e simplificações que faz desandar todo o conjunto. No fim das contas, a obra acaba servindo como um excelente exemplo de como conteúdos políticos progressistas podem cumprir função conservadora tão bem quanto conteúdos propriamente reacionários. Uma das marcas, a propósito, do “padrão Globo de qualidade”, vide BBB “esquerdista” e Zorra Total “progressista”.

Algumas críticas já apontaram, corretamente, as enormes limitações que o filme apresenta em termos de desenvolvimento narrativo e construção das personagens. Eu gostaria de avançar um pouco na hipótese de que boa parte dos problemas formais da obra derivam de dois aspectos mais gerais: 1) seus realizadores se preocuparam muito mais com a reafirmação didática de sua ideologia do que com a arte cinematográfica e; 2) seu horizonte de classe impõe claras limitações à percepção política apresentada em tela. Juntando esses dois problemas de base, temos um filme que se esforça do início ao fim para comprovar a posição política de seus realizadores, cuja fragilidade, no entanto, é evidente, resultando num conjunto que compromete a estética em nome da política e que em termos políticos, entrega menos que o básico.

Mas, de que forma um filme que se pretende político praticamente a cada frame pode chegar a um resultado em tudo oposto, ou seja, despolitizado até a medula? Um dos primeiros aspectos a se destacar nesse sentido é o medo que o filme sente de encarar as complexas contradições do seu assunto principal – o racismo. Pois, a despeito da violência de sua temática, o sentido geral do filme termina por soar apaziguador e conformista. Isso porque, se por um lado o filme se propõe a denunciar o racismo em suas mais diversas formas, por outro existe uma preocupação ainda maior com o acalanto dos expectadores, resultando em uma mescla descompensada, misto mal equilibrado de denúncia e apaziguamento.

Note-se: nada contra esforços de recuperação da estima do povo preto, muito pelo contrário. A questão não é o conjunto de boas intenções dos realizadores, mas o que isso efetivamente resulta em termos estéticos. No caso, um ponto de vista que se esforça por apaziguar contradições e, junto com elas, a complexidade da temática racial. Uma forma paradoxal de denúncia conformista, cuja fundamento é ideológico.

Tal perspectiva serve mal como ponto de partida para compreender problemas reais de maneira dialética, como costumam fazer as grandes obras de arte. A bem dizer, o objetivo de Medida Provisória parece ser outro: simplificar o máximo possível o debate, de modo a fazer com que o racismo apareça como algo terrível e onipresente, mas, ao mesmo tempo, simples de se compreender a partir da exposição didática de uma série de situações-clichê específicas: ser japonês e dizer-se negro é errado; dizer que não é racista porque tem amigo preto é errado; considerar “preto” um termo ofensivo é errado. Do outro lado, o caminho da virtude: ser a favor da não-violência é o certo; a aliança entre negros de todas as classes e espectros ideológicos é o certo (alô Sérgio Camargo!); a reverência a história negra é o certo. O resultado artístico desse desfile de fórmulas exemplares é uma exposição redundante e pouco criativa de fragmentos do debate racial contemporâneo, apresentados de maneira burocrática e esquemática, sem aprofundamento, como uma espécie de manual de boas maneiras raciais.

Está (quase) tudo ali, apresentado com pouco ou nenhum desenvolvimento narrativo: aquilombamento (check), afrofuturismo (check), racismo recreativo (check), empoderamento (check). Se a presença de tais temas em um filme de grande audiência protagonizado por negros é algo a se celebrar, o esvaziamento de seu potencial crítico decorrente da simplificação apressada de sua temática principal salta aos olhos, neutralizando significados políticos mais profundo. Ao final do curso (digo, filme), o aluno (digo, público) sai versado em retórica antirracista, ao passo que o racismo em si é tratado como um problema a ser combatido por meio da adoção de certos jargões e códigos de conduta, premiando subjetivamente a parcela do público já familiarizada com eles. Uma espécie de fan service militante, portanto. A propósito, uma que tem tudo para dar certo e fazer do filme um sucesso entre progressistas.

O problema, obviamente, não é o fato de os realizadores da obra assumirem um lado, da maneira mais clara e evidente possível, produzido um conteúdo diretamente engajado – sobretudo quando esse lado é o do antirracismo. O engajamento em arte pode ou não gerar em bons resultados, assim como pontos de vista mais imediatamente esteticistas. E ninguém retira os méritos da obra como o filme com o maior número de atores negros na frente e atrás das teles. Sim, é sobre colocar comida na mesa dos nossos que estamos falando, e antirracismo é também sobre isso.

Entretanto, por se tratar de um filme, a questão que nos interessa aqui é também o mérito artístico da empreitada.  No caso de Medida Provisória, por diversas vezes sua mensagem ideológica toma a frente da dimensão estética, desequilibrando o conjunto e assumindo um caráter nitidamente panfletário, causando a impressão de que os realizadores estavam mais preocupados em provar sua capacidade de construir uma “crítica social foda” do que apresentar uma obra coerente e amadurecida. Pode ser algo a se lamentar (ou não), mas obras de arte – tal qual humanos – não são feitas apenas de boas intenções.

O problema do filme não é, portanto, seu engajamento histriônico, mas sim o seu oposto: o quanto essa performance “política” acaba por funcionar como um eficiente instrumento de despolitização.

II

Recordemos que o problema não é de hoje, e tampouco tem a ver apenas com insuficiências individuais dos seus realizadores (como a pouca experiência de Lázaro Ramos na direção). Sob outra ótica, trata-se de um problema similar ao que Antonio Candido identificava já nos primórdios da formação da literatura brasileira, quando nossos escritores, diante de uma realidade social que mal se sustentava em suas instituições mais elementares, sofriam em vão para encontrar o equilíbrio entre engajamento e fantasia. Pode-se dizer que Medida Provisória também se viu “prejudicada no exercício da fantasia pelo peso do sentimento de missão” [i] dos seus realizadores. No caso da literatura brasileira, a inexistência material da nação forçava os escritores a inventá-la no romance, antes de transfigurá-la em arte. No caso de Medida Provisória, ao que tudo indica, o substrato material a lhe faltar é precisamente a forma higienizada com que projeta sua “comunidade negra” ideal.

III

Em linhas gerais, Medida Provisória ostenta um desejo profundo de comunicação, apresentando pautas urgentes de forma direta e didática. Nada mais urgente, nesse sentido, do que o processo contínuo de violência sistemática contra os não-brancos do país. O problema é que por diversas vezes o superdimensionamento ideológico do filme faz com que ele soe como uma espécie de vídeo institucional produzido por intelectuais negros que desejam estabelecer uma comunicação fácil com o grande público (e um ponto interessante a se considerar é que o filme tem feito sucesso nas bilheterias, o que confirmaria o acerto político e publicitário da aposta). Público este que, por sua vez, é tratado como uma grande massa aparentemente incapaz de lidar com a complexidade concreta do debate racial.

Esse aspecto nos fornece uma primeira pista do horizonte ideológico que organiza o foco narrativo da obra: o ponto de vista de uma classe média intelectualizada (ou dirigente) que acredita que conteúdos políticos precisam ser entregues de forma simplificada e mastigada para o povo, pelo bem da “clareza” da mensagem. Nem é preciso apontar o abismo que existe entre essa visão populista do “povo negro” e a complexidade real daquilo que o “negro realmente existente” é capaz de produzir desde seu próprio horizonte de atuação (aquele mesmo “povo negro” que acabou de levar para a Marques de Sapucaí desfiles que recriam a história do negro do Brasil de uma maneira muito mais densa, complexa e artisticamente relevante). Uma classe média que, no fim das contas, ostenta uma enorme desconfiança em relação ao próprio povo negro que afirma defender e honrar.

Nesse sentido, não deixa de ser interessante que, no filme, a resistência negra não seja capaz de barrar o projeto de branqueamento promovido pelo Estado. O resultado da resistência é a consciência da opressão, e não a vitória sobre o opressor, uma vez que os negros são ou deportados, ou obrigados a se esconder. Para isso, seria necessário no mínimo um pouco da força bruta até então restrita ao aparelho repressor do Estado; mas a perspectiva do filme é, digamos, “pacifista”, favorável ao protesto sem baderna. Historicamente, entretanto, sabemos que os negros brasileiros conseguiram criar uma série de estratégias e táticas que terminaram por vencer o projeto de branqueamento promovido pelo Estado brasileiro no pós-abolição. Ao contrário do filme, o país não se branqueou – muito pelo contrário. Ou seja, o povo negro real, desprovido ou não dos instrumentos conceituais da militância política, obteve resultados concretos muito mais positivos do que a aposta tímida e desconfiada do filme. Mais um indício da sua desconfiança frente a agência popular.

Conforme dizíamos no início, Medida Provisória padece de um medo profundo de encarar suas próprias contradições, jogadas para debaixo do tapete, com claro prejuízo para seu desenvolvimento narrativo. Nesse sentido, um de seus principais medos é a própria perspectiva popular, que fatalmente adicionaria uma camada de profundidade à obra que ressignificaria todo seu conteúdo. Ora, dentro dos conflitos essenciais que o filme não aborda está o mais elementar e fundamental deles: a boa e velha luta de classes que, na perspectiva da obra ou não existe, ou não importa. Daí a facilidade e segurança com que se divide o mundo entre branco opressor e negro oprimido, mesmo que o negro seja um advogado de renome e o branco, um porteiro: tudo se passa como se o racismo, onipresente, fosse o resultado da ação de sujeitos essencialmente brancos e essencialmente maus (não por acaso encarnados por atrizes que fizeram memoráveis vilãs de novela), além de, dado o frágil desenvolvimento das personagens, essencialmente estúpidos.

O filme apresenta a típica “jornada moral” de protagonistas de classe média a fazer uma grande viagem em direção à descoberta gradual (sobretudo Capitu, vivida por Thais Araújo) de que a identidade racial une a todos os não brancos sob um mesmo significante “negro”: uma não-identidade colonial cuja função é a desumanização e a redução da integralidade do ser à mera superfície epidérmica. Claro, existe um componente de verdade nisso (os casos de racismo sofridos na realidade pelo casal Thais e Lázaro, por exemplo), mas que está longe de ser “toda” a verdade. Prova disso é a própria opção narrativa do filme: ao mesmo tempo em que se afirma o caráter universal abstrato da condição negra no mundo, a unir todas as classes, o protagonismo é concedido apenas aos negros mais bem-sucedidos socialmente (médico, jornalista, advogado).

Essa opção narrativa pretende transmitir uma mensagem clara, dentro dos códigos bem conhecidos do “empoderamento identitário”: negros podem ser o que quiser, inclusive médicos, jornalistas e advogados, bastando a sociedade perceber isso e abrir-lhes as portas, enfrentando desse modo seu racismo estrutural. Nada de representações estereotipadas de negros como marginais, escravos e detentos, portanto: é chegada a hora de descolonizar nosso imaginário. Ao fundo, porém, o ruído: o negro pode ser o que quiser, a não ser, é claro, que seja pobre, pois aí não poderá ser protagonista de um filme que trata do empoderamento negro. Para isso, é preciso ser um cidadão economicamente bem-sucedido, o que aponta para um ideal emancipatório bastante restrito e em tudo diferente, por exemplo, do ideal do rap nacional nos anos 1990, para quem a condição de emancipação do povo preto seria o fim das prisões e da polícia militar, com protagonismo para os irmãos “bandidos” e “marginais”, sem os quais dificilmente seguiremos vivos.

Para que tal ficção de emancipação identitária se sustente, o filme precisa ocultar a diferença elementar entre quem dirige um carro de luxo e quem vive caminhando por entre becos e vielas. Daí o apagamento de todo e qualquer indício mais forte de luta de classes, que resulta em um clima irrealista que emerge não da dimensão fantasiosa da distopia (bastante crível em termos imaginários), mas da sua representação “realista”, que simplesmente faz desaparecer aquele que segue sendo o conflito estruturante em uma sociedade em que ricos e pobres definitivamente não estão do mesmo lado. Somente a partir da neutralização de seu conflito elementar, a luta de classes, que retira a força política e narrativa do filme, é possível construir uma imagem de resistência antirracista em formato de cartilha cinematográfica desprovida (ou quase) de contradições.

IV

Em linhas gerais, pode-se dizer que Medida Provisória aposta em dois movimentos complementares que definem os limites do horizonte político e social de sua perspectiva antirracista. A aposta número um é o “esclarecimento” geral do público, seja ele composto por brancos (que devem aprender o quanto que o racismo é desumano e burro), ou negros (que aprendem sobre sua história e ancestralidade, da qual devem se orgulhar). Daí o caráter didático da obra, que celebra a ancestralidade do povo preto ao mesmo tempo em que confia muito pouco em sua capacidade de apreensão de conteúdos mais densos. No papel de mediadora, obviamente, uma classe média negra intelectualizada, matriz do ponto de vista ideológico do filme.

A segunda aposta é complementar à primeira, e ainda mais fundamental: a identidade racial coloca em segundo plano, quando não faz desaparecer completamente, a perspectiva de classe, de modo que o ponto de vista particularizado da classe média possa aparecer enquanto representante universal da luta de todo povo negro. Um movimento semelhante ao denunciado pelo feminismo negro ao apontar como certo feminismo de classe média tende a universalizar a condição social da mulher branca de modo a fazer desaparecer as particularidades de raça no interior do debate de gênero[ii].

Chegamos, portanto, ao núcleo político do problema: uma utopia liberal de superação do racismo que simplifica a complexidade do conflito racial de modo a escamotear o fundamento de classe que lhe é constitutivo. Em suma, Medida Provisória é um excelente exemplo de como a perspectiva liberal de classe média tem o poder de despolitizar conteúdos políticos urgentes.

V

Observemos mais de perto a nítida divisão proposta pela obra entre protagonistas e homenageados. Já dissemos que no filme estão presentes diversos aspectos do debate racial contemporâneo: reverência aos antepassados, culto à ancestralidade, resistência cultural e política, além de muita, muita representatividade. O protagonismo, contudo, caberá aqueles negros “melhores que a média”, incluindo aí médicos, advogados, jornalistas e, obviamente, estrangeiros (Alfred Enoch, interpretando uma espécie de alterego do próprio Lázaro Ramos). De fato, o casal central apresenta um recorte perfeito do imaginário liberal: o herói de classe média (advogado) cuja dignidade pacífica vai servir de exemplo para o mundo, sobretudo se pouco adiantar em termos práticos, e a heroína (médica) que vai precisar perder seus privilégios para reaprender com os mais “humildes” a sua real condição de mulher negra, numa volta simbólica para a África. A resposta geral é enegrecer, mas os resultados são bem diversos, a depender do lugar ocupado na pirâmide social.

Observe-se, por outro lado, o direcionamento dado pelo filme às figuras que não são protagonistas. A princípio trata-se de um muito bem-vindo movimento de recuperação da memória e celebração de nossos heróis em vida, demonstrando que o povo negro luta e resiste. E é, sim, emocionante ver a profusão de citações e homenagens a figuras tanto vivas quanto já falecidas, sendo reverenciados e recebendo um mais do que merecido lugar de destaque. Por outro lado, o conjunto das homenagens falha em criar um sentido narrativo para essas personalidades. No geral, essas figuras não têm complexidade o bastante para se tornarem personagens, nem força o suficiente para assumir condição alegórica. Também não são propriamente tipos, pois não existe desenvolvimento claro do enredo nesse sentido.

Quando, por exemplo, Emicida aparece em tela, mesmo que representando uma liderança Quilombola, essa representação é tão fragilmente construída, tão sem função narrativa evidente, que é inevitável a sensação de que o que estamos vendo na tela é o próprio Emicida representando a si próprio, em homenagem aos serviços prestados para a comunidade negra. Homenagem mais do que justa, é claro, mas o ponto é quanto que o filme falha em criar função narrativa tanto para ele quanto para tantas outras figuras negras importantes, que ali comparecem como mera citação, sem que a complexidade de suas vozes e perspectivas sejam efetivamente incorporadas à matéria fílmica. Dessa forma, os ensinamentos e vivência dos homenageados fazem pouca ou nenhuma diferença no conjunto, cuja perspectiva é construída desde outro lugar. Apenas assim é possível unir com tranquilidade pensadores negros marxistas, integralistas e liberais sob uma mesma concepção abstrata de identidade. Afinal, tais figuras estão ali como mera citação, enquanto a perspectiva real que sustenta a obra fecha seus próprios acordos com grandes oligopólios “progressistas”.

VI

Em suma, a perspectiva liberal do filme, ao silenciar a respeito do conflito que está na base mesmo de seu tema principal, acaba por fragilizar todo conjunto, que dessa maneira só é capaz de nos apresentar uma imagem protocolar de antirracismo, cujos fundamentos são menos os efeitos do genocídio negro na vida real do que os intermináveis debates no twitter a respeito do que é certo ou errado fazer no dia a dia (O certo é preto ou negro? Como um branco pode ajudar na luta antirracista? Um homem negro pode se relacionar afetivamente com uma mulher branca?).  Como resultado, a estranha sensação de uma alegoria política em que não existe, propriamente, política.

Boa parte das fragilidades do filme tem por base esse mesmo movimento de construção de um imaginário progressista sem luta de classes: a obviedade reiterativa das metáforas (um racista que pede um sorvete de chocolate, clichês manjadíssimos do tipo “não sou racista, tenho até empregada negra”, rimas visuais nada sutis); personagens vazias cujas ações (e mesmo morte) não resultam em nada para além do aceno panfletário para o expectador; os furos absurdos no roteiro, decorrentes da sua artificialidade; e por aí vai.

Ora, esse modelo abstrato e vazio de utopia, espécie de lugar de fala lugar sem lugar de escuta, não deixa de ser uma bem-acabada representação da utopia progressista liberal. Em seus limites, Medida Provisória funciona bem como sintoma do atual estágio de desagregação de certos horizontes utópicos. Percebe-se, afinal, que a verdadeira distopia é a crença de que o capitalismo pode fornecer caminhos para superar as chagas que o alimentam. Como nos recorda bell hooks ao tratar dos limites ideológicos presente nos filmes de Spike Lee[iii], o sequestro liberal da narrativa de nossos sonhos e memórias (e não apenas em relação ao movimento negro) é parte fundamental do problema, e sua compreensão indica as possibilidades (ou não) de nossa redenção futura.

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[1] Professor de Literatura Brasileira e afro-brasileira da Universidade de Pernambuco, campus Garanhuns

[i] Ver SOUZA, Antonio Candido de Melo. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. Ed. Itatiaia Limitada, 2000.

[ii] HOOKS, bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 2020.

[iii] HOOKS, bell. Anseios: raça, gênero e políticas culturais. São Paulo, Elefante, 2019.

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