A demissão: a relevância da Revolução Cultural

Por Asad Haider, traduzido por Matheus Muniz Weiss, via The Point Magazine.

Em novembro de 1965, a peça Hai Rui Dismissed from Office [Hai Rui demitido do cargo] foi analisada por Yao Wenyuan no jornal Wenhuibao. A crítica aparece poucos anos depois da encenação da peça, uma ópera espetacular no estilo de Pequim escrita por um historiador respeitável da Dinastia Ming, Wu Han. Posteriormente, viria a ser vista como a faísca dos tumultuosos eventos da Revolução Cultural.


No centro da peça, estava Hai Rui, uma real figura histórica do século XVI. Conhecido por ser um funcionário imperial “incorruptível”, Hai sempre aliou-se ao lado dos camponeses comuns, arriscando seu cargo para ajudá-los a recuperar suas terras que tinham sido confiscadas por funcionários corruptos do imperador. Apesar do heroísmo, Hai foi submetido a uma campanha pública de difamação e demitido pelo imperador.

A peça foi didática, destinada a educar o público sobre a história chinesa. Porém, de acordo com a crítica de Yao, também encenou, na relação entre o justo Hai Rui e os camponeses adoradores que nele buscaram uma salvação, a relação entre o líder do Partido Comunista e os camponeses que constituíram a base da Guerra Popular. Yao argumenta que a peça baseou-se em uma deturpação histórica: ao retratar a dependência dos camponeses de Hai, Wu Han apagou sua agência política. O ponto da trama de “recuperar suas terras”, enquanto isso, era um modo de, esotericamente, criticar a liderança comunista pelo Grande Salto para Frente. A peça foi, então, um exemplo de “oposição burguesa à ditadura do proletariado e à revolução socialista”.

A crítica foi encomendada por Jiang Qing e Zhang Chunqiao, os quais, juntos ao Yao e ao Wang Hongwen, constituiriam a “Gangue dos Quatro”, o círculo interno radical de Mao Zedong, que seria, depois da morte de Mao, preso e culpado pelos excessos da Revolução Cultural. Precisamente quem, na liderança revolucionária chinesa, Hai Rui e os “funcionários corruptos” deveriam representar tornou-se uma questão de importância política central. Mao apoiou a crítica de Yao, levando a análise literária um passo adiante ao sugerir que Hai Rui era uma defesa alegórica de Peng Dehuai, o qual opôs-se publicamente a Mao na disputa que atingiu o pico em 1959 na Conferência de Lushan, com consequências desastrosas. O Presidente o demitiu.

Apesar de seu endosso feito pela liderança mais alta, a crítica causou divisão. Em certos níveis do aparato estatal local, houve inicialmente tentativas de censurar sua republicação. Em última análise, a controvérsia implicou a demissão de Peng Zhen – apoiador de Wu Han e prefeito de Pequim – junto com outras autoridades culturais e políticas. Isso seria um fio condutor da Revolução Cultural: disputas políticas que foram de debates sobre política agrícola e crítica teatral à demissão de funcionários públicos, e tudo de novo.

A seguinte sequência de eventos é razoavelmente bem conhecida: em 25 de maio de 1966, apareceu um “pôster de grande-personagem” na Universidade de Pequim, escrito pelo nomeado secretário do Partido do departamento de Filosofia, Nie Yuanzi. O pôster apelou ao campus para “incendiar a Revolução Cultural nas Universidades”, opondo-se aos revisionistas contrarrevolucionários que estavam suprimindo discussões independentes – discussões parcialmente provocadas pela controvérsia sobre Hai Rui. Em vez de apoiar as autoridades de seu próprio partido, as quais estavam tentando manter o debate político e a atividade sobre controle estatal, Mao, entusiasticamente, apoiou o pôster, junto com outros dois que seguiram na Escola Secundária da Universidade de Tsinghua, assinado por um grupo que se autodenominava “Guardas Vermelhos”. Ao fazer isso, ele deu sua benção às organizações da juventude que, logo, transformaram-se nos principais atores políticos da Revolução Cultural.

Ao longo dos anos, tenho lutado para ponderar sobre o que me parece enquanto dois problemas paralelos. O primeiro é uma condição histórica geral que passei a ver como “despolitização”, que resulta do encerramento das sequências revolucionárias do século XX e de categorias de luta política que as definiram. A despolitização torna difícil imaginar como, nas nossas condições contemporâneas, poderíamos criar tipos de organizações e práticas que seriam capazes de, fundamentalmente, transformar nossa sociedade. O segundo foi minhas próprias experiências políticas, nas quais energias iniciais de unidade, organização e criação política transformaram-se em facções que buscavam comer umas às outras vivas. Frequentemente, o que começa como oposição às instituições mais arraigadas culminou em disputas por expulsão de indivíduos particulares.

Meu senso de novidade, cada vez que isso acontecia, o que paradoxalmente parece ser uma invariante histórica, foi calejado, um pouco por minha consciência que expurgos e faccionalismo são problemas clássicos da esquerda. Todavia, historicamente, eles ocorreram em um contexto de guerras civis e mundiais, frequentemente seguidas de invasões e massacres de larga escala. Por que, então, versões microscópicas e paródicas desses fenômenos aparecem agora, mesmo na ausência de tais riscos?

Ao passar por essas experiências, meu pensamento foi estimulado pelo estudo da Revolução Cultural Chinesa, especialmente pela análise única do sociólogo italiano Alessandro Russo, apresentado, neste ano [2020], em seu livro Cultural Revolution and Revolutionary Culture [Revolução Cultural e Cultura Revolucionária]. Em minhas contínuas reflexões sobre a aparente impossibilidade de uma política emancipatória no presente, tornei-me fascinado pela categoria de “demissão”. Esse termo foi utilizado ao longo da história chinesa para remeter à remoção de funcionários imperiais de seus cargos, mas sua lógica parecia estar reaparecendo em um contexto completamente diferente nos movimentos sociais contemporâneos. Para Russo, foi fundamental para examinar as contradições da Revolução Cultural e também para sua análise meticulosa do caso Hai Rui – o “prólogo teatral” da Revolução.

O livro de Russo aparece em um momento que abundam comparações à Revolução Cultural. Os eruditos usaram-no para avisar-nos sobre as implicações perigosas da cultura do cancelamento – comumente significando, mais ou menos, grupos violentos de mídia social, mas também os da vida real, que almejam pessoas que desviam do conformismo dominante, com a finalidade de arruinar suas reputações e, às vezes, demiti-las. Nessas comparações, o maoísmo é equiparado com “justiça social”, os Guardas Vermelhos com estudantes que tentam derrubar professores ou ativistas que tombam estátuas dos Pais Fundadores, as famosas “sessões de luta” com as atuais confissões ritualísticas de privilégio.

Tais comparações podem parecer bastante alarmantes, visto que as condenações da Revolução Cultural são fundamentadas em certas questões de fato indiscutível. Isso incluiu conflito violento entre facções opostas, repressão militar de movimentos que perderam apoio e a denúncia e perseguição de indivíduos cuja retidão ideológica era insuficiente. Para remeter aos exemplos que circulam em torno de Hai Rui, tanto o autor, Wu Han, quanto o suposto protagonista alegórico da peça, Peng Dehuai, foram fortemente perseguidos desde o início da Revolução Cultural e morreram na prisão.

É fácil apontar, e muitos fizeram-no, que eventos contemporâneos não alcançam, nem de perto, a escala de violência e repressão associada à Revolução Cultural. Contudo, o exagerado e mal-informado caráter dessas comparações – desimpedido de qualquer consciência do debate acadêmico sobre esse episódio surpreendentemente complicado na história do socialismo de Estado – não necessariamente invalida o que se denomina de “núcleo racional”. A história da esquerda está repleta de exemplos de grupos lutando por emancipação humana e liberação que se tornaram punitivos e conformistas. Ostracismo social e desemprego não são o mesmo que pelotões de fuzilamento e gulags, mas são prejudiciais e, talvez ainda mais salientes àqueles de nós que se mantêm comprometidos com os projetos de emancipação humana, são incompatíveis com esses objetivos políticos.

Comparações entre a Revolução Cultural e nosso próprio tempo, portanto, apresentam-nos uma oportunidade de interpretar mais de perto um exemplo histórico e olhar o que ele realmente tem a nos ensinar. Na realidade, como confirmam recentes estudos, a Revolução Cultural foi muito mais complicada do que poderiam sugerir narrativas unidimensionais sobre massas violentas sem consciência dirigidas por Mao. Por exemplo, o livro de Yiching Wu The Cultural Revolution at the Margins [A Revolução Cultural nas Margens] de 2014, embora bastante crítico a Mao e aos maoístas, mostra que, não obstante a Revolução Cultural exiba dinâmicas de contenção e repressão vindas de cima, ela também “engendra novas formas de subjetividade política e de solidariedade”. De baixo, participantes da revolução atenderam ao apelo de Mao por rebelião, mas também responderam a suas próprias circunstâncias e perseguiram seus próprios objetivos políticos. Isso incluía, como escreve Wu, “as lutas dos indivíduos que sofreram discriminação política por cidadania igual, demandas de trabalhadores por melhores salários e condições de trabalho, queixas populares contra abusos de poder de quadros, e oposição dos rebeldes obstinados à desmobilização em massa e à recentralização política”.

Esses relatos erigem questões que são mais complicadas do que qualquer comparação precipitada pode sugerir. Como essas tendências contraditórias coexistiram enquanto parte de uma única sequência política? Como energias populares movimentam-se em direções aparentemente inconciliáveis? Como movimentos de massa introjetam estruturas hierárquicas de poder? Apesar de a crítica dos modelos de organização política centralistas e de cima para baixo ter se tornado familiar em anos recentes, menos atenção é dada à maneira como as pessoas realmente absorvem tais estruturas em suas vidas cotidianas. Esse é um problema que requer investigação e intervenção – embora não no sentido moralista que hierarquias são más e deveriam, então, ser eliminadas por dinâmicas de grupo, uma abordagem que, tenho considerado, paradoxalmente encoraja o policiamento dos outros.

O problema com essa visão moralizante é que imagina que a liberação está latente nas relações humanas, esperando expressar-se quando as malignas, artificiais, estruturas forem removidas. Tais sonhos de uma ausência de estrutura pura e original são tentadores, mas equivocados. A emancipação humana requer ativamente a construção de novas estruturas que impeçam que a dominação e a exploração reafirmem-se. Visto que não sabemos ainda como essas estruturas serão, temos que estudar seriamente tentativas passadas de construi-las e criar espaço para experimentação no presente. Examinar a Revolução Cultural ajuda-nos a explorar tanto as condições de possibilidade de experimentação política quanto as dinâmicas que, frequentemente, fecham-na.

Talvez a eloquente reflexão de Dai Jinhua sobre memória histórica em After The Post-Cold War [Depois do Pós-Guerra Fria] (2018) melhor explique a orientação que podemos tomar no presente quanto aos traumas do passado, de outra forma reduzida à “despolitizada narrativa” de memória pessoal: “Somente a imaginação e a promessa de um futuro alternativo permite que o sofrimento histórico e presente emerja e fale”, escreve Dai, “e somente uma visão não-teleológica para o futuro pode libertar a história e o tempo da custódia do poder e da violência”. Na verdade, uma vez que reconhecemos as dimensões emancipatória e igualitária da Revolução Cultural, o problema torna-se mais difícil, não menos. Agora, temos que tentar compreender por que coletividades advogando uma política emancipatória também engajam-se em perseguições de seus próprios membros, não somente em nossa experiência contemporânea, mas também em um dos mais significativos eventos da história do socialismo revolucionário.

Após a vitória da Revolução Chinesa em 1949, o novo partido-Estado começou a implementar um programa de abolição de todas as distinções de classe. Isso significou não só a expropriação dos capitalistas e latifundiários, mas também uma contínua tentativa de minar a elite intelectual e administrativa, cujo monopólio sobre conhecimento preservava a distinção entre trabalho manual e intelectual. Uma espécie de “ação afirmativa” àqueles que vieram de classes trabalhadoras e camponesas desprivilegiadas, inclusive mediante admissões na universidade, foi central para esse programa. Porém, concomitantemente, essa abordagem de “nivelamento de classe” deu origem a uma nova elite política: a burocracia do partido-Estado que servia como autoridade primária e representava a classe trabalhadora no nível de governo[1].

Mao preocupava-se com a potencial contrarrevolução dessa nova elite. A esterilidade da burocracia do Partido, em sua visão, ameaçava travar a passagem da China, pela transição socialista, para uma sociedade totalmente sem classes. O revolucionário de toda a vida continuou a depositar sua fé na perpétua mobilização de massa em vez de estabilidade institucional. Entre seus mais famosos slogans, talvez o mais associado à Revolução Cultural, foi, primeiro, articulado em 1939, e inseriu o princípio de rebelião no coração do marxismo:

“Há inúmeros princípios do marxismo, mas, na análise final, eles podem ser resumidos em uma única frase: ‘Rebelar-se é justificado. Por milhares de anos, todo mundo disse: ‘Opressão é justificada, exploração é justificada, rebelião não é justificada’. A partir do momento em que o marxismo aparece na cena, esse velho julgamento foi invertido, e isso é uma grande contribuição. O princípio foi derivado pelo proletariado de suas lutas, mas Marx chegou à conclusão. De acordo com esse princípio, houve resistência, houve luta e o socialismo foi realizado”.

Em 1º de agosto de 1966, Mao repetiria o slogan em sua carta aos Guardas Vermelhos da Escola Secundária da Universidade de Tsinghua, o local dos maiores desenvolvimentos nos dois anos seguintes. Ele adicionou no final: “Marx disse: o proletariado deve emancipar não somente a si, mas a toda humanidade. Se não pode emancipar toda a humanidade, então, o próprio proletariado não será capaz de alcançar a emancipação final. Podem, camaradas, prestar atenção a essa verdade também”. Ele encaminhou essa carta com seu próprio pôster de grande-personagem, o que, chocantemente, convocou os camaradas a “bombardear as Sedes” de seu Partido Comunista. Entretanto, isso foi uma prévia de tudo que viria: a Revolução Cultural seria definida por esse antagonismo de Mao e seus aliados – unidos com grupos rebeldes entre as massas – contra a burocracia do próprio Partido de Mao.

O incentivo de Mao à rebelião nesse período, mesmo quando era direcionado a seus próprios oficiais, foi impulsionado pelo que Russo enfatiza enquanto um tema subterrâneo do pensamento de Mao. Antes da Revolução Cultural, Mao estava preocupado com uma ansiedade histórica que contrariava a orientação clássica da cultura revolucionária para a inevitabilidade da vitória. Em vez disso, foi a “provável derrota” que moldou o pensamento de Mao.

Já em uma reunião no dia 5 de maio de 1966, com o vice-secretário do Partido dos Trabalhadores da Albânia, Mehmet Shehu, Mao, expressamente, reconheceu seu envelhecimento: “Minha saúde está bastante boa, porém Marx, eventualmente, convidar-me-á a visitá-lo”. Ele colocou a questão de quando o “revisionismo” – a clássica frase marxista-leninista para abandono de um caminho revolucionário – tomaria conta da China. A fonte desse revisionismo, Mao disse, não seria resultado de tramas de inimigos estabelecidos. Em vez disso, “aqueles que, agora, apoiam-nos, de repente, como se fosse mágica, tornar-se-ão revisionistas”. Mao especulou, de forma pessimista, que, quando sua geração partisse para juntar-se a Marx, o revisionismo prevaleceria. Era, pois, tempo, nesse estágio final de vida revolucionária, de pensar seriamente sobre a perspectiva de “restauração do capitalismo”.

“Pondo essa probabilidade como a primeira a ocorrer, estamos um pouco preocupados”, admitiu Mao. “Eu também fico, às vezes, angustiado. Dizer que não penso assim e não sinto ansiedade seria falso. Todavia, acordei, chamei alguns amigos para uma reunião, discutimos um pouco e estamos procurando uma solução”. Pouco mais de uma semana depois, apareceria a famosa Circular de 16 de maio, a qual invocava o caso Hai Rui e declarava que “é necessário…criticar e repudiar aqueles representantes da burguesia que adentraram no Partido, no governo, no exército, em todas as esferas da cultura”.

Não há nada de surpreendente nisso. No mundo moderno, capitalismo é a regra, e socialismo, a exceção. Isso, portanto, requer constante renovação e reinvenção por experimentos de massa. E, se a burguesia está dentro do Partido Comunista, isso significa que formas organizacionais independentes do Partido serão necessárias para combatê-la. Situar a crítica ao revisionismo na provável derrota mostra como Mao estava engajado em um fundamental repensar das teleologias históricas da cultura revolucionária, um problema profundo de relevância duradoura. Não é de se admirar, Russo observa, que, em reuniões com os camaradas albaneses, Mao continuou a enfatizar esse tema, dizendo em 1967: “Há duas possibilidades: revisionismo nos derrubará ou nós derrubaremos o revisionismo”. Colocar a derrota enquanto “a primeira possibilidade”, Mao disse, era “benéfico”, uma vez que permitiria que eles não “subestimassem o inimigo”. Em outra reunião alguns meses depois, ele ampliou esse ponto: “Muito provavelmente, o revisionismo vencerá, e nós seremos derrotados. Pela provável derrota, vamos chamar a atenção de todos”.

Para Mao, pois, o conflito intra-elite era desejável, na medida em que era necessário para remover os burocratas que estavam a suprimir a rebelião das massas, pois era somente a rebelião das massas que poderia evitar a possível vitória do capitalismo na China – o que, de fato, foi o resultado final. Como Russo enfatiza, a participação de Mao no debate sobre a crítica de Yao foi motivada por sua avaliação do risco de retrocessos nas conquistas da revolução, e foi, por conseguinte, direcionada, principalmente, àqueles nos aparelhos ideológicos que ele acreditava ameaçar a crítica livre e aberta ao revisionismo. “As declarações de Mao nesses meses”, escreve Russo, “podem ser resumidas enfocando em dois temas prementes: era necessário demitir certas autoridades e abrir-se a uma pluralidade de vozes políticas na China”. A relação entre os dois termos nessa análise, demissão e pluralização, é decisiva, e não somente para compreender a Revolução Cultural. Também é central para captar os problemas fundamentais da política emancipatória no nosso próprio tempo.

A demissão, como manifestou-se no caso Hai Rui, envolveu a expulsão de ministros, líderes e políticos de seus postos. Mas também representou algo muito mais amplo. “Demissão”, Russo explica, é o procedimento repetitivo “que é onipresente em todo curso de ação que resulta na derrubada, mais ou menos violentamente, daqueles que governam a vida de outros de suas posições de autoridade em todos os níveis”. É, então, essencialmente uma espécie de prática governamental que aumenta a violência na medida em que atinge níveis mais altos de autoridade. Ela gira em torno da sensibilidade do político, o que evidencia, nas palavras de Russo, um “prazer de decidir o destino dos outros”.

A demissão, Russo argumenta, é regra na história. Porém, há também exceções. A “exceção igualitária” é “pluralização”, um processo que se distancia das hierarquias sociais existentes e das práticas de governo. Em momentos excepcionais de pluralização, vemos que “aqueles que, comumente, estão em posições de serem governados… são, às vezes, capazes de auto-organizar sua existência política e inventar formas igualitárias de relações”. Concretamente, a pluralização na Revolução Cultural significou o aparecimento de organizações totalmente novas independentes e, na verdade, antagônicas ao partido-Estado, espalhando para além dos campi universitários e estendendo-se à classe trabalhadora urbana.

Deveria enfatizar-se que, ao identificar o caráter emancipatório desse momento de pluralização, Russo não busca racionalizar as performances espetaculares que são, agora, associadas à Revolução Cultural – e que motiva a maioria das comparações contemporâneas. Destruir estátuas e edifícios, renomear ruas e lojas, eram uma distração do problema real: a formação de uma pluralidade de organizações independentes sem a autorização prévia do partido-Estado. Essas práticas espetaculares, na verdade, eram para beneficiar a burocracia do Partido, na medida em que elas redirecionam o ativismo estudantil para longe da pluralização.

O dilema da Revolução Cultural foi representado na sobreposição de demissão e pluralização. Como vimos, a prática governamental de demissão deveria, inicialmente, abrir espaço para a pluralização, ao remover os burocratas e os revisionistas que, elevados a posições de poder nos primeiros estágios da Revolução, agora, buscavam reprimir a rebelião fora do Partido. Mao pensou – equivocadamente – que os dois processos eram compatíveis. Mas a experiência da Revolução Cultural ilustra que há, na verdade, uma descontinuidade fundamental e um antagonismo entre o processo de demissão, que depende de hierarquias em que as pessoas ocupam posições sociais particulares, e a invenção igualitária, que faz da igualdade um princípio vivo por meio da experimentação com formas organizacionais. Nesse caso, as milhares de novas organizações que emergiram pela pluralização, acabaram atacando umas às outras, e o experimento igualitário autodestruiu-se.

O fenômeno que emerge da amálgama entre demissão e pluralização é o “faccionalismo”, e, para Russo, ele indica o limite fundamental da Revolução Cultural. O faccionalismo descreve o processo pelo qual, mediante divisões e alianças arbitrárias, a pluralidade indeterminada das organizações foi reduzida a um quadro de dois. A autorização de si das organizações não estava mais em jogo; agora, as facções se confrontariam em combates direcionados à supremacia política ou militar. Em vez de manter independência do partido-Estado, as organizações faccionais buscaram tornar-se o núcleo do novo partido-Estado, constituído pelo processo de demissão e aniquilação da facção oposta. A Revolução Cultural havia se transformado em “brigas grotescas” entre jovens, cuja luta por poder logo levou à exaustão das energias políticas que, só recentemente, surgiram.

Disputas de facções, importante sublinhar, não eram pautadas em posições políticas divergentes, mas, unicamente, no objetivo de destruir organizações rivais em nome da tomada do poder. Esse ponto geral é definitivamente confirmado pela síntese abrangente Agents of Disorder (2019) do historiador Andrew G. Walder. Aqui, Walder baseia-se em materiais de “anais locais” a fim de refutar teorias anteriores que explicavam o faccionalismo enquanto sintoma de grupos de interesses ou ideologias preexistentes. Em vez disso, ele confirma, o faccionalismo possuía apenas um fundamento: a aniquilação da facção rival. Ao contrário dos desacordos políticos substantivos que engendravam as divisões entre facções, suas ideologias serviam enquanto justificativa para divisões arbitrárias. O apoio dos militares, por exemplo, não foi determinado por nenhuma posição da organização sobre a correção da intervenção do Estado, mas, sim, se os militares seriam úteis para suprimir a facção rival. Nesse sentido, as facções foram totalmente despolitizadas.

Chamar as facções de “despolitizadas” pode parecer contraintuitivo. Nas discussões contemporâneas sobre Revolução Cultural – que, muitas vezes, conectam faccionalismo à cultura do cancelamento –, ambas as dinâmicas são, frequentemente, imaginadas como impulsionadas pela ultrapolitização, ou “politização da vida cotidiana”. Olhar a história mais de perto, contudo, revela que o faccionalismo na Revolução Cultural foi, na realidade, conduzido por uma política “despolitizada” – uma política que foi esvaziada de um conteúdo positivo e, então, foi definida apenas pela aniquilação da oposição. “A tragédia da Revolução Cultural”, escreve o acadêmico chinês Wang Hui, em um ensaio de 2006 posteriormente coletado em The End of the Revolution [O fim da Revolução] (2009), “não foi um produto de sua politização – significada pelo debate, investigação teórica, organização social autônoma, bem como a espontaneidade e vitalidade do espaço político e discursivo”. Em vez disso, foi “um resultado da despolitização – lutas faccionais polarizadas que eliminaram a possibilidade de esferas sociais autônomas, transformando o debate político em meros meios de luta pelo poder, e a classe em um conceito identitário essencializado”.

Observe que, hoje, classe não é, frequentemente, vista como uma identidade, mas, certamente, ainda é o caso de que a “política identitária” é constitutiva de identidades ao invés de refletir as existentes. Isso era também verdadeiro para as características despolitizantes da Revolução Cultural. O socialismo de Estado designou a classe enquanto uma identidade a fim de engajar no nivelamento de classe, mas também acabou despolitizando a classe, na medida em que as hierarquias sociais alteravam-se e o pano de fundo da classe tornava-se um traço familiar herdado. Uma lição importante que devemos tirar da história das experiências de poder político da classe trabalhadora é que, para constituir uma política contemporânea de classe, não basta afirmar sua primazia como fundamento social. Em vez disso, o objetivo deve ser situá-lo no quadro de uma política emancipatória que não presume a existência prévia de identidades e interesses fundidos.

Na verdade, isso aponta para uma reveladora similaridade entre política emancipatória e faccionalismo: nenhuma é predeterminada por suas bases sociais. Em ambos os casos, a política libertou-se de suas âncoras usuais. Porém, eles correm em direções opostas. Faccionalismo redireciona a ação política a práticas governamentais perpétuas que mantêm ou refletem o mundo existente. Ele, frequentemente, racionaliza suas práticas com apelos a categorias identitárias, contudo, devidamente apreendidas, essas são consequências da despolitização, em vez de sua causa. Uma verdadeira política emancipatória, por outro lado, excede o mundo existente. Ela mobiliza categorias sociais existentes somente na medida em que elas elaboram a política que afirma a capacidade política de todos, independentemente do lugar que ocupam na sociedade.

O fracasso dos rebeldes, Russo infere, foi que eles não estabeleceram uma distância entre demissão e pluralização. A demissão, notamos, é a regra na história; ela é sempre “lá”. O erro que, constantemente, repete-se é pensar que pode fundir-se com a política emancipatória. No caso Hai Rui, Mao visou restringir os poderes de seu próprio Departamento Central de Propaganda, com a esperança de que conduziria a uma maior liberdade cultural e política entre as massas. O problema foi que essa restrição tornou-se difícil de distinguir da demissão. E, conforme a demissão absorve a pluralização na sensibilidade governamental, o “prazer de decidir o destino dos outros” infiltra-se também nas organizações não-estatais. Afastar-se verdadeiramente da lógica da demissão implica rejeitar esse prazer.

É possível ter pluralização sem demissão – e, por conseguinte, evitar a queda para o partidarismo? Isso é a questão que deveria ocorrer a qualquer um comprometido com a re-politização do presente. Acredito ser possível. Mas também é raro e, no estudo da história, acabamos, frequentemente, alternando entre entusiasmo pela exceção igualitária e o desânimo pela reafirmação da sensibilidade governamental. No caso da Revolução Cultural, a demissão não pode ser totalmente distinguida da pluralização exatamente porque o quadro do partido-Estado manteve-se central para a cultura revolucionária, não obstante houve momentos excepcionais que apontavam para além dela. Entretanto, a sobreposição entre demissão e pluralização ocorreu até fora dos aparatos administrativos do governo, pois o prazer de controlar a vida dos outros também existe no nível das práticas e comportamentos cotidianos. Isso é o que explica os famosos chapéus de burro e denúncias, que existiam desde o início da Revolução Cultural, representando a lógica da demissão, mesmo quando operavam de forma descentralizada e informal.

Interpretar a Revolução Cultural do ponto de vista da política emancipatória no presente exige que estejamos atentos aos momentos em que a exceção igualitária irrompe, antes de ser reabsorvida pela regra da demissão. É impossível para nós, aqui, desvendar os complicados cronogramas da divergência e amálgama desses processos. Então, pularei para um episódio que marca o fim dessa sequência. Em um capítulo extraordinário sobre a “cena conclusiva” do desenvolvimento teatral que começou com o prólogo de Hai Rui – cena que ele, previamente, encenou como uma peça – Russo dramatiza a degeneração da Revolução Cultural em faccionalismo e total exaustão e despolitização dos Guardas Vermelhos[2].

No verão de 1968, a luta entre facções na Universidade de Tsinghua acelerou-se em direção a uma guerra de baixa intensidade, completa com foguetes e granadas. Os grupos estudantis, chamados “Céu” e “Terra”, foram nomeados por suas bases no Instituto de Aeronáutica e no Instituto de Geologia, respectivamente. Não havia uma diferença ideológica clara tampouco uma diferença subjacente no fundo de classe entre os dois grupos. As linhas faccionais haviam se cruzado e dividido de acordo com uma lógica que desafiava a compreensão. (“Toda essa coisa de Céu e Terra não é clara para mim”, Mao observaria). A participação de estudantes diminui conforme o faccionalismo dividia-os cada vez mais, expulsando os menos fanáticos.

Concomitantemente, a violência dos confrontos entre números cada vez menores que compunham as duas facções remanescentes continuou a aumentar. Então, às 22:00 do 27 de julho, pelo menos 30 mil trabalhadores entraram no campus, muitos deles acabando de sair do turno noturno. Desarmados, os trabalhadores posicionaram-se entre as facções para interromper a luta. Como William Hinton reconta em Hundred Day War (1972):

Logo no início, a violência explodiu. Quando os trabalhadores do Regimento Direto aproximaram-se do Edifício da Primeira Sala de Aula, ficaram cara a cara com o “Urso”, um lutador formidável e ousado, famoso para além de Pequim, cujo real nome era Wu Wei-ch’i e cujo pai era um oficial do ELP [Exército de Libertação Popular]. Urso ficou nu até a cintura atrás de uma barricada de arame farpado eletrificado. Brandindo uma faca em uma mão e um machado em outa, ele gritou: “O presidente Mao diz que qualquer um que reprimir o movimento estudantil terá um mau fim! Quem entrar em nosso prédio será cortado pela metade!”.

“Use a razão, não violência”, replicaram os trabalhadores uníssonos enquanto avançavam lentamente para cercar o prédio.

Por fim, os trabalhadores conseguiram, com o que Russo caracteriza como uma rara “disciplina racionalista”, ocupando pontos-chave do campus e colocar um fim à luta.

Foi nas primeiras horas depois do fim da batalha que o líder maoísta chamou vários líderes da Guarda Vermelha à ordem, desafiou-os a explicar suas motivações e criticou severamente seu faccionalismo. Os estudantes, sem saber como responder a esse chamado para encerrar sua luta, tentaram defender suas facções. Obviamente, eles requisitaram ajuda militar – que foi recusada – a fim de suprimir seus rivais. Próximo ao fim da reunião, Kuai Dafu, um líder da facção Céu e talvez o mais famoso Guarda Vermelho na China, começou a chorar. Kuai havia enviado a Mao um telegrama no início do dia solicitando a captura de qualquer um que estivesse por trás da disrupção da luta da Universidade de Tsinghua. Mao disse a um perplexo Kuai que ele próprio fora o responsável pelo envio de trabalhadores. É uma das trocas que, argumenta Russo, mostra que o propósito da reunião era lutar contra o esgotamento político dos Guardas Vermelhos.

O desafio maoísta, segundo Russo, era acabar com o faccionalismo estudantil sem dissolver o impulso de pluralização que trouxe as facções à existência. O aparecimento dos trabalhadores no campus antecipou o programa que seria seguido, com base na mobilização dos trabalhadores contra as brigas despolitizadas dos estudantes. Depois do faccionalismo, a estratégia maoísta foi reinventar a “figura do trabalhador” no centro de um novo experimento político. Tentativas de engajamento nesse projeto podem ser vistas ao longo da década de 1970, especialmente nas “universidades dos trabalhadores” e “contingentes teóricos dos trabalhadores” organizados em indústrias, que continuaram a luta para superar a divisão entre trabalho manual e intelectual e as hierarquias de produção.

Esse projeto foi desigual e contraditório: divisões faccionais persistiram pela década seguinte, e, paradoxalmente, certas promessas igualitárias da Revolução Cultural foram realizadas depois. Contudo, as reformas de Deng Xiaoping acabaram, por fim, derrubar essas iniciativas ao converter o ponto de produção no local de acumulação de lucros, reduzindo o trabalhador a uma unidade econômica em vez de um ator político. (“Produzir mais carvão é a política dos mineradores de carvão”, disse Deng). Uma fusão entre as elites intelectuais e políticas anteriormente rivais, cujo status foi atacado pela radicalização do projeto de nivelamento de classe na Revolução Cultural, engendrou uma nova tecnocracia.

Por conseguinte, a política estatal de “negação total” da Revolução Cultural converteu uma das mais igualitárias sociedades do mundo em uma das mais desiguais. Ao negar a Revolução Cultural, a China avançou a uma velocidade vertiginosa na estrada capitalista. Nesse interim, em 1968, as Guardas Vermelhas foram dissolvidas[3].

Vale lembrar o que está em jogo no estudo histórico: usar o beco sem saída encontrado pela Revolução Cultural para repensar as condições da política emancipatória hoje. Uma política emancipatória reside na mobilização das massas, na emergência de experimentos igualitários que autorizam a si próprios. Embora tenhamos visto como a demissão amalgamada com a pluralização erige faccionalismo, também sugerimos que é logicamente possível distinguir pluralização de demissão.

O que é chamado hoje de cultura do cancelamento é, às vezes, apresentado como um fenômeno de massa, alocado em um continuum com protestos e tumultos, como se houvesse um fio condutor ininterrupto entre demitir, destruir estátuas e saquear. Essa suposição é enganosa, e não somente porque inspira sua própria espécie de repressão. O que ela ignora é a necessária distinção, mesmo em movimentos e espaços onde eles sobrepõem-se, entre a atividade igualitária, de autorizar a si mesmo, e a lógica governamental de demissão. Em qualquer protesto ou reunião política, pode-se testemunhar a repreensão e a denúncia de novos participantes que não estão familiarizados com a linguagem e a etiqueta da justiça social contemporânea, enquanto, no momento seguinte, depara-se com a afirmação do princípio de que todos são capazes de fazer uma declaração política contra injustiça. É possível e necessário separar um impulso igualitário de um censurador.

Para nós, o ponto central é entender que, mesmo quando concebe-se a demissão como um auxílio à pluralização – como foi a intenção de Mao no caso Hai Rui –, sua lógica conduz a um faccionalismo e, pois, à despolitização. Em parte, trata-se de uma questão de reconhecimento de que não são somente aqueles que seguem a política enquanto vocação que gostam de controlar a vida dos outros. Quanto mais as pessoas assumem a responsabilidade de agir como Estados, engajando em censura e controle, mais ela minam a possibilidade de política emancipatória e preparam a cena para a autodestruição faccionalista.

A lição da Revolução Cultural é que uma política emancipatória é, de fato, possível, mas também frágil e precária – e sob constante ameaça da lógica da demissão, que pode ou proibir seu surgimento ou impulsioná-la em direção a um faccionalismo. Na ausência de pluralização – que não ocorre com frequência na história, embora aconteça –, deparamo-nos com a presença e persistência da regra da demissão. A política despolitizada hoje gira em torno da demissão, na medida em que demonstra prazer em governar os outros – e nada mais. Para concluir, indicarei três caminhos em que, acredito, a demissão opera atualmente.

Primeiro, a demissão é vazia. Não ocorre em um contexto de transição socialista e de partido-Estado. A demissão é, hoje, descentralizada e incorporada, em vez disso, em pequenas burocracias, locais de trabalho e movimentos sociais. É caracterizada pela relativa impotência da base e pelo baixo risco de substituir um burocrata por outro. Ademais, na ausência de um partido-Estado revolucionária ou de um processo de pluralização, a demissão ocupa todo o espaço do político. Não pode haver mudança nas estruturas burocráticas e hierárquicas de poder, mas apenas nas pessoas que representam essa estrutura. A demissão encerra a política, uma vez que é vazia.

Segundo, a demissão opera de acordo com a lógica da identidade. Esta determina e restringe a política conforme fundamentos sociais essencialistas. Reviver as designações de classe que caracterizaram a cultural revolucionária não é, em si, uma solução, especialmente se o pertencimento de classe for apreendido em termos identitários. Somente quando concebe-se em termos de subjetividade política igualitária, a classe pode apresentar uma alternativa ao essencialismo da identidade. Porém, na lógica da demissão, todas as formas de pertencimento são só componentes da personalização do inimigo que se estende a partir do esvaziamento identitário. Em vez de qualquer desacordo político substantivo, apenas a pessoa pode ser atacada. A demissão determina a pessoa como inimigo por meio de um deslocamento da ação política pela identidade.

Terceiro, a demissão reitera a despolitização mais ampla mediante a degeneração em facções. O faccionalismo é o resultado necessário da captura da política pela demissão e pela personalização do inimigo, e torna o debate e a discussão políticos impossíveis. No lugar da pluralidade de organizações, haverá duas facções, e sua razão de ser tornar-se-á, cada vez mais, a aniquilação da facção oposta. A demissão é a prática despolitizada de aniquilação faccional.

Por essas razões, as sugestões que estamos testemunhando o ressurgimento de algo parecido com a Revolução Cultural tendem a inverter a realidade de nossa situação, a qual é de que a Revolução Cultural, de maneira única, representa o fim de uma sequência de política emancipatória que se estendeu do Leste Europeu à Ásia, à África e à América Latina. Isso ocorreu em paralelo a uma sequência especificamente chinesa de revoluções, revisada, no início deste ano [2020], em China’s Revolutions in the Modern World, de Rebbeca Karl. No discurso político americano contemporâneo, a China é vista aqui como um parceiro comercial, lá como um risco de segurança, ou talvez como uma nova hegemonia global. Mas, sua história revolucionária, como evidencia Karl, possui um significado universal àqueles que se preocupam com “como outros mundos além dos dados poderiam ser concebidos e tornados possíveis”.

Essa particular sequência revolucionária foi derrotada pela oposição global capitalista, mas também foi, nos termos de Sylvain Lazarus, a que estava refletindo em sua própria participação no maoísmo francês que se tornou, depois de 1968, “saturado” ou “exausto”, porque o modelo de política centrado no partido-Estado não pode mais ser sustentado. Isso é completamente diferente de afirmar que as formas e estratégias desse movimentos políticos anteriores foram erros, ou destinados a terminar em desastre. Em vez disso, começa reconhecendo que existem modos de política específicos a situações históricas, em que as pessoas engendram categorias como a de “Partido”. Quando um modo histórico de política chega ao fim – o que começa também termina –, essas categorias esgotam-se.

Ao refletir sobre as minhas experiências políticas contemporâneas, comecei a pensar que é precisamente porque não havíamos descoberto novos modos de política emancipatória que tudo que restou foi uma forma caricatural de faccionalismo, ataques pessoais e denúncias, que nem sequer representam uma escala histórica e riscos de rápida industrialização, guerras de libertação nacional ou a formação de novas instituições econômicas e políticas. Alguns buscam generalizar essas categorias para além de suas situações históricas, repetindo batalhas sectárias para além dos contextos que lhes deram significado. Porém ainda pior que essa abordagem é aquela que diz que nada jamais aconteceu, que uma política genuína de ruptura com o status quo nunca realmente ocorreu e que, portanto, nunca irá.

Os ortodoxos da justiça social, hoje, propõem nada comparável ao projeto de transformação social total que, antes, girava em torno de categorias de partido e Estado. Eles pertencem ao período de despolitização. Podemos caracterizar a demissão como um fenômeno que ameaça a emancipação no período do socialismo de Estado e marca sua negação no período de exaustão.

A Revolução Cultural evidencia que o alcance do possível é determinado pela presença ou ausência de pluralização. No entanto, temos que considerar a realidade histórica de que a demissão assumiu uma forma devastadora ao lado de um processo excepcional de pluralização. Como podemos definir nossa relação com essa experiência histórica, isto é, a experiência de saturação e exaustão do partido-Estado, que não pode simplesmente ser revivida? Para além disso, como podemos orientar-nos para o presente, emoldurado pela aparente impossibilidade de pluralização?

Acima de tudo, é possível inventar novas formas de fazer política? Na ausência de uma resposta, ficamos apenas com a terrível necessidade de encontrar caminhos de recusar a lógica da sensibilidade governamental, sendo a alternativa, na melhor das hipóteses, a exclusão de qualquer possiblidade de pluralização ou, na pior, o renascimento de formas, cada vez mais mórbidas, de demissão.

Portanto, a busca por um novo modo histórico de política que pode recusar a demissão é urgente. Porque provavelmente seremos derrotados, agora mais do que nunca.

[1] Pautei-me em Rise of the Red Engineers (2008) e em Disenfranchised (2019) de Joel Andreas a fim de apreender as mudanças na dinâmica de classe na recente história chinesa.

[2] A cena é extraída de uma transcrição detalhada de uma reunião entre vários líderes da Guarda Vermelha com Mao e seus aliados em Zhongnanhai, um salão perto de um lago em Pequim que ainda é a sede do Partido Comunista Chinês, das 3:00 às 8:00 em 28 de julho de 1968.

[3] Podemos apenas observar brevemente aqui que foi com a repressão militar do faccionalismo que a pior violência da Revolução Cultural ocorreu. Comparações sensacionalistas da Revolução Cultural à política contemporânea geralmente referem-se às atividades teatrais e, de fato, frequentemente violentas de 1966, porém a comparação ganha muito de sua força aparente com as impressões da escala geral de violência, a qual não é, na verdade, explicada por esses espetáculos. “Isso pode surpreender aqueles cujas impressões da Revolução Cultural são formadas pela leitura de relatos horríveis de crueldade e violência cometidos pelos Guardas Vermelhos e pelos rebeldes em escolas e locais de trabalho”, escreve Walder. Todavia, a evidência, claramente, expõe que a maior parte da violência foi empreendida pelas “forças da ordem”. Esse fenômeno distinto e preocupante, a repressão, que envolve muitos Estados revolucionários, requer uma investigação separada.

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