Damas e Vagabundos: reflexões sobre a arquitetura defensiva

Por Julio d’Avila

A arquitetura é uma das melhores formas de se observar as contradições de uma sociedade. Operando em um regime que conjuga a teoria e a materialidade de forma imediata, ela nos permite perceber a “distância entre intenção e gesto”, isto é, entre aquilo que se projeta e o que se faz, de modo a nos fornecer um retrato cirúrgico de nossas tribulações ideológicas. Em um artigo recente na New Left Review, Monique Sicard aponta que, se quisermos compreender os descompassos e incongruências do projeto europeu, basta olharmos para a sede da União Europeia, em Bruxelas.[i] Os prédios enormes e espelhados, a forma impositiva como eles se projetam e sua semelhança com o que há de mais banal na arquitetura empresarial, mostram um desalinhamento completo entre o ideal de igualdade do sonho europeu e sua brutal iniquidade material. 

Com isso em mente, podemos observar o fenômeno da arquitetura defensiva, tão corrente em nosso país, com outros olhos. A arquitetura defensiva é uma série de mecanismos que impedem um uso diferente do projetado para certos objetos e locais, como os “espinhos” metálicos que impedem que moradores de rua deitem em um banco, ou rua [ii]. Alguns exemplos abaixo:

O próprio termo já vem coberto de fel. Defender-se de algo é reagir a um ataque, proteger-se de uma agressão. A ideia de que um morador de rua dormir em um local não-designado para isso constitui uma agressão é no mínimo peculiar. Mas, posto que essa é mentalidade que sustenta tais projetos, porque não atacar a raiz do problema, ou livrar-se do ser humano desviante em questão? Essa problemática revela com clareza um falso conflito gritante no seio do neoliberalismo: a violência de uma mentalidade empresarial, que não tem olhos para o que não é produtivo, e um humanismo difuso que sustenta a rede de violência mantenedora desse estado das coisas. O conflito é falso porque, longe de se contraporem, precisam um do outro para existir. Sem a maquiagem humanista, o neoliberalismo tem sua face atroz exposta. Sem o neoliberalismo, o humanismo dissimulado exige ação política, pois deixa de ser um paliativo moral e passa a requerer uma prática transformadora. O humanismo de goela oferece um verniz capenga, mas “respeitável”, para nossas contradições cotidianas.

Podemos ver um exemplo claro disso em um artigo de Karl de Fine Licht sobre o assunto [iii]. É um texto fascinante. Menos pelas posições do autor que por suas formas discursivas. Ele rebate, sem perceber o tamanho da confusão que faz, cada crítica à arquitetura defensiva que enumera, usando uma teoria moral e ética diferente em cada caso. Para justificar um aspecto, Kant. Outro, o utilitarismo. Depois, uma terceira, e assim avança. O fato de todas se contradizerem em seus pressupostos e mesmo em seus usos no texto é de pouca importância para o autor. A coerência ética e moral é detalhe, o que importa é sustentar o argumento discursivamente. É um sofismo quase inacreditável, amostra perfeita do discurso que analisamos acima. Em seguida, Licht pede maior pesquisa empírica no assunto, para determinar o próximo passo. No entanto, não fica claro o que exatamente precisaríamos medir. O mal-estar? A saúde mental de pessoas que não estão ali? A satisfação gerada nos donos de propriedades versus o incômodo nos transeuntes? É tudo tão vago que a ingenuidade flerta com a malícia ou simplesmente a desonestidade, no rotineiro bailado de quem se propõe a justificar moralmente a ordem vigente.

Para o sujeito neoliberal, os moradores de rua são o que há de pior na escala dos deploráveis. São os “vagabundos” da pior espécie, inteiramente improdutivos e ativamente inconvenientes, vidas não só sem valor algum como também estorvos diários. No entanto, uma afirmação como essa é custosa à psiquê do sujeito neoliberal, visto que seu sono opera à base de uma ideia de moralidade. O custo subjetivo e público de assumir uma posição desumana é imenso.  Afirmar concretamente que esses sujeitos são imprestáveis e dispensáveis, nos sentidos fortes do termo, é impraticável no nosso discurso, que articula noções de humanidade e bondade sem as quais teríamos que reconhecer o nível de barbárie que fundamenta nossa sociedade.

A questão, então, é posta de outra forma. Não se agride o morador de rua, mas lhe colocamos na posição de agressor. Constrói-se uma defesa, algo “passivo”, que só tem efeito quando o Outro resolve “atacar”, isto é, dormir, por exemplo. Aceita-se o vagabundo como uma figura existente (no geral, “bem longe daqui”), mas seus meios de vida são cada vez mais deteriorados. Criamos uma norma, que permite uma distinção entre os vagabundos que respeitam e os que não respeitam a ordem, e sabe-se lá que destino esses últimos terão, mas sabe-se que o mereceram. E todo esse aparato inumano ganha ares humanizados. Trata-se, enfim, de aplicar uma ambição absolutamente violenta, ancorada na nossa ideologia econômica (mas que não se resume a isso – como bem mostram Dardot e Laval), sob um véu “humanizado” e redefinido em termos que invertem os papéis de vítima e agressor. Enfim, uma amostra tenebrosa do nosso sistema.

Notas

[i] https://newleftreview.org/issues/II123/articles/eutopia

[ii] https://misteriosdomundo.org/15-modos-desumanos-que-as-cidades-usam-para-combater-os-moradores-de-rua/

[iii] https://www.ntnu.no/ojs/index.php/etikk_i_praksis/article/view/2052

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