Sobre o conhecimento da arte (resposta a André Daspre)

Por Louis Althusser, via Universidad Nacional de Colombia, traduzido por Reginaldo Gomes

Esta “Carta sobre o conhecimento da arte (resposta a André Daspre)” foi publicada no n.º 175 da Nouvelle Critique (abril de 1966) em um conjunto intitulado “Duas cartas sobre o conhecimento da arte”. Ela deve ser situada no contexto do debate sobre o humanismo suscitado pelas publicações dos artigos de Althusser: “Marxismo e humanismo” e “Nota complementar sobre o ‘humanismo real'”, ambos retomados em Por Marx [Pour Marx]. A discussão começa por uma carta de André Daspre, então professor de francês no liceu de Toulon, que posteriormente lecionaria na Universidade de Nice e publicaria vários livros sobre Roger Martin du Gard. Embora reconheça o rigor da distinção feita por Althusser entre ciência e ideologia, André Daspre recusa qualquer assimilação da arte a uma simples região da ideologia e busca mostrar que a arte nos dá um conhecimento do mundo que não é nem superior nem inferior ao conhecimento científico, mas simplesmente diferente dele. Questionado sobre esse ponto, André Daspre nos confirmou que nos debates que o Partido Comunista Francês estava atravessando na época, ele estava mais próximo de Aragon e Roger Garaudy, símbolos, aos olhos dele, da vontade de abertura do PCF. O título, “Carta sobre o conhecimento da arte”, não vem de nenhum dos dois autores dessas cartas, mas da redação de La Nouvelle Critique. Sejam quais forem suas imperfeições, achamos melhor mantê-las. Os arquivos de Althusser não contêm nenhum vestígio material dessa troca de cartas.

A Nouvelle Critique me transmitiu seu texto. Permita-me, se não responder a todas as questões que levanta, ao menos acrescentar algumas observações às suas, seguindo a linha de sua própria reflexão?

Em primeiro lugar, você deve saber que estou perfeitamente consciente do caráter muito esquemático que tem meu artigo sobre o humanismo. Como você bem viu, ele possui o inconveniente de dar uma ideia “massiva” da ideologia, sem entrar na análise dos detalhes. Dado que ele não se refere a arte, compreendo que possa ser colocada a questão de saber se a arte deve ou não ser incluída como tal dentro das ideologias e mais precisamente se a arte e a ideologia são uma só e mesma coisa. Parece-me que foi assim que você se sentiu tentado a interpretar meu silêncio.

O problema das relações entre a arte e a ideologia é um problema muito complexo e muito difícil. No entanto, posso lhe dizer em que sentido orientamos nossas investigações. Eu não incluo a arte verdadeira entre as ideologias, embora a arte mantenha uma relação muito particular e específica com a ideologia. Se você quiser ter uma ideia dos primeiros elementos desta tese e dos muito complexos desenvolvimentos que apresenta, o aconselho que leia cuidadosamente o artigo que Pierre Macherey consagrou à “Lênin crítico de Tólstoi” [Lénine critique de Tolstoï] em La Pensée (n.º 121, de 1965). É claro que tal artigo não é senão o começo, mas coloca bem o problema das relações da arte com a ideologia e a especificidade da arte. Nesta direção orientamos nossos trabalhos e esperamos publicar estudos importantes sobre este tema dentro de alguns meses.

Este artigo lhe dará igualmente uma primeira ideia da relação entre arte e conhecimento. A arte (falo da arte autêntica e não das obras de nível médio ou medíocre), não nos dá em sentido estrito um conhecimento; não substitui, pois, o conhecimento (no sentido moderno, conhecimento científico), mas o que nos dá tem, no entanto, uma certa relação específica com o conhecimento. Tal relação não é uma relação de identidade, mas uma relação de diferença. Deixe-me explicar. Creio que o que é próprio à arte é “fazer-nos ver“, “fazer-nos sentir” algo que faz alusão à realidade. Se tomarmos o caso do romance, Balzac ou Soljenítsin, já que você os cita, fazem-nos ver, perceber (e não conhecer) algo que faz alusão à realidade.

Há que se tomar em sentido estrito as palavras que compõem esta primeira definição provisória para evitar cair em uma identificação entre o que nos dá a arte e o que nos dá a ciência. O que a arte nos faz ver, o que nos dá na forma do “ver“, do “perceber” e do “sentir” (que não é a forma do “conhecer“), é a ideologia da qual nasce, na qual se banha, da qual se destaca como arte e à qual faz alusão. Macherey mostrou isso muito bem no caso de Tolstói, ao prolongar as análises de Lênin. Balzac e Soljenítsin dão uma “visão” da ideologia da qual sua obra não deixa de fazer alusão e da qual não cessa de se alimentar; uma visão que supõe um recuo, um distanciamento interior em relação à própria ideologia da qual surgiram seus romances. Fazem-nos “perceber” (e não conhecer), em certa forma desde dentro, mediante um distanciamento interior, a própria ideologia na qual foram produzidos.

Essas distinções, que não são meras nuances, mas diferenças específicas, deveriam, em princípio, permitir resolver um certo número de problemas.

Em primeiro lugar, o problema das “relações” entre a arte e a ciência. Nem Balzac nem Soljenítsin nos proporcionaram um conhecimento do mundo que nos descrevem; eles apenas nos fazem “ver”, “perceber” e “sentir” a realidade da ideologia desse mundo. Quando falamos de ideologia devemos saber que a ideologia se resvala por todas as atividades dos homens; que é idêntica à própria “experiência” da existência humana; por essa razão, a forma em que uma ideologia nos “faz ver” no grande romance tem por conteúdo a “experiência” dos indivíduos. Essa “experiência” não é um dado, um dado de uma “realidade” pura, mas a “experiência” espontânea da ideologia em sua relação própria com o real. Esta observação é importante porque nos permite compreender que a arte não tem que lidar com uma realidade que lhe é própria, com seu domínio próprio da realidade cujo monopólio ela teria (o que você tende a dizer quando afirma que “com a arte o conhecimento se torna humano”, que o objeto da arte é “o indivíduo”), enquanto a ciência teria a ver com um outro domínio da realidade (ou seja, em oposição à “experiência” e ao “indivíduo”: a abstração das estruturas). A ideologia também é objeto da ciência; a “experiência” também é objeto da ciência; o “indivíduo” também é objeto da ciência. A verdadeira diferença entre a arte e a ciência depende da forma específica em que nos dão, de uma maneira completamente diferente, o mesmo objeto: a arte na forma do “ver”, do “perceber” e do “sentir”; a ciência na forma de conhecimento (em sentido estrito: por conceitos).

A mesma coisa pode ser dita em outros termos. Se Soljenítsin nos “faz ver” a “experiência” (no sentido definido acima), de modo algum nos dá o conhecimento do “culto” e de seus efeitos; este conhecimento é o conhecimento conceitual dos mecanismos complexos que terminam por produzir a “experiência” de que fala o romance de S[oljenítsin]. Se eu quisesse falar aqui novamente a língua de Spinoza, diria que a arte nos faz “ver” “conclusões sem premissas”, enquanto o conhecimento nos faz penetrar no mecanismo que produz as “conclusões” a partir das “premissas”. Essa distinção é importante porque permite compreender que um romance sobre o “culto”, por mais profundo que seja, se pode chamar a atenção para os efeitos “vividos” do culto, não pode nos dar sua inteligência; se pode pôr em discussão a questão do “culto”, não pode definir os meios que permitem remediar esses mesmos efeitos.

Da mesma forma, estes poucos princípios elementares talvez nos permitam indicar o caminho no qual podemos esperar encontrar a resposta a outra pergunta que você faz: Como é possível que Balzac, apesar de suas opções políticas pessoais, nos “faça ver” sob uma forma crítica a “experiência” da sociedade capitalista? Não creio que se possa dizer, como você faz, que ele tenha “sido impulsionado pela lógica de sua arte a abandonar em seu trabalho de romancista alguns de seus compromissos políticos“. Pelo contrário, sabemos que Balzac não abandonou jamais suas posições políticas. Sabemos mais ainda: suas próprias posições políticas reacionárias jogaram um papel decisivo na produção do conteúdo de sua obra. Sem dúvida é um paradoxo, mas é assim que é, a história nos oferece numerosos exemplos deste tipo, sobre os quais Marx nos chamou atenção. (A respeito de Balzac lhe remeto ao artigo de R. Fayolle, publicado no primeiro número especial de Europa de 1965). Estes casos de distorção de sentido são muito frequentes na dialética das ideologias. Veja o que Lênin diz sobre Tolstói (cf. artigo de Macherey): a posição ideológica pessoal de Tolstói é parte das causas fundamentais do conteúdo de sua obra. Que o conteúdo da obra de Balzac e Tolstói se “separe” de sua própria ideologia política e que a faça “ver” de certa forma desde fora, faça-a “perceber” mediante um distanciamento interno desta ideologia, pressupõe esta própria ideologia. Certamente se pode dizer que é um “efeito” de sua arte de romancistas produzir este distanciamento interior à sua ideologia, que nos faz “perceber”, mas não podemos dizer, como você faz, que a arte “possui uma lógica própria” que “faz com que Balzac abandone suas concepções políticas“. Pelo contrário, é precisamente porque ele as conserva que pode produzir sua obra; é precisamente porque ele adere à sua ideologia política que pode produzir nela esse “distanciamento” interior que nos dará uma “visão” crítica dela.

Como você vê, para poder responder à maioria das questões colocadas pela existência e natureza específica da arte, somos forçados a elaborar um conhecimento (científico) adequado dos processos que produzem o “efeito estético” de uma obra de arte. Em outras palavras, para responder à questão da relação entre a arte e o conhecimento, devemos elaborar um conhecimento da arte.

Você está muito consciente dessa necessidade. Mas você também deve saber que, sobre este capítulo, estamos ainda muito distantes da meta. O reconhecimento (mesmo político) da existência e da importância da arte não constitui um conhecimento da arte. Tampouco acredito que os textos que você cita, ou mesmo Joliot-Curie, citados por Marcenac, possam ser tomados como uma iniciação ao conhecimento. Para me referir brevemente à frase atribuída a Joliot, ela contém uma terminologia certamente muito difundida (criação estética, criação científica), mas que a meu juízo se deve abandonar e substituir por outra para poder colocar convenientemente o problema do conhecimento da arte. Sei bem que o artista, como o amante da arte, expressa-se espontaneamente em termos de “criação” etc. É uma linguagem “espontânea”, mas de acordo com Marx e Lênin, sabemos que toda linguagem “espontânea” é uma linguagem ideológica e que serve de veículo a uma ideologia, neste caso, da arte e da atividade produtora dos efeitos estéticos. Como todo conhecimento, o conhecimento da arte pressupõe uma ruptura prévia com a linguagem da espontaneidade ideológica e a constituição de um corpo de conceitos científicos para substituí-la. É preciso ter consciência da necessidade desta ruptura com a ideologia para poder empreender a tarefa de constituir o edifício de um conhecimento da arte.

Este é o ponto em que eu me permito expressar uma clara reserva a respeito do que você disse. Talvez eu não me refira exatamente ao que você quer, ou gostaria de dizer; falo do que você efetivamente disse. Quando você opõe “a reflexão rigorosa sobre os conceitos do marxismo” a “algo distinto” e, em particular, ao que a arte nos dá, creio que estabelece uma comparação deficiente ou ilegítima. Visto que, se a arte efetivamente fornece algo distinto do que nos dá a ciência, não há oposição entre eles senão uma diferença. Por outro lado, se se trata de conhecer a arte, há de se começar necessariamente pela “reflexão rigorosa sobre os conceitos fundamentais do marxismo“; não há outro caminho. E quando você diz que “é preciso começar…“, não basta dizer, é preciso fazer. Caso contrário, você pode facilmente sair do apuro com uma cortesia deste gênero: “Althusser propõe retornar a um estudo rigoroso da teoria marxista. Tal coisa me parece indispensável. Permita-me pensar que isso não será suficiente…” É a única crítica que te farei: há uma maneira de declarar “indispensável” tal exigência, que consiste justamente em dispensá-la, em dispensar a ponderação cuidadosa de todas as implicações e consequências, através da cortesia que é feita, para poder passar rapidamente a “outra coisa”… Agora, eu acredito que a única maneira de podermos ter esperança de alcançar um conhecimento real da arte, de aprofundar a especificidade da obra de arte, de conhecer os mecanismos que produzem o “efeito estético” é justamente nos delongando por muito tempo e com a maior atenção aos “princípios fundamentais do marxismo” e não com a pressa de passar para “outra coisa”, porque se se passa muito rapidamente a “outra coisa”, você cai não em um conhecimento da arte, mas em uma ideologia da arte; por exemplo, na ideologia humanista latente, que pode ser induzida pelo que você disse sobre as relações entre a arte e o “humano”, sobre a “criação” artística etc.

Se é necessário recorrer aos “princípios fundamentais do marxismo” (e este trabalho é longo e árduo) para poder pensar corretamente em conceitos que não sejam os conceitos ideológicos da espontaneidade estética, mas sim os conceitos científicos adequados ao seu objeto e, portanto, conceitos necessariamente novos, não é para passar a arte em silêncio ou sacrificá-la à ciência: é simplesmente para conhecê-la e devolver-lhe o que lhe é devido.

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