Sobre Georges Danton

Por François-Alphonse Aulard. Traduzido por Asturig Emil von München, via Scientific Socialism

“Ora, a insurreição é uma arte, exatamente como a guerra ou qualquer outro tipo de arte. insurreição submete-se a certas regras cuja inobservância conduz à ruína da parte que é por ela responsável. Essas regras – conclusões lógicas, extraídas da essência das partes e das relações com as quais se tem de lidar em um tal caso, – são tão claras e tão simples que a curta experiência do ano de 1848 levou a que os alemães se tornassem bastante familiarizados com elas. (…) Para usar as palavras de Danton, o maior mestre de tática revolucionária conhecido até o presente momento :“De l’audace, encore de l’audace, toujours de l’audace!” (Audácia, mais audácia e ainda sempre mais audácia!)”


I.

TEXTO DOS DISCURSOS DE DANTON

Ao lermos o que resta dos discursos de Danton, estudando nos fatos a influência de sua palavra, podemos entrever  que sua eloqüência foi mais original do que aquela do Conde de Mirabeau, de Maximilien de Robespierre e de Pierre Vergniaud, e perceber que não houve, em toda a Revolução Francesa, maior orador do que esse autêntico homem de Estado.

Porém, sua glória foi, tão logo, obscurecida pelo pouco de cuidado que possuía e, sobretudo, por uma lenda caluniosa à qual recorreram, por emulação, monarquistas, girondinos e robespierristas: todos os vícios, todos os erros, todas as vilezas foram atribuídos, até os nossos dias, a esse vencido e, para desflorar o homem de 10 de agosto, a mentira usurpou uma ousada precisão.

Nicolas Villiaumé, o primeiro, em 1850, opôs a essa lenda alguns fatos. Depois, veio Alfred Bougeart, que escreveu todo um livro para reabilitar Danton. Mas, o seu mau estilo prejudicou seus argumentos. É a Jean-François-Eugène Robinet que se imputa a honra de ter encontrado e reunido, com método, documentos irrecusáveis, dotados de autenticidade clamorosa e, às vezes, notarial, próprios a estabelecer a certeza nos espíritos mais meticulosos.

Seria necessário um volume inteiro apenas para esboçar a biografia de Danton – tal qual a crítica acaba de a renovar – para dar a conhecer, ainda que sumariamente, o homem, o político e o orador.

Esse grande tema instiga-nos, desde muito tempo. Mas, em uma história geral da eloqüência parlamentar, não podemos senão indicar os principais pontos, fixando alguns dos caracteres dessa palavra, onde toda a Revolução revive.

A primeira observação a ser feita – e esta explica o caráter equívoco da reputação oratória de Danton – é que seus discursos foram reproduzidos de uma maneira ainda mais defeituosa que aqueles de seus rivais.

Esse orador que jamais escrevia e nem mesmo possuía – como dizia – correspondência privada, entregava-se, inteiramente, à inspiração do momento presente. Nem suas frases nem mesmo a ordem de suas idéias não eram fixadas em seu espírito, quando se punha a falar, tal como o prova o arrebatamento imprevisto de quase todas as suas aparições na tribuna e o perpétuo desafio que suas alocuções públicas parecem opor a essas regras da retórica clássica.

Danton era um improvisador, no sentido forte do termo, tanto no fundo quanto na forma, ao ponto de não possuir nenhum cuidado com a sua reputação, junto à posteridade.

Também não acredito que exista uma única opinião de sua autoria, impressa por ordem da Convenção Nacional. A propósito da maneira segundo a qual os jornais reproduziam suas palavras, Danton não se pertubava absolutamente, não se incomodando em as retificar : toda a sua atenção estava reservada para a política ativa e seus raros lazeres, absorvidos pela vida familiar.

Ninguém jamais foi mais indiferente em face dessa glória literária, tão fortemente apreciada por seus contemporâneos, considerando desde Dominique Garat a Maximilien de Robespierre.

Hoje, sofremos por causa dessa negligência. Seus discursos, dirigidos particularmente aos Jacobinos, foram, por muito tempo, resumidos em algumas linahs secas e obscuras e, muito freqüentemente, em estilo indireto, tão indigente e tão infiel, pelo jornal do Clube Jacobino.

Posteriormente, o Journal de la Montagne (EvM.: Jornal da Montanha) que reproduziu tão prazeirosamente os discursos de Robespierre, pune com excessiva brevidade as mais importantes arengas de seu fogoso rival.

Um dos principais discursos de Danton, aquele de 21 de janeiro de 1793, foi enormemente mutilado pelo Moniteur (EvM.: Monitor): dele não se encontra uma transcrição desenvolvida senão no Logotachygraphe (EvM.: Logotaquígrafo) e no Republicain français (EvM.: Republicano Francês).

O seu Discurso sobre Marat de 12 de abril de 1792 é apenas reproduzido, em detalhes, pelo Logotachygraphe (EvM.: Logotaquígrafo). As últimas palavras que Danton pronunciou na tribuna da Convenção Nacional são estranhamente desnaturadas pelo Moniteur (EvM.: Monitor). Tão somente o Republicain français (EvM.: Republicano Francês) deu-se ao trabalho ou teve a coragem de apor uma ordem clara nesse discurso.

Em 26 de agosto de 1793, nos JacobinosDanton pronunciou uma longa apologia pessoal onde, a propósito de seu segundo casamento, prestava contas de sua fortuna, de modo a fazer-se aplaudir pelo mais desconfiado dos ouvintes: disso os jornais publicaram apenas uma análise insignificante.

Podemos verificar, nas alocuções de Pierre Vergniaud, os progressos de sua educação oratória: a incúria de Danton deixou no esquecimento sua obra de advogado. Contudo, alguns de seus memoriais judiciários foram encontrados. Mas, não se publicou nenhum de suas perorações.

Eis uma lacuna ainda mais séria na coleção dos discursos de Danton: não dispomos do discurso que foi, sem dúvida, sua obra maior, considerando os efeitos que ela produziu, a saber sua defesa perante o Tribunal Revolucionário.

O oficioso Bulletin (EvM.: Boletim) alterou-o, reduzindo-o a algumas frases incoerentes, e as notas de Topino-Lebrun, que fazem aparecer essas alterações, ao retificá-las em mais de um ponto capital, são demasiadamente informes, para nos permitir restituir o texto verdadeiro.

Os detalhes que possuímos sobre essa tragédia depõem o bastante sobre o milagre de eloqüência com que o tribuno Danton supreendeu os ouvidos partidários e maldosos. O presidente tentou sufocar, com sua sineta, a voz do acusado, tal como Jacques-Alexis Thuriot de la Rozière sufocou, em 9 Thermidor, a voz de Robespierre: não chegou a fazê-lo.

Um contemporâneo de Danton escreveu da seguinte forma:

“Um cidadão que foi testemunha dos debates relatou-nos que Danton provocava tremores nos juízes e nos jurados. Abafou, com sua voz, a sineta do Presidente. Este disse-lhe, então: “Mas, você não consegue ouvir a sineta? – Presidente, respondeu-lhe Danton, a voz de um homem que tem de defender a sua vida e a sua honra deve vencer o barulho da sineta.”

Durante os debates, o público murmurava. Danton exclamou:

“Povo, você há de me julgar, depois de ter dito tudo. Minha voz não deve ser apenas ouvida por você, mas também por toda a França.”

Essa voz sobre-humana se fazia ouvir pelas janelas, junto às massas aglomeradas no cais do Rio Seine, comovendo-as. O auditório no interior do tribunal, composto de almas duras e hostis, robespierristas, monarquistas ou indiferentes, não pôde, porém, resistir à visão do homem, ao som de sua voz, à verdade de suas razões. Rebentou em aplausos, devendo o presidente do tribunal retirar a palavra a Danton e exigir a proclamação de uma lei particular voltada contra ele.

É possível crer que a eloqüência houvera obtido até então um triunfo mais surpreendente? E que perda irreparável aquela envolvendo o discurso supremo de Danton!

Por mais que seja tão incompleta e tão mutilada essa obra oratória, tal era a força das fórmulas de Danton, tal era a vida de seu estilo que muitas de suas frases incrustaram-se na memória indiferente ou hostil dos relatores taquígrafos e, assim, chegaram até nós, quase a despeito deles, em sua beleza original.

II.

O CARÁTER E A EDUCAÇÃO DE DANTON

Sobre o homem Danton mesmo, passemos do modo mais rápido possível, e digamos com que traços precisos a crítica substituiu a lendária caricatura, segundo a qual Danton, parecia crapuloso, venal e ignorante.

Danton possuía, seguramente, uma natureza enérgica, violenta mesma, cuja exuberância fogosa surpreendia à primeira vista. Mas, essa veemência conhecia a si mesma, moderava-se, ponderava-se, se necessário fosse e, finalmente, voltava-se sempre para o bem.

Desde muito tempo, Danton havia aprendido a se disciplinar e tornar-se mestre de suas paixões. Nisso, sua mãe – e depois sua mulher – havia-o, sem dúvida, ajudado. Porém, foi sobretudo sua própria vontade, esclarecida e fortificada pelas recordações escolares dos grandes romanos  e pelas lições de filosofia, que operara essa reforma maravilhosa.

Ao entreverem sua figura devastada,  ao ouvirem seu discurso, às vezes brusco, ao perceberem sua alegria freqüentemente gálica, observadores superficiais ou partidários imaginavam diante de si um fanfarrão grosseiro, devasso, crapuloso. Nada de mais falso do que essas suposições: era um homem de família e do lar, com pureza e modéstia, sem que nele se reconhecesse outro amor além daquele nutrido por sua mulher, sem que possuísse outros prazeres além daqueles que divida com os seus familiares.

Cumpre acrescentar que, bom camarada no colégio, permaneceu assim sendo durante toda a sua vida com os seus amigos. Possuía o culto da amizade e o dom tão precioso da cordialidade. Sua felicidade era reunir, em sua mesa, seus condiscípulos, seus companheiros de luta. Seu grande coração abria-se para os sentimentos ainda mais amplos: amava seus concidadãos, a visão do povo o alegrava.

Durante as breves estadias que realizou em Arcis, em sua casa natal que dava para a praça principal da cidade, gostava de jantar, com as janelas abertas,  à vista de todos, não por ostentação, mas por bonomia e fraternidade. Longe de odiar seus inimigos, não lhes podia guardar rancor: tinha sempre a mão estendida para aqueles que o insultavam do modo mais grave possível, fossem girondinos, fossem robespierristas. Não via senão a pátria, a humanidade. Os outros o compreendiam mal. Procuravam interpretar esse patriotismo, esquecido das injúrias, com cálculos de baixo nível. A verdade emergiu apenas mais tarde. Em 1829, alguém disse a Pierre Royer-Collard que havia conhecido Danton, mas que não apreciava sua política : “Parece que Danton possuía bom caráter.” “O Senhor diz isso com magnanimidade!”, exclamou o doutrinador frio, com uma certa forma de entusiasmo.

Dizem que Danton corrompeu a sua consciência e se vendeu à Corte Monárquica. Importa refutar essa acusação que faz de Danton um declamador. Onde tomou emprestado – diz-se por aí – os 71.000 francos com os quais pagou seu cargo de advogado do Conselho?  Eis onde os tomou emprestado: graças a uma hipoteca de 90.000 libras que suas tias lhe concederam sobre os seus bens. Pôde obter crédito lealmente de diversas pessoas, em particular de seu futuro sogro. Mas, no dia de seu casamento, recebeu, em espécie, a metade do dote de sua mulher, vale dizer 20.000 francos. Possuía 15.000 francos em dinheiro, provenientes de um resto de patrimônio e 12.000 francos em terras. Total: 47.000 francos. Restava-lhe encontrar 24.000 francos para se libertar completamente. Ora, pagou seu ofício em diversas parcelas e seu último pagamento não ocorreu senão dois anos depois de ingressar em suas funções, em 3 de dezembro de 1789. Pôde economizar essa soma em dois anos e meio, com base no rendimento anual de seu cargo que todo o mundo avalia em cerca de 25.000 francos? Em outros termos, com os 72.000 ou 73.000 francos que ganhou nesses trinta e dois meses, foi capaz de, com seus gostos simples, economizar 24.000 francos? Levantar essa questão já não que dizer solucioná-la?

Os que desejam, a todo custo, que Danton seja um homem desonesto afirmam que, em 1791, por ocasião da supressão desses ofícios de advogados do Conselho, foi reembolsado por duas vezes: uma primeira vez, pela nação, legalmente. Uma segunda, pelo Rei, secretamente. Certamente, o Rei teria muito mal investido o seu dinheiro, pois que Danton não deixou de agir como um autêntico revolucionário.

Porém, objeta-se que, à infâmia desse mercado escandaloso, Danton pôde acrescentar o labéu de faltar com a palavra na relação mantida com seu corruptor. E sobre que base o acusam dessa perfídia? Sobre a base de que comprou alguns bens nacionais. Porém, quando foi reembolsado com os 71.000 francos que seu cargo lhe havia custado, não possuía dívidas e podia, de fato, ter realizado economias na base dos 50.000 francos que ganhou durante os dois últimos anos em que foi advogado do Conselho. Eis, portanto, as despesas de Danton explicadas e controladas. Esses argumentos já foram ditos. Mas, a paixão política nada quer ouvir.

Nas obras de póstumas de Pierre Louis Roederer, há dois fragmentos sobre Danton. Depois de tê-lo tratado como buldogue e crápula, Roederer acrescenta esse traço bem natural, formulado por um pedante : “Sem instrução!” Pelo contrário, Danton havia realizado bons estudos clássicos na cidade de Troyes, em um estabelecimento laico, cujos alunos freqüentavam os cursos do Colégio da Congregação Religiosa Oratoriana.

Seu amigo Rousselin e seu camarada Béon deixaram-nos detalhes curiosos sobre esses anos escolares.

Béon afirma o seguinte:

Danton preferia, a todo outro tipo de leitura, aquela referente à Roma Republicana. Treinava a si mesmo na busca de expressões enérgicas, com contornos audazes, elaborando expressões novas, pois que amava afrancesar as palavras latinas, nas traduções a serem feitas de Titus Livius e de outros historiadores romanos.”

Rousselin acrescenta que as amplificações de Danton continham sempre alguns traços salientes e originais que provocamvam aplausos de seus colegas e de seu professor:

“Toda a classe esperava, com impaciência, o professor designar Danton para que este mesmo lesse suas composições.”

Obteve em retórica o prêmio do discurso francês para narração e versão latina.Dessa bagagem clássica, à qual se atribuía então tantos prêmios, Danton possuía, pois, tudo aquilo que cumpria possuir. Sua escolaridade havia sido a mesma que a do Conde de Mirabeau, Camille Desmoulins, Pierre Vergniaud, Maximilien de Robespierre e a dos mais letrados entre os homens da Revolução.

Não foi apenas no colégio que Danton aprendeu o latim, cujo conhecimento surgia perante o espírito ultra-clássico dos Jacobinos como condição indispensável para o exercício da palavra e da ação política.

Acerca do tema, Robinet assinala o seguinte:

“Seu sobrinho, Marcel Seurat, recorda que seu tio, Danton, falava, com prazer, essa língua, seguindo o hábito dos homens letrados de seu tempo, notadamente com o Dr. Senthex que se ligou profundamente a ele e o acompanhava freqüentemente à cidade de Arcis.”

Rousselin conta até mesmo sobre esse tema uma anedota característica:

“Quando Danton comprou seu cargo de advogado do Conselho, seus colegas, sem o terem avisado de antemão, pediram-lhe, à queima-roupa e por amabilidade, para perorar “sobre a situação moral e política do país em suas relações com a Justiça”, improvisando, na hora, esse discurso em língua latina. Tratava-se – tal como o próprio condecorado disse mais tarde – de propor-lhe marchar sobre o carvão ardente, mas não recuou absolutamente e avivou, com seu sopro já poderoso, as velhas formas que lhe impunham:

“Disse que, como cidadão amigo de seu país e também como membro de uma corporação consagrada à defesa dos interesses privados e públicos da sociedade, desejava que o Governo muito sentisse a gravidade da situação para proporcionar remédios através de meios simples, naturais e retirados de sua autoridade. Em presença das imperiosas necessidades do país, cumpria resignar-se e sacrificar-se. A nobreza e o clero que se encontravam de posse das riquezas da França deveriam dar o exemplo. Quanto a ele, não podia entrever, na luta do Parlamento,  então a ponto de rebentar, senão o interesse de alguns particulares, sem nada, porém, estipular em benefício do povo. Declarou que, aos seus olhos, o horizonte parecia sinistro e sentia aproximar-se uma terrível Revolução. Se a pudéssemos fazer recuar em trinta anos, esta se faria de modo amável, pela força das coisas e o progresso das luzes. Repetiu em seu discurso que se assemelhava aos gritos proféticos de Cassandra : “A desgraça para aqueles que provocam as Revoluções, a desgraça para aqueles que a fazem.”

Os jovens advogados, vigorosamente afiados pelo colégio, compreenderam e se alegraram. Os velhos haviam captado, de passagem, palavras inquietantes, tais quais motus populorum (EvM.: o movimento popular), ira gentium (EvM.: a ira das gentes), salus populorum (EvM.: a saúde popular), suprema lex (EvM.: a lei suprema). Desconfiados, exigiram de Danton que escrevesse e entregasse essa declamação, tanto sediciosa quanto ciceroniana. Mas, já então, Danton não redigia nem queria escrever. Propôs de repetir sua alocução, para que melhor pudessem o julgar.

Segundo Rousselin:

“O remédio foi pior que o mal. O areópago entendeu que já era o bastante o que haviam ouvido e a maioria se opôs, com vivacidade, à repetição.”

Mas, foi apenas por malícia  e por confusão que, nesse dia, o futuro orador besuntou-se com latim. Certamente, os Diafoirus de Molière não faltaram na Revolução. Danton lhes deixou com suas caretas e seu culto pueril, prestado à Antigüidade escolástica. Assumiu a atitude de um homem moderno, livremente voltado para o futuro, não sem tradições, mas sem pedantismo, que se serve do passado e dele se aproveita, sem sofrer com a sua camisa-de-força retrógrada. Danton pertence ao seu tempo. É tão livre de pensamento e tão despojado da escolástica quanto o fabuloso aluno de Rabelais.

Durante toda sua primeira infância, parece ter sido formado ainda mais pelos exercícios físicos do que pelos intelectuais, tal como imaginara Jean-Jacques Rousseau,  e ao abandonar o colégio, pôde dizer como esse outro: “Amo muito os antigos, mas não os adoro.”

Deixando para trás a escola, quis ser francês. Acima de todos os poetas, amou Pierre Corneille, no qual tem prazer em avistar um precursor da Revolução.

Em 13 de agosto de 1793, afirmou, na tribuna da Convenção Nacional :

 “Corneille redigia epístolas dedicatórias, em Mountauroux, mas Corneille havia feito le Cid, CinnaCorneille havia falado em língua romana e aquele que dissera “Para ser um mais do que um rei, deves acreditar que és algo” era um verdadeiro republicano.

Sobre suas leituras francesas de DantonRousselin fornece detalhes precisos. Em Paris, cursando Direito, mas preso à cama em razão de uma longa convalescença, quis ler e leu toda a Encyclopédie (EvM.: Enciclopédia de Diderot e d’Alembert). Desnecessário dizer que se nutria – tal quais todos os seus contemporâneos – de Rousseau, Voltaire e desse Montesquieu, do qual dissera : “Possuo apenas um lamento que é o de reencontrar no escritor que vos conduz tão longe e tão alto, o presidente do Parlamento.” E, contudo, esse espírito tão pouco acadêmico de Danton, era bastante flexível para degustar até mesmo as graças acadêmicas de Buffon, de quem sua poderosa memória retinha páginas inteiras.

Mas, o que melhor caracteriza o giro que Danton quis imprimir à sua cultura intelectual, é a composição de sua biblioteca, cujo catálogo Jean-François-Eugène Robinet publicou, segundo o inventário do ano de 1793. Quase nenhum autor da Antigüidade Clássica não se encontrava no original, mesmo que Danton fosse capaz, como vimos, de compreender no mínimo os autores latinos. Aí se encontravam dois Virgílios, um italiano por Caro, o outro inglês por Dryden. Ali estava um Plutarco, em inglês, um Demóstenes, em francês. Não foi o acaso, certamente, que presidiu a essa escolha de livros, além disso, pouco numerosos. Verificamos suas preferências pelo gênero humorístico, uma fantasia pessoal e anti-pedante, sobretudo um vivo sentimento pela modernidade francesa e estrangeira.

Sabia e falava inglês, essa língua da política, indispensável ao homem de Estado, tão familiar a Robespierre e a Brissot. É um inglês que conversa – segundo Riouffe – com Thomas Peine. Em sua biblioteca, tem à sua disposição Shakespeare, Alexander Pope, Jonathan Richardson, William Robertson, Samuel Johnson, Adam Smith, em texto redigido em língua inglesa. Por um capricho do mesmo gosto, tem também a tradução inglesa de Gli Blas. E não se deve crer que no fim do século XVIII, essa aglomania literária fosse tão freqüente como a anglomania sumptuária ou política que corria as ruas.

Ao lado de François Rabelais – que sua época praticamente não lia -, Danton havia colocado alguns livros italianos rigorosos escolhidos. Nesse sentido, Rousselin afirma:

“Desprezando inteiramente a literatura frívola e jamais havendo lido romances que não fossem as principais obras consagradas, verdadeiras pinturas dos costumes, Danton aprendeu, concomitantemente, o bastante de língua italiana para ler Torquato TassoLudovico Ariosto e mesmo Dante Alighieri.”

Manuel Seurat acrescentou que – segundo Robinet –  Danton falava freqüentemente italiano com a sua sogra, Madame Soldini-Charpentier, cujo idioma era sua língua materna.

Eis aí a variedade original que esse suposto ignorante teve a argúcia de agregar ao seu saber.

III.

INSPIRAÇÃO ORATÓRIA DE DANTON

Investiguemos qual foi a inspiração oratória de Danton, i.e. a que idéias religiosas, filosóficas e políticas aderia o conjunto de seus discursos.

Se Robespierre se equivocava, querendo – em conformidade com Rousseau – criar uma religião do Estado, teve razão em colocar, no primeiro plano de sua política, a solução das questões religiosas. Seu erro mesmo atesta que entrevia a verdadeira dificuldade da Revolução e que o desate, bom ou mau, dependeria da atitude tomada em relação às religiões.

Danton não parecia preocupar-se com esse grande problema e não tinha, propriamente falando, política religiosa. Seus panegiristas fazem de Danton, mas sem provas, um discípulo de Diderot. Era Danton um deliciado ateu, como o foi, afirma-se, André Chénier? Não, esses libidinosos da razão satisfeita ou desgarrada e do pensamento que se especialmente exerce foram estranhos a esse francês ativo e feliz de viver.

Danton filosofa tão somente em sua crise final, em face da morte, e, aí, em uma palavra clara, proclama, com segurança, seu sentimento: “Em breve, minha morada será no nada .. “, disse Danton ao Tribunal Revolucionário e, no início de sua defesa, retoma esta lapidar profissão de fé: “Disse-o e repito-o: “Meu domicílio será, em breve, no nada e meu nome, no Panthéon”.

Essa orgulhosa confissão não deve ter aliviado, em parte, a consciência do verdadeiro assassino de Danton, desse Robespierre, inquisidor do Deus de Jean-Jacques? Evidentemente, pôde afirma para si mesmo que sua vítima não era ortodoxa.

É provável que Danton atribuísse apenas uma importância secundária àquilo que preocupava tão fortemente o seu rival. Parecia querer ignorar as relações existentes a religião e a política, por desdenho filosófico ou por impotência natural. Quando essa questão se apresenta, posterga-a sistematicamente. Assim, em 25 de setembro de 1792, responde a Pierre-Joseph Cambon, o qual havia proposto a redução do soldo pago ao clero:

“Por uma moção de ordem, reivindico, a fim de que não vos lançais em uma imensa discussão, que distinguais o clero em geral dos padres que não quiseram ser cidadãos. Ocupai-vos com o reduzir o soldo desses traidores que engordavam a custa do suor do povo e postergai essa grande questão até um outro momento. (Aplausos)”.

No 30 de novembro subseqüente, opôs-se à supressão do salário dos padres, alegando o seguinte: “Abalaremos a França com a aplicação demasiadamente precipitada dos princípios que acalento, mas para os quais o povo e, sobretudo, aquele povo dos campos, não se encontra ainda maduro.”

E, com uma atitude inteiramente girondina, afirma seu livre pensamento, declarando, concomitantemente, a religião provisoriamente útil ao povo, assinala:

“Apoiamo-nos sobre idéias filosóficas que me são caras, porquanto não conheço outro bem senão aquele do universo, outro culto senão aquele da justiça e da liberdade … Quando vocês tiverem, por algum tempo, oficiais de moral que farão penetrar a luz nas palhoças, então será bom falar ao povo sobre moral e filosofia. Mas, até lá, é bárbaro, é um crime de lesa-pátria subtrair ao povo os homens nos quais pode encontrar alguma consolação.”

Quando se intentou uma solução radical, quando os hébertistas quiseram dar continuidade a Voltaire, destroçando o cristianismo pelo ridículo, Danton acolheu mal essa tentativa, ao falar com mau humor contra essas “mascaradas anti-religiosas”, onde não via senão uma infração às convenções parlamentares. No 6 Firmário do Ano II, afirma:

“Existe um decreto que determina que, os padres que abdicarem, apresentarão sua renúncia ao comitê. Exijo a execução desse decreto, pois que não duvido que venham, a seguir, abjurar da impostura. Não se deve tanto entusiarmar-se com os passos das pessoas que nada fazem senão serem arrastados pela torrente. Não nos queremos extasiar com ninguém. Se não honramos o padre pelo erro e pelo fanatismo, também não o faremos pela incredulidade: queremos servir ao povo. Exijo que não esteja mais exposto a mascaradas anti-religiosas, no seio da Convenção. Que os indivíduos que quiserem depositar sobre o altar da pátria os despojos da Igreja disso não mais façam nem um jogo nem um troféu. Nossa missão não é de receber, sem cessar, deputações que sempre repetem as mesmas palavras. Existe um limite para tudo, mesmo para as felicitações. Reivindico que erijamos uma barreira a isso.”

Aqui, a redondeza e a franqueza de linguagem mal escondem a incerteza do pensamento. Na falta de idéias pessoais sobre o problema religioso, Danton propende, aparentemente, no sentido dos sentimentos de Robespierre. No mesmo dia, sua desenvoltura em tomar partido bem concebido sobre esse ponto leva-o a se pronunciar contra as tendências que manifestará no Tribunal Revolucionário, aceitando, oficialmente, a crença no Ser Supremo. Que queremos dizer com aceitar? Foi ele, Danton, o primeiro a propor a religião do Estado, sonhada por Robespierre e, em um instante de impotência moral ou devido a uma tática parlamentar verdadeiramente por demais complicada, fez-se o intérprete das concepções místicas de seu adversário.

Sim, dezesseis dias depois da Festa da Razão, onde certos dantonistas haviam empregado o mesmo zelo que os hébertistas, quando os ecos do hino filosófico soava ainda em Notre-DameDanton, sob o pretexto de dar uma centralidade à instrução pública, exigiu que o povo pudesse se reunir em um vasto templo, ornado e alegrado pelas artes, acrescentando o seguinte:

“O povo terá festas nas quais oferecerá incenso ao Ser Supremo, ao mestre da natureza, visto que não quisemos eliminar a superstição para estabelecer o reino do ateísmo.”

E, com visível embaraço, louvou a influência das Festas Nacionais e os bons efeitos da instrução pública, em termos que contradiziam à sua proposta jacobina de organizar uma religião do Estado deísta, em termos em que se houvessem dito terem sido tomadas emprestadas de Diderot ou de Condorcet.

Houve, então, entre os dantonistas, que não compartilhavam desse ambiente íntimo, um instante de assombro, de estupor. Jacques-Alexis Thuriot, com base em cuja moção a Convenção Nacional havia assistido à Festa da Razão, fingiu não ter ouvido a moção robespierrista de seu amigo, dizendo: “Mas, o que reivindica Danton está feito. O Comitê de Instrução Público é encarregado de lhes apresentar visões sobre essa matéria.” E fez colocar na ordem-do-dia de uma próxima sessão o debate sobre a organização da instrução pública.

Quando à proposta de Danton, esta foi remetida ao Comitê, sem especificar que se tratava do culto do Ser Supremo ou da comemoração das Festas Nacionais. Foi assim que os dantonistas fizeram fracassar a intriga tão hábil de Robespierre, reparando a impotência de seu chefe. Ocorreu, ao que parece, um incidente vivo e grave, em que é necessário entrever não uma ato de hipocrisia de Danton, mas essa incapacidade religiosa que lhe foi tão duramente reprovada por Edgar Quinet.

A metafísica – tal como se dizia então – não era menos estranha à política de Danton do que as idéias religiosas. É bem dizer que não ataca príncipios. Permitia a Robespierre predicar, a seu bom grado, o Evangelho de Jean-Jacques Rousseau, não aparentando acreditar em verdades sociais como tampouco no deísmo, do qual essas verdades eram para Robespierre a conseqüência natural. As idéias morais, tais quais as compreendiam os adeptos do Contrato Social, não inspiraram, em nenhuma parte, sua eloqüência. Danton não catequizava jamais. Apenas da experiência extraía suas concepções e seus conselhos. Seu empirismo era muito bem elaborado para agradar aos nossos modernos positivistas.

Estes, porém, exageram: se a eloqüência de Danton não houvesse jamais decorrido senão de fatos tangíveis ou demonstráveis, não teria influenciado seus contemporâneos. Danton rechaçava – tal como admito – Deus e a imortalidade da alma : mas, tal como se crê na religião, era uma crente de instinto nas duas divindades incontestadas da Revolução : a Justiça e a Pátria.

São as duas idéias indemonstráveis, graças às quais sua eloqüência tocava os corações, impelindo os seres humanos ao único gênero de ação que uma filosofia utilitarista não pode aconselhar : o sacrifício. Ele mesmo encontrava-se disposto a dar sua vida pelo sucesso da Revolução, ao não acreditar em estar promovendo um mercado de enganos, embora não esperasse nenhum salário ulterior.

Danton possuía certas crenças desarrazoadas, contrárias ou superiores ao bom senso, mediante as quais reaquecia sua palavra, fazendo germinar nas almas o entusiasmo e o gosto dessa generosidade absurda e divina que conduz nossos pais a morrer por esta abstração, a Pátria, e por esta quimera, a Justiça.

Assim, os robespierristas caluniavam esse justo e esse patriota, quando o acusavam de não acreditar absolutamente na moral. Danton, também ele, possuía uma moral: sem moral, teria podido fazer-se ouvir pelo povo que, reunido, não compreendia a língua do interesse? Porém, essa moral de Danton – mais sumária que aquela de Robespierre – reduzia-se a um duplo postulado, acerca do qual evita mesmo de dissertar. Robespierre, do alto da tribuna, reflete sobre sua própria moral, professa-a, predica-a, não acreditando em ser um pedante. Danton constata, em si mesmo e junto a outros, a existência de dois sentimentos dos quais falamos, deles retirando sua inspiração, a labareda de sua eloqüência, sem procurar as demonstrar ou mesmo explicar.

Se já os princípios diferem nesses nos dois oradores, seu objetivo não é também o mesmo. Robespierre – à guisa de Rousseau – sonha com a moralização do mundo. Danton não possui essas pretensões ambiciosas: não procura reformar o homem interior, senão cercar seus concidadãos das melhores condições materiais para viverem com liberdade, igualdade e fraternidade. Não tende a violentar o gênio da nação francesa e a transformar Atenas em Esparta, como se dizia então. Antes, aconselharia a raça francesa a abundar em seu  sentido próprio, de desenvolver suas qualidades hereditárias, demonstrando-se feliz em consonância com seu próprio caráter. Todavia, não acreditava que os governantes tivessem tarefa espiritual nem que os deputados da Convenção Nacional fossem professores de moral. (…)

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