O Lenin Internacionalista. Autodeterminação e anticolonialismo.

Por Vijay Prashad, via Monthly Review, traduzido por David Lael Barroso Teixeira

Em 1913, Lenin publicava um artigo no jornal Pravda com um título curioso: “Europa Avançada e Ásia Avançada”. A abertura do artigo aceita a natureza paradoxal do título, pois é a Europa, afinal, que avançou suas forças de produção; a Ásia teve as suas forças de produção estagnadas. O caráter de ‘avanço’ ou ‘atraso’ para Lenin não apenas gira em torno da questão do desenvolvimento tecnológico e econômico; tem a ver, essencialmente, com a natureza da luta de classes.

Na Europa, escreve Lenin, a burguesia estava exausta. Ela não mais possuía a capacidade revolucionária com a qual combateu a ordem feudal; apesar de que, ainda nesse momento, a burguesia foi relutantemente empurrada pela ascensão das massas – como na Revolução Francesa de 1789 – e foi a burguesia que traiu a luta de classes e optou pelo retorno ao poder autoritário desde que seus interesses de classe estivessem salvos. Até o ano de 1913, a burguesia europeia já teria se corrompido pelos ganhos do imperialismo; o regime dessa burguesia deveria ser derrubado pelos trabalhadores.

Na Ásia, em outro ângulo, Lenin identificou o dinamismo dos movimentos de libertação nacional. “Por todo lugar na Ásia”, ele escreve, “um poderoso movimento democrático está crescendo, espalhando-se e ganhando força… Centenas de milhares de pessoas estão acordando para a vida, luz e liberdade.” Até esse período, Lenin tinha focado sua atenção nos desenvolvimentos revolucionários na Rússia, com um estudo detalhado das condições agrárias e do capitalismo no seu país e com debates acerca da natureza da organização do campo revolucionário. Os avanços em 1911 que ocorreram na China, Irã e México, com seus processos revolucionários diversificados e complexos, entretanto atingiram a Lenin. Em 1921, Lenin escreveu sobre os povos asiáticos – tais como Pérsia e Mongólia – que “estão travando uma luta revolucionária por liberdade”, e ele pressionou seu partido a condenar os ataques imperialistas tsaristas na Pérsia e na “luta revolucionária do povo chinês, que está trazendo emancipação à Ásia e enfraquecendo o domínio da burguesia europeia.”

Lenin acompanhara o desenvolvimento do leste asiático desde que o império tsarista iniciou hostilidades contra a China ao invadir a Manchúria em 1900 e, depois, contra o Japão em 1904-05 na Manchúria e Coreia. Em 1900, Lenin tomou uma forte posição anti-guerra, argumentando que, embora o tsar não tivesse declarado guerra em 1900, “a guerra está sendo travada mesmo assim”. “O autocrático governo tsarista”, escreve Lenin, “provou ser um governo de burocratas irresponsáveis servilmente encolhendo-se perante os magnatas capitalistas e nobres”; enquanto isso, a guerra resultou em “milhares de famílias arruinadas, cujos ganha-pães haviam sido enviados à guerra; um enorme aumento na dívida nacional e nas despesas nacionais; impostos crescentes; maior poder dos capitalistas, exploradores dos trabalhadores; piores condições para os trabalhadores; permanência de maior mortalidade no campesinato; fome na Sibéria”. “O povo chinês sofre dos mesmos males dos quais sofrem o povo russo”, argumentou Lenin em uma demonstração antecipada de seu internacionalismo.

O império tsarista, juntamente com os imperialistas europeus, tinha desenvolvido uma “coalizão contrarrevolucionária”, Lenin escreveu em sua reflexão de 1908 sobre os Bálcãs, Turquia e Pérsia. Como os socialistas deveriam reagir a essa política do imperialismo? “A essência da política proletária nesse estágio”, ele escreve no jornal Proletário, “deve ser arrancar a máscara desses burgueses hipócritas e revelar às grandes massas do povo o caráter reacionário dos governos europeus que, devido ao medo da luta proletária em casa, estão fazendo, e ajudando outros a fazerem, o papel de gendarme em relação à revolução na Ásia.” Dentro da Europa, as nacionalidades oprimidas – tais como os poloneses e irlandeses – demonstraram o importante espírito de democracia que Lenin havia percebido do México à China. Diferentemente de outros marxistas – como Karl Radek e Leon Trotsky – Lenin apoiava completamente a Revolta da Páscoa na Irlanda ocupada pela Inglaterra, em 1916. Foi nesse contexto que Lenin escreveu, em julho de 1916: “A dialética da história é tal que pequenas nações, impotentes como um fator independente na luta contra o imperialismo, fazem um papel de um dos fermentos, um dos bacilos, que ajudam a real força anti-imperialista, o proletário socialista, a realizar sua aparição em cena.” Ao estudar esses movimentos com mais cuidado, as lutas por libertação nacional não foram mais vistas como meros “bacilos” ou como “não reais”, mas esses movimentos foram, por si mesmos, parceiros em uma luta global. Lenin começou a conceitualizar uma união estratégica entre o nacionalismo dos oprimidos e o proletariado nos estados imperialistas. “A revolução social”, ele escreveu em outubro de 1916, “pode vir apenas na forma de uma era marcada por uma guerra civil do proletariado contra a burguesia nos países avançados, aliada a uma série de movimentos democráticos e revolucionários, incluindo os movimentos de libertação nacional nas nações subdesenvolvidas, atrasadas e oprimidas.”

O grande avanço de Lenin sobre o marxismo da Segunda Internacional é esclarecido pela centralidade que ele deu à liberação nacional anticolonialista, das lutas de nacionalidades pisadas pelas botas do imperialismo. Para Lenin, as lutas democráticas do anticolonialismo foram levadas a uma paridade com as lutas proletárias dentro dos estados industriais avançados; era o cognato internacional de sua teoria da aliança campo-cidade.

Em 1914, Lenin publicou uma longa série de artigos sobre o tema da “autodeterminação nacional” no jornal Prosveshchniye (Esclarecimento). Essas foram suas declarações mais longas sobre o tema, embora Lenin volte à ideia ao longo da década seguinte. Assim como uma boa parte do trabalho de Lenin, tais textos não foram escritos para elaborar a ideia da autodeterminação nacional por si só; Lenin escreve o artigo como uma resposta a uma posição inicialmente tomada por Rosa Luxemburgo em 1908-09. Nesse artigo, “A questão nacional e autonomia”, publicado no Przeglad Sozialdemokratyczny (Panorama da Social-Democracia), Luxemburgo argumentou contra o direito de autodeterminação do povo polonês. Inicialmente, Stalin respondeu à Rosa (no Prosveshchniye, março-maio 1913), mas o ensaio de Stalin não confrontava corretamente as teses de Luxemburgo (ele estava mais satisfeito em seguir Karl Renner e Otto Bauer). A tarefa de elaborar uma crítica completa a Rosa Luxemburgo foi deixada a Lenin, no ano seguinte.

Lenin argumentou que deve-se permitir uma nação oprimida a ter a sua liberdade de separar-se de um estado opressor. O tsarismo e o colonialismo não apenas esmagavam a habilidade dos povos de seus estados periféricos e seus domínios coloniais de viver livremente, mas também contorciam as vidas daqueles que pareciam beneficiar-se do poder colonial (incluindo trabalhadores no núcleo do império). A secessão, para Lenin, era um direito democrático. Caso mais tarde, devido a pressões econômicas, o proletariado de um estado independente deseje unir-se livremente ao proletariado de seu antigo estado colonial, isso seria aceitável; a unidade desses grupos teria a liberdade como premissa, não a opressão. No decorrer da década seguinte, Lenin desenvolve esse argumento em uma série de ensaios curtos. A maioria desses textos, escritos em alemão, foram traduzidos para o russo nos anos 1920 por N. K. Krupskaya e publicados nos volumes da Miscelânia de Lenin, e depois nos Trabalhos Selecionados de Lenin. Em 1967, os Editores do Progresso (Progress Publishers) de Moscou colocaram esses os ensaios em um livreto de título O Direito das Nações à Autodeterminação (disponível no volume 20 dos Trabalhos Selecionados). A aparição dos textos em um livro, então, não foi intencional, já que Lenin nunca havia escrito um livro sobre tal assunto. Isso foi uma coleção de intervenções e artigos que tinham a essência de sua análise sobre a questão. São essas intervenções, no entanto, que nos permitem ver a riqueza do argumento de Lenin sobre anticolonialismo e autodeterminação.

Nacionalismo Burguês

A questão da autodeterminação veio à tona por conta das forças sociais desencadeadas pela Revolução Russa de 1905 e da expansão tsarista para a Manchúria e Coreia. Diferentes grupos sociais dentro do Império tsarista começaram a fazer suas próprias reivindicações por liberdade, que teriam de ser representadas nos novos partidos políticos que emergiram na arena civil parcialmente livre. O Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) teria, portanto, que encarar a questão da autodeterminação nacional de frente: como que os vários povos dentro do Império tsarista deveriam lutar por liberdade? Devem permanecer sob o jugo do Estado, mesmo que esse Estado seria, em algum momento, livre do tsarismo? Luxemburgo estava especialmente envolvida nesse debate devido a suas raízes no movimento Social-Democrata polonês, que tinha estado, desde o século XIX, envolvido com a questão da libertação da Polônia dos tentáculos do poder tsarista. No mundo do socialismo internacional, era mais frequente que os partidos poloneses fizessem a mais forte aplicação da ideia do direito à autodeterminação. Foi o caso em 1896, quando o Partido Socialista Polonês apelou pela independência da Polônia no Congresso Internacional Socialista em Londres. Nesse congresso, os representantes aprovaram uma resolução a favor do “direito completo de todas as nações à autodeterminação” e expressaram sua “simpatia pelos trabalhadores de todos os países que agora sofrem sob o jugo do despotismo militar nacional”.

Os sociais-democratas poloneses, em seu próprio Congresso (1903) e no Congresso do POSDR (1906), fizeram agitação para afiar a visão da social-democracia sobre autodeterminação. Poucas coisas pareciam dividir a posição de Rosa Luxemburgo e Lenin nesse período, exceto pelo fato de que, nos corredores das reuniões, os poloneses expressaram, de fato, ressalvas quanto a ideia de um direito à autodeterminação. Era a classe trabalhadora que tinha direitos, escreveu Rosa em um panfleto de 1908, não as nações. O cerne do desconforto de Rosa com a teoria do “direito à autodeterminação” é capturado em uma longa citação de seu panfleto de 1908:

“A fórmula do “direito das nações” é inadequada para justificar a posição dos socialistas sobre a questão da nacionalidade, não apenas porque falha ao não levar em conta o grande leque de condições históricas (lugar e tempo) existentes em cada caso dado e não contar com a corrente geral do desenvolvimento das condições globais, mas também porque ignora completamente a teoria fundamental dos socialistas modernos – a teoria das classes sociais.

Quando falamos sobre o “direito das nações à autodeterminação”, estamos usando o conceito de “nação” como uma entidade sociopolítica homogênea. Mas, na verdade, tal conceito da “nação” é uma categoria da ideologia burguesa que a teoria marxista submeteu a uma radical revisão, mostrando como esse véu nebuloso, externado nos conceitos de “liberdade dos cidadãos”, “igualdade perante a lei”, etc., encobre em todos os casos um conteúdo histórico definido.

Em uma sociedade de classes, “a nação” como uma entidade sociopolítica homogênea não existe. Mais propriamente, há em cada nação classes com interesses e “direitos” antagônicos. Não há, literalmente, área social alguma, das relações materiais mais grosseiras às mais sutis relações morais, na qual a classe possuidora e o proletariado com consciência de classe possuam a mesma atitude, e na qual eles apareçam como uma entidade “nacional” consolidada. Na esfera das relações econômicas, as classes burguesas representam os interesses da exploração – o proletariado, os interesses do trabalho. Na esfera das relações legais, a pedra angular da sociedade burguesa é a propriedade privada; o interesse do proletariado demanda a emancipação do homem desprovido de propriedade da dominação da propriedade. Na área do judiciário, a sociedade burguesa representa a “justiça” de classes, a justiça dos bem alimentados e dos soberanos; o proletariado defende o princípio de levar em conta as influências sociais no indivíduo, o princípio da humanidade. Nas relações internacionais, a burguesia representa a política da guerra e da partição, e, no presente estágio, um sistema de guerra de comércio; o proletariado demanda uma política de paz universal e livre comércio. Na esfera das ciências sociais e da filosofia, as escolas de pensamento burguesas e a escola representando o proletariado se encontram diametralmente opostas.

As classes possuidoras possuem sua visão de mundo; é representada pelo idealismo, pela metafísica, pelo misticismo e o ecletismo; o proletariado moderno tem a sua teoria – o materialismo dialético. Mesmo na esfera das tais condições “universais” – na ética, na arte, no comportamento – os interesses, visão de mundo e ideais da burguesia e aqueles do proletariado esclarecido representam dois campos, separados um do outro por um abismo. E sempre que os esforços formais dos interesses do proletariado e os da burguesia (como um todo ou em sua parte mais progressista) pareçam idênticos – por exemplo, no campo das aspirações democráticas – ali, sob a identidade de modelos e slogans, está escondida a mais completa divergência de conteúdos e políticas essenciais.

Não há como existir uma discurso sobre uma vontade coletiva e uniforme, sobre uma autodeterminação da “nação” em uma sociedade formada de tal maneira. Se encontrarmos, na história das sociedades modernas, movimentos “nacionais” e lutas por “interesses nacionais”, eles geralmente são movimentos de classe das camadas dominantes da burguesia, que só podem representar o interesse das outras camadas da população até o ponto em que, sob a forma de “interesses nacionais”, defendem formas progressistas de desenvolvimento histórico, e até o ponto em que a classe trabalhadora não tenha ainda se distinguido da massa da “nação” (liderada pela burguesia) e se consolidado como uma classe política independente e esclarecida.”

Para Rosa Luxemburgo, a ideia da nação é uma cortina de fumaça ideológica utilizada pela burguesia para criar conexões horizontais contra as hierarquias verticais da vida social. É um mecanismo útil para construir economias nacionais e políticas nacionais que beneficiam o domínio de classe da burguesia. Essa é a razão pela qual a ideia do direito nacional à autodeterminação deveria ser derrubada.

Lenin não discordava do espírito da análise de Rosa. Ele concordava que o poder de classe da própria burguesia é mais eficientemente carregado pelo recipiente da ‘nação’. “A base econômica de movimentos [nacionalistas]” ele escreve em sua resposta de 1914, “é o fato de que, para conquistar uma vitória completa para a produção de commodities, a burguesia precisa capturar o mercado nacional, precisa unificar politicamente territórios com uma população falante de uma mesma língua, e todos os obstáculos ao desenvolvimento dessa língua e à sua consolidação na literatura devem ser removidos”. Portanto, Lenin nota, “a tendência de todo movimento nacional é em direção à formação de estados nacionais, sob os quais esses requisitos do capitalismo moderno são melhor satisfeitos. Os fatores econômicos mais profundos andam em direção a esse objeto e, portanto, para todo a Europa Ocidental, a saber para todo o mundo civilizado, o estado normal, típico, para o período capitalista é o estado nacional”. Aqui não há diferença entre Lenin e Rosa, com ambos em concordância que movimentos nacionais andam lado a lado com o desenvolvimento capitalista, e que as vantagens do nacionalismo na experiência europeia são primordialmente apuradas pela burguesia.

Direitos Iguais às Nações e Solidariedade Internacional dos Trabalhadores

Se essa análise é o fim do assunto, e se está correta, então a antipatia de Rosa ao nacionalismo parece mais coerente do que a ambivalência de Lenin. Mas isso não é o fim do assunto, pelo menos na opinião de Lenin. A abordagem de Rosa sobre a ideia de nacionalismo, Lenin sugeriu, reduziu a questão nacional à economia e à independência econômica. Não estava interessada na questão política, na fome por liberdade entre a população que havia sido colonizada. A tendência expansionista do capitalismo para fora do território nacional continha as sementes do imperialismo; em um certo estágio de seu desenvolvimento econômico, a burguesia nacional buscou as vantagens da nação-estado; mas ao passo que o seu dinamismo se expandia, as ambições dessa burguesia mimetizaram os esforços imperiais de seus ancestrais aristocratas. É para esse fim que Lenin fez uma distinção entre o nacionalismo dos opressores (os grão-russos e os ingleses) e o nacionalismo dos oprimidos (os poloneses e irlandeses). Essa distinção, Lenin escreveu em 1915, “é a essência do imperialismo”. O Nacionalismo do opressor, dos grão-russos e ingleses, por exemplo, é algo que sempre deve ser combatido. Não há nada no caráter desse nacionalismo que seja digno de apoio. Seu chauvinismo leva-o a uma conquista mundial, uma dinâmica que não apenas despedaça o bem estar do oprimido, mas também corrompe sua própria cidadania.

No dia 10 de dezembro de 1869, Marx escreveu a Engels sobre a questão irlandesa. “A classe trabalhadora irlandesa nunca conquistará nada antes de se livrar da Irlanda. A alavanca precisa ser puxada para a Irlanda”, ele escreveu. “A reação inglesa na Inglaterra tem raízes na subjugação da Irlanda” (Lenin cita parte disse em seu panfleto de 1914). Inspirando-se em Marx, Lenin escreve em seu ensaio de 1915 sobre autodeterminação, “A liberdade dos [ingleses] foi atrofiada e mutilada pelo fato de que ela oprimia outra nação. O internacionalismo do proletariado inglês teria permanecido apenas uma frase hipotética caso não tivesse demandado a separação da Irlanda”. Muito da mesma lógica aplicou-se à Rússia, cujos social-democratas foram incitados por Lenin a exigir liberdade para suas nações oprimidas. “Empolgada pela luta contra o nacionalismo na Polônia”, Lenin escreveu, “Rosa Luxemburgo esqueceu o nacionalismo dos grão-russos,  embora esse nacionalismo é o mais formidável no presente tempo, e é o principal obstáculo à democracia e à luta proletária”. Tinha de ser confrontado. Nem Lenin nem Luxemburgo pensaram o contrário.

A diferença entre os dois era aguçada na segunda metade da distinção de Lenin. Os grandes poderes não apenas anexam as economias dos seus sujeitos dominados, mas também drenam o seu poder político. A autodeterminação nacional do oprimido contém tanto os planos da burguesia oprimida de subordinar a economia aos seus próprios fins, quanto a esperança do proletariado de disputar com a sua burguesia a pauta de como organizar a sua nação. “O nacionalismo burguês de toda nação oprimida”, argumentou Lenin, “tem um conteúdo democrático geral que é direcionado contra a opressão, e é esse conteúdo que nós apoiamos incondicionalmente, ao mesmo tempo que estamos estritamente distinguindo-o da tendência ao excepcionalismo nacional, lutando contra a tendência da burguesia polonesa de oprimir os judeus, etc., etc.”. Lenin trabalhou cuidadosamente na fórmula para seu apoio incondicional. Se a burguesia da nação oprimida “luta contra a nação opressora”, então os social-democratas devem apoiá-los incondicionalmente. Se, no entanto, “a burguesia da nação oprimida defender o seu próprio nacionalismo burguês”, então os social-democratas devem se opor a eles. “Nós lutamos contra os privilégios e a violência da nação opressora, mas nós não toleramos as aspirações por privilégios da parte da nação oprimida.”

 “Não tolerar as aspirações” da burguesia das nações oprimidas dá aos social-democratas a seus aliados de classe a tarefa crucial que os separa dos liberais e seus aliados de classe. Os social-democratas tanto se opõem ao nacionalismo da nação oprimida, quanto às aspirações da burguesia da nação opressora para suplantar aquele da nação opressora. Os trabalhadores da nação oprimida não devem submeter-se ao regime da burguesia da nação oprimida, mas devem confrontá-lo com a mesma determinação com a qual lutariam contra a burguesia imperial. A luta por autodeterminação não pode dividir os trabalhadores do núcleo imperial e da periferia imperial. Aqueles no núcleo devem lutar contra o nacionalismo imperial, e aqueles na periferia devem lutar contra o nacionalismo imperial e o nacionalismo da burguesia. Estes têm uma tarefa dupla, formidável pela complexidade da estratégia e tática exigidas deles. Eles têm o papel de lutar tanto pelo “absolutamente direto e inequívoco reconhecimento do completo direito de todas as nações à autodeterminação”, e pelo “igualmente inquestionável apelo aos trabalhadores por uma unidade internacional em sua luta de classes”. Em outras palavras, os social-democratas não investem no nacionalismo como um fim em si mesmo. O objetivo final é o internacionalismo do proletariado, mas ele deve passar pelo nacionalismo do oprimido. As atividades gêmeas da social-democracia são, portanto, lutar pelos “direitos iguais das nações e solidariedade internacional dos trabalhadores”.

Uma União Livre

Quais são os meios práticos pelos quais o nacionalismo dos oprimidos se manifesta? Lenin argumentou que as regiões oprimidas devem separar-se das nações opressoras, ou, em outras palavras, devem ganhar a sua independência. Se a social-democracia não proclama o direito à secessão, suas políticas são apenas “frases soltas e vazias, hipocrisia pura”. Claramente, a “autodeterminação das nações significa a separação política dessas nações de corpos nacionais estranhos, a formação de um estado nacional independente.” Mas um estado nacional independente não é o fim do processo. É aqui que Lenin conquista um novo terreno na teoria marxista das nacionalidades e autodeterminação (embora mais uma vez tomando como inspiração as cartas de Marx a Engels sobre a questão irlandesa). Os marxistas e a social-democracia reconhecem as vantagens econômicas e políticas de entidades geográficas maiores: são capazes de comandar mais recursos e maiores mercados, e são menos vulneráveis à conquista militar. O objetivo final é formar uniões vibrantes e genuínas de áreas grandes e não homogêneas,

“Nós exigimos liberdade de autodeterminação, ou seja, independência, ou seja, liberdade de secessão para as nações oprimidas, não porque temos sonhado em dividir o país economicamente, ou com o ideal de pequenos estados, mas, pelo contrário, porque queremos grandes estados e a unidade mais próxima e até mesmo fusão de nações, apenas em uma base verdadeiramente democrática e verdadeiramente internacionalista, que é inconcebível sem a liberdade de secessão.”

Em suas Nove Teses sobre Autodeterminação, de 1916, Lenin escreve: “Uma união livre é uma frase falsa sem o direito à secessão”. Retomando Marx sobre a Irlanda, Lenin escreve: “a exigência pelo direito à secessão por uma questão de dividir e isolar países” não é um fim em si mesmo; é sobre um processo “para criar laços mais duráveis e democráticos”. Em seguida, Lenin escreve, “apenas dessa maneira pode Marx manter – em contradição aos apologistas do capital que bradam que a liberdade de secessão das pequenas nações é algo utópico e impraticável e que não apenas a concentração econômica mas também a política seriam progressistas – que essa concentração é progressista quando é não-imperialista, e que as nações devem ser unificadas não pela força, mas por uma livre união dos proletários de todos os países.”

Defender esse direito à secessão, escreve Lenin em agosto de 1915, “em nenhuma maneira significa encorajar a formação de pequenos estados, mas, pelo contrário, leva a uma formação mais livre, mais corajosa e, portanto, mais ampla, de maiores governos e uniões de governos – um fenômeno mais vantajoso para as massas e mais de acordo com o desenvolvimento econômico.” O capitalismo cresceu dinamicamente para abranger o planeta, e buscou áreas de operação cada vez maiores. Essa é a tendência não apenas das empresas de aglomerarem-se em direção a um controle monopolizado dos mercados, mas também dos estados de crescerem por intermédio de políticas imperiais ou coloniais (essa é a dinâmica geral identificada por Lenin no Imperialismo, panfleto de 1916). “Imperialismo significa que o capital cresce além da estrutura dos estados nacionais”, escreveu em 1915; “significa dizer que a opressão nacional foi alargada e elevada em um novo fundamento histórico”. O capital de monopólio floresceu em grandes estados imperiais. O imperialismo estava enraizado na economia política da época. Deveria ser confrontado não pela moralidade mas pelo crescimento de movimentos políticos que enfraquecem o seu poder; em outras palavras, por uma combinação de movimentos proletários e movimentos de nacionalidades oprimidas. “Como resultado isso”, argumenta Lenin, “devemos conectar a luta revolucionária pelo socialismo com um programa revolucionário sobre a questão nacional”.

Rosa Luxemburgo lutou pela “liberdade da opressão nacional” e não pelo “direito à autodeterminação das nações”. Para ela, a opressão nacional era apenas uma outra forma de opressão, e deveria ser confrontada como tal. Para Lenin, a opressão nacional tinha um papel específico na operação do imperialismo, e tinha de ser confrontada de uma maneira específica, por meio do incentivo à secessão das nacionalidades oprimidas, com a finalidade não de petrificar sua cultura nacional como uma separada das outras, mas de trabalhar em direção a uma unidade proletária internacionalista no futuro. A abordagem de Lenin não era uma abordagem moral, portanto; era uma que surgia de sua análise do imperialismo e dos movimentos internacionais que emergiam em oposição a ele. Seu apoio ao nacionalismo não tinha como premissa o pressuposto de que os pequenos estados iriam, de alguma maneira, enfraquecer o imperialismo; compreendia-se que estados democráticos, com o proletariado em cada um deles fazendo conexões entre si, seriam capazes de aproveitar-se da nova balança econômica para forjar uma unidade genuína.

O nacionalismo não significaria, como Luxemburgo acidamente colocava, “o direito de comer em pratos de ouro”. Mas significaria, tal como Lenin observava, parte de um programa de três pontos:

  • Completa igualdade a todas as nações;
  • O direito das nações à autodeterminação;
  • A fusão dos trabalhadores de todas as nações.

Esse é “o programa nacional que o marxismo (…) ensina aos trabalhadores”.

Karl Radek, o marxista austríaco, entrou no debate em 1915 para argumentar que a luta por autodeterminação nacional é “ilusória” (“Anexações e Social-Democracia”, Berner Togwacht, 28,29 de outubro). Uma das objeções de Radek que incomodavam Lenin era a de que um projeto verdadeiramente de classes renunciaria demandas políticas democráticas que não ameaçam o capitalismo. Existem algumas demandas democráticas que podem ser ganhas na era do capitalismo e existem outras com as quais se deve lutar mesmo em uma sociedade socialista, Lenin argumentava. “Precisamos aliar a luta revolucionária contra o capitalismo a um programa e táticas revolucionárias relativas a todas as demandas democráticas: uma república, uma milícia popular, oficiais eleitos pelo povo, direitos iguais às mulheres,  autodeterminação das nações, etc. Enquanto o capitalismo existir, essas demandas são realizáveis apenas como uma exceção, e em uma forma incompleta e distorcida”. A social-democracia precisa “formular, de uma maneira consistentemente revolucionária, cada uma das nossas exigências democráticas” porque o proletariado deve ser “educado no espírito da mais consistente e determinada democracia revolucionária”. Contestar o direito à autodeterminação nacional das nações oprimidas é negá-las dos seus direitos democráticos e enfraquecer a democracia revolucionária.

Na URSS e na Comintern

A formulação de Lenin de 1914 a 1916 facilitou uma posição clara na prática depois da Revolução Soviética de 1917. Duas tarefas se apresentaram no que diz respeito á autodeterminação nacional:

  • Como o novo estado soviético deveria lidar com a questão de suas próprias nacionalidades?
  • Como a recém-criada Internacional Comunista (1919) deveria confrontar os movimentos nacionalistas nas colônias?

Ao 3 de janeiro de 1918, Lenin, participante do Comitê Executivo Central de Todas as Rússias, esboçou a Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador Explorado. Esse documento foi subsequentemente adotado pelo Terceiro Congresso de Soviets de Todas as Rússias como a constituição de 1918 (a essência permaneceu na Constituição de 1924). O segundo artigo estabelece que a República Soviética é baseada “no princípio de uma união livre de nações livres, como uma federação de repúblicas nacionais soviéticas”. O Conselho de Comissários do Povo já havia proclamada a independência da Finlândia, removido tropas russas da Pérsia e comprometido-se com a autodeterminação da Armênia. No papel, isso era inatacável. O problema é que forças contrarrevolucionárias em seus estados fronteiriços, os mesmos estados aos quais havia sido prometido o direito à secessão, atacaram o novo estado soviético. Os soviéticos rapidamente buscaram alianças com esses estados (Armênia, Azerbaijão e Geórgia, por exemplo), nas quais forças pró-bolcheviques foram apoiadas pelos soviéticos e os contrarrevolucionários foram derrotados. A autodeterminação da nação era uma fórmula pela qual esses estados teriam tido assegurada a sua independência nominal, caso não tivessem sido hostis aos soviéticos. Quando bolcheviques (como Georgy Pyatakov) nesses estados acabaram argumentando a favor de uma fusão à Rússia, Lenin chamou-os de grão-russos e a eles fez oposição. O princípio da autodeterminação era sacrossanto, mesmo quando a contrarrevolução ameaçava o estado soviético (Rosa Luxemburgo, em seu ensaio sobre a Revolução Russa, identificava essa fraqueza: “Enquanto Lenin e seus camaradas claramente esperavam que, como campeões da liberdade nacional mesmo até o ponto da ‘separação’, eles transformariam a Finlândia, Ucrânia, Polônia, Lituânia, os países bálticos, o Cáucaso, etc., em tantos fiéis aliados da Revolução Russa, presenciamos o espetáculo oposto. Uma após a outra, essas ‘nações’ usaram sua recém-garantida liberdade para aliar-se com o imperialismo germânico contra a revolução russa, sua inimiga mortal, e sob proteção alemã, carregaram a bandeira da contrarrevolução Rússia adentro”). Em 1922, Stalin desejava restringir os direitos dos novos estados fronteiriços por meio de uma política chamada “autonomização”, ou seja, esses estados se dissolviriam dentro da URSS ao ganhar autonomia nominal. Lenin era inflexivelmente oposto a essa política. “Nós nos consideramos, os socialistas soviéticos ucranianos e outros, iguais, e entramos com eles, em uma base igual, em uma nova união, uma nova federação”. Essa federação era a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS. Esse princípio já estava lá no esboço de 1918, assim como na primeira Constituição Soviética.

Ao mesmo tempo em que empenhava-se em criar uma união realmente livre e voluntária, e,portanto, mais firme e estável, das classes trabalhadoras de toda a Rússia, a Assembleia Constituinte confinava sua própria tarefa de configurar os princípios fundamentais de uma federação de Repúblicas Soviéticas da Rússia, deixando aos operários e camponeses de cada nação decidirem independentemente, em seus próprios Congresso de Soviets autoritativos, se desejariam participar no governo federal e nas outras instituições federais soviéticas, e sob quais termos.

A lógica da federação dentro a URSS aplicava-se de forma similar à questão colonial. Na declaração de 1918, Lenin dizia que o novo estado deveria ser uma “completa ruptura com a bárbara política da civilização burguesa, a qual construiu a prosperidade dos exploradores, pertencente a umas poucas nações escolhidas, às custas da escravização de centenas de milhares de trabalhadores na Ásia, nas colônias em geral, e nos países menores.”

Quando a Internacional Comunista (Comintern) realizou sua primeira reunião em 1919, o júbilo da experiência soviética combinada à  potencial revolução na Europa (a Alemanha em particular) e a ascensão de movimentos operários e campesinos na Ásia definiram seu resultado. A Comintern se dirigiu ao “proletariado de todo o mundo”, dizendo-os, “A emancipação das colônias é possível apenas em conjunto com a emancipação da classe trabalhador metropolitana. Os operários e camponeses não apenas de Aname, Algiers e Bengala, mas também da Pérsia e Armênia, ganharão sua oportunidade de existência independente apenas quando os trabalhadores da Inglaterra e França tiverem derrubado Lloyd George e Clemenceau e tomado o poder estatal em suas próprias mãos”. O nacionalismo das nações oprimidas mal ganhou uma menção. A derrota da revolução alemã e os contratempos nas colônias provocaram um tom mais sóbrio na segunda reunião da Comintern (1920). As ideias de Lenin sobre a questão colonial (oriental) tinha como base sua atitude mais espaçosa com relação aos nacionalismos dos oprimidos. Foi a presença do marxista indiano M. N. Roy que fez Lenin truncar seu mais entusiasmado apoio ao nacionalismo anti-colonial. A segunda tese da Comintern surge de uma formulação-compromisso entre o próprio esboço de Lenin e as emendas de Roy (com o marxista holandês Henk Sneevliet segurando suas mãos na mesma caneta).

Como expressão consciente da luta proletária para livrar-se do jugo da burguesia, e em concordância com sua tarefa principal, que é a luta contra a democracia e o desmascarar de suas mentiras e hipocrisia, o Partido Comunista não deve colocar a ênfase principal da questão nacional em princípios formais e abstratos, mas, em primeiro lugar, numa avaliação precisa do meio econômico historicamente dado. Em segundo lugar, o Partido deve enfatizar a explícita separação entre os interesses das classes oprimidas, dos trabalhadores, dos explorados, e o conceito geral do interesse nacional, ou seja, do interesse da classe dominante. Em terceiro lugar,  deve enfatizar a igualmente clara divisão das nações de oprimidas e dependentes que não gozam dos mesmos direitos das nações opressoras e privilegiadas, como oposição à mentira democrático-burguesa que encoberta a escravização financeira e colonial da vasta maioria da população mundial por uma minúscula minoria dos mais ricos e mais avançados países capitalistas, que é característica da época do capital financeiro e do imperialismo.

Nada nessa tese contradiz o espírito da própria opinião de Lenin sobre autodeterminação, exceto nos momentos em que torna explícita a desconfiança de Lenin quanto ao caráter da burguesia das nações oprimidas. A nona tese dizia que a Comintern “deve apoiar diretamente o movimento revolucionário nas nações que são dependentes e não têm direitos iguais (por exemplo a Irlanda, os negros nos EUA e assim em diante) e nas colônias”. Ao mesmo tempo, a Comintern, na décima primeira tese, observa que é preciso participar de uma “luta resoluta” contra a tentativa de “pintar como comunistas os movimentos revolucionários de libertação em países atrasados que não são verdadeiramente comunistas”. A Comintern apoia os movimentos revolucionários nas colônias “apenas sob a condição de que os componentes estejam agrupados em todos os países atrasados para formar futuros partidos proletários – comunistas de fato, não apenas no nome – e que sejam educados a serem conscientes de suas tarefas particulares, ou seja, as tarefas de lutar contra o movimento burguês democrático em suas próprias nações”. Que a Comintern “mantenha, incondicionalmente, a caráter independente do movimento proletário, mesmo que seja apenas embrionário”. Os princípios gerais de Lenin articulados em seus ensaios de 1914 em diante foram consagrados na Constituição Soviética e na Cominter, com algumas alterações para satisfazer as novas situações e as novas configurações de classe.

Não é surpresa que radicais do mundo colonizado – como Ho Chi Minh e José Carlos Mariategui – encontravam no Leninismo a alma e coração de seus horizontes políticos. Foi esse marxismo anti-colonial que atraiu nacionalistas radicais das colônias holandesas da Indonésia às colônias francesas do Oeste Africano, e foi essa forte teoria de autodeterminação nacional anticolonial que forjou laços para a esquerda marxista ao redor do mundo. Não é difícil imaginar, então, por que a tradição do “Marxismo Ocidental” tende a ignorar Lenin, a saltar de Marx a Lukacs e Gramsci, evitando o fato de que Lukacs escreveu um livro sobre Lenin e que Gramsci desenvolveu seu próprio pensamento tendo Lenin em mente; o salto sobre Lenin é um salto não apenas sobre a experiência da Revolução de Outubro, mas também sobre o marxismo que é então desenvolvido no Terceiro Mundo, um salto para dentro da filosofia abstrata, de pouco compromisso com a práxis e com o socialismo que se desenvolve – não nos estados industriais avançados –  mas no reino da necessidade, no mundo previamente colonizado, de China  Cuba. Nesses alcances exteriores, onde revoluções tiveram sucesso, é o Lenin anticolonial que aponta o caminho.

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