Puxando um fio solto: reprodução na periferia no epicentro da pandemia

Por Cecília F. Teixeira e Elisabeth Zorgetz

“Onde a casa emerge como um espaço de trabalho (agora não apenas o locus socialmente determinado do trabalho doméstico) e precisa ser esquadrinhada entre o home office, a escola virtual, as reuniões profissionais, políticas, acadêmicas e várias outras atividades que ocorrem normalmente na esfera pública, pode se dizer que o momento é mais que privilegiado para evidenciar a importância do trabalho reprodutivo no dia-a-dia. Porém, apelar moralmente por essa atenção é um caminho que nos joga no fosso comum da racionalidade afetiva sobre a reprodução. Para todos os lados que se olha, a oportunidade em participar equilibradamente das tarefas domésticas e de cuidado para os membros da família não está sendo aproveitada, muito distante disso: cozinhar, lavar, limpar, atender, cuidar, tratar, educar etc. são tarefas que se replicaram nas casas e as mulheres viram sua carga de trabalho aumentada.”


“As estatísticas, realmente atrozes, contam apenas uma parte da história. A morte recaiu sobre “os pobres”. Em geral, não foram os ricos que morreram quando as pragas ou a varíola arrasaram as cidades, mas os artesãos, os trabalhadores e os vagabundos (Kamen, 1972, pp. 32-3). Morreram em tal quantidade que seus corpos pavimentavam as ruas e as autoridades denunciavam a existência de uma conspiração, instigando a população a buscar os malfeitores” (2017, p. 168 – O Calibã e a Bruxa).

Assim comenta Silvia Federici sobre a crise populacional que se abateu sobre o Ocidente ao final do século XVI. A peste bubônica, muito emblemática no imaginário sobre a Idade Média, se mostrou prenhe de implicações sobre as transformações de ordem social que tomaram, a partir de então, aquela porção do mundo. Basta lembrar que esse flagelo dizimou um quarto da população ocidental em apenas dez anos do século XIV. De fato, sua potência foi sentida a partir da firme relação da doença com a morte – quase certa – e o vazio concreto de mãos no trabalho [1] foi sentido imediatamente e também ao longo do tempo. Hoje, no início do século XXI, um robusto exército de reserva global garante que a crise social da pandemia do COVID-19 não seja exatamente a ausência de força de trabalho [2] (que pode ser fatalmente vitimada pelo vírus nos próximos anos), mas uma miríade de outras crises, como o arrefecimento da produção e da circulação de capital e liquidez, a insuficiência das estruturas nacionais de saúde, as ameaças no plano discursivo sobre a retórica neoliberal, as disputas internacionais sobre a direção do capital fictício e o estado de emergência da reprodução da classe trabalhadora. Não provoca qualquer surpresa como os pontos nevrálgicos da pandemia estão intimamente relacionados com as engrenagens do modo de produção capitalista e as decisões que os Estados pactuados com suas orientações tomaram até sua eclosão.

1. Um vírus que emerge na crise

O coronavírus, como foi conhecido popularmente, consiste, na verdade, em uma família de tipos virais de origem zoonótica, através de transmissões interespécies (na qual também se inclui entre animais e humanos) que são, em geral, explicadas pela maior intervenção na vida silvestre [3]. Seu traço mais comum quando infectam seres humanos é o aparecimento de problemas respiratórios. O COVID-19 pertence a esse grupo e foi detectado a primeira vez no início de dezembro de 2019 na cidade de Wuhan, na China e o primeiro caso infectado reportado alguns dias depois. A doença assume o caráter de pandemia, de acordo com os marcos da OMS, em 11 de março de 2020. Até o momento em que esse texto estava sendo escrito, 1.258.198 pessoas haviam sido infectadas, 259.629 curadas e 68.310 mortas em todo o mundo. Os vírus, como aprendemos em idade escolar, são aqueles pacotes genéticos com sua capa proteica e matéria de um extenso debate científico sobre seu status de ser vivo/não-ser vivo. Sem muitas controvérsias, até então, é a sua condição de parasita obrigatório, ou seja, dependem de uma célula vida para existir, replicar-se e manter-se ativo. À época de Marx os vírus não eram conhecidos ou reconhecidos como tal, mas logo nos vem à mente a provocação metafórica do autor sobre o capital-vampiro (“o capital é trabalho morto, que, como um vampiro, vive apenas da sucção de trabalho vivo, e vive tanto mais quanto mais trabalho vivo suga”) [4]. E é assim que se assumem os capitalistas, patrões em todo o mundo, na crise pandêmica: formas virais (ou vampirescas, ao gosto de Marx) totalmente dependentes da corporeidade viva, trabalho vivo, ao qual apelam dramaticamente que se retorne à ação, ou, nos limites do impacto hospitalar, aguardam e reorganizam atividades com margens delimitadas, previamente aceitas, de cadáveres.

O objeto da crise, contudo, não é a própria pandemia, o vírus, as mortes ou o distanciamento social, onde ocorre. A contaminação da maior parte da população não é uma trajetória questionável para a literatura científica produzida até então. O que se tenta desacelerar é a contaminação súbita de grossa parte das pessoas, o chamado “achatamento da curva”, evitando que todos precisem simultaneamente de estruturas hospitalares com o aparecimento de sintomas. Ou seja, o que está em cheque neste momento é a capacidade dos sistemas públicos e privados de saúde; a capacidade das indústrias nacionais em responder à produção dos equipamentos necessários; a capacidade dos Estados em assegurar a sobrevivência daqueles sem qualquer forma de renda ou com renda/remuneração suspensa; e finalmente, a capacidade do modo de produção capitalista de se provar uma realidade plausível para a humanidade, diante da necessidade de suspender parcialmente e por um curto período suas engrenagens de valorização. O estado de crise, portanto, precede o adoecimento das pessoas pela infecção. É a crise, acima de tudo, que atua como o prenúncio do vivificar dinâmico do modo de produção, dado na contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e a tendência à queda da taxa geral de lucro. A crise não nos conduz, com uma poderosa e unívoca força, para apenas um destino comum, o qual desconhecemos. Distante disso, ela atua com forças de empuxo para todos os lados e fluxos velozes, o qual nem sempre podemos reter ou acompanhar. É na crise, por exemplo, que emerge a face embaralhada da criação de mais valor e isso é bom. Disse Marx: “Enquanto o negócio vai bem, a atenção do capitalista está absorvida demais na criação de lucro para que ele perceba essa dádiva gratuita do trabalho. Apenas interrupções violentas do processo de trabalho, crises, tornam-no sensível a esse fato” [5]. Por exemplo, também um processo vislumbrado de longe pela poderosa mente do mesmo autor, a expansão do capital fictício, capital parasitário, que se desenvolve exclusivamente na esfera financeira, sem qualquer vínculo real com a produção material, se desenrolou com velocidade ao longo dos últimos anos da atual crise. Ainda carregamos as feridas não curadas da recessão de 2008-2009, como evento mais próximo, mas também dos abalos ocorridos na virada do século. Na crise que antecedia o apresentação social do vírus na China, os mercados de capitais fictícios (mercados de ações) já apresentavam problemas recorrentes como resposta à contração e à incerteza do período. A partir da crise pandêmica, colapsaram em boa medida, demonstrando a dependência dos movimentos da economia material real sobre a sobrevivência desses ativos. No mesmo conjunto, algumas semanas antes, o preço do petróleo sofreu desaceleração, houve um fluxo de fuga de capitais para ativos menos voláteis, moedas se desvalorizaram enquanto o dólar se valorizava, e novamente, os preços de produtos primários, carro-chefe de países agroexportadores como o Brasil, caíram. Muitas vulnerabilidades foram sendo erguidas despreocupadamente para o próprio funcionamento do capitalismo, e o quadro geral sempre está na premência de um estopim para desencadear o estado de crise: atualmente, o vírus. Como é esperado do mundo das aparências, o foco é ajustado sobre esse estopim, aquela gota d’água no copo cheio, enquanto seu volume de iniquidades, incompetências e equívocos é sombreado e esquecido. Isso ocorre pela força de um propósito bem organizado pelos governos, corporações, grandes mídias e outras instituições, mas também ocorre nas mentes das pessoas através da compreensão das informações que recebem diariamente e pelo potente impacto emocional e comoção social que a pandemia provoca, ocupando o centro das atenções como portadora da culpa.

As políticas de ajuste estrutural do pacote neoliberal a partir da década de 1970, embora se expressem como um fenômeno mundial, demonstraram como seus efeitos atingiram (e atingem) os países mais pobres e dependentes de forma diferenciada, e cujo comportamento sobre a estrutura de trabalho é reativo e versátil, e consequentemente para condições de vida dos trabalhadores. Embora o alerta sobre a vulnerabilidade dos países pobres e “emergentes” diante da pandemia – durante décadas prejudicados pela orientação de austeridade e arrocho – a alta concentração de infecções e mortes nos países desenvolvidos do hemisfério norte ainda nubla um pouco as dificuldades que a outra porção do mundo já enfrenta e ainda irá enfrentar [6]. De fato, abruptamente ou no futuro, o impacto será sentido concretamente, em cada comunidade, seus hospitais e postos de atendimento locais. Muitas dessas estruturas de saúde não são frágeis por ocasião do destino, mas produto da pressão pela austeridade fiscal sobre os Estados subdesenvolvidos, principalmente com a ação das forças do imperialismo e grandes instituições multilaterais como o Banco Mundial, o FMI e bancos regionais “pró-desenvolvimento”, cujas políticas deterioraram os sistemas públicos de saúde através do fechamento de unidades, redução do emprego de profissionais da saúde e mudança para contratos de trabalho precários, subinvestimento em infraestrutura, equipamentos e pesquisa pública, redução das indústrias farmacêuticas nacionais e privatização de serviços e setores da saúde. São essas mesmas instituições que hoje anunciam ajudas financeiras emergenciais (financiamentos) aos estados-nacionais em nome da liquidez, estendendo a mão aos mais desesperados como boas samaritanas.

Os governos em todo o mundo adotam pacotes mais ou menos comuns para atender as empresas e população durante o período que exige distanciamento social, como foi reiteradamente aconselhado pela OMS e avaliações de alguns estudos e experiências, como a chinesa. Numa situação assim, o discurso liberal e privatista (e seus agentes) pouco pode fazer, exceto vestir as máscaras providenciais que se alternam descaradamente: keynesiana, assistencial, populista, totalitária, e tantas outras. Quantias consideráveis de dinheiro proveniente do Estado devem aparecer para evitar um colapso ainda maior, assim como os pagamentos de serviços conveniados precisam ser suspensos (e em muitos locais, ainda não foram). Os países com maior grau de dependência, pobreza e/ou fragilidades infraestruturais/organizacionais dos serviços à população são os que tendem a sofrer a longo prazo com a pandemia. Embora pareça óbvio quando se lê, essa é uma interpretação que ainda parece alheia às suas sociedades.

Em um momento como esse, emerge o essencial: se a relação entre Estado e comunidade é de confiança e compromisso a ponto de garantir o distanciamento social adequado ou se o sistema de saúde pública e gratuito, quando existe, é capaz de enfrentar o desafio para além da crise hospitalar. Também é importante frisar o caráter material da necessidade de instrumentalização exigida agora (testes, insumos de limpeza e desinfecção, leitos, EPI’s, respiradores etc.), porque esses produtos são, em larga maioria, produzidos por indústrias capitalistas no dia-a-dia e seu controle de estoque bem delimitado, balizados pela taxa de lucro obtida com a demanda comum. “Ninguém estava preparado” para algo como o que está ocorrendo, mas será mesmo? A resposta pode estar na realidade das estruturas industriais nacionais débeis, por um lado, incapazes e covardes em produzir mercadorias de baixa complexidade como máscaras hospitalares, e por outro, a insuficiência sob altíssima demanda, porque mesmo com a recorrência de epidemias mundo afora, não é lucrativo produzir e armazenar algo que não está circulando ativamente no mercado.

Enquanto escrevemos, porém, as empresas do setor estão funcionando em ritmo acelerado para vender os insumos e equipamentos que desaparecem das prateleiras (e seus operários, excluídos do distanciamento). Até mesmo porque tudo indica que o COVID-19 deve conviver com a humanidade por um tempo ainda alongado, já que ainda não temos uma vacina (que dificilmente apareceria no olho do furacão) ou grandes grupos que já adquiriram imunidade ao contrair o vírus e se curar da doença. Os burgueses e seus representantes institucionais (revelando algum pesar ou nenhum pesar), demonstraram seu alívio sobre as diferenças em taxas de mortalidade de acordo com a idade das pessoas, uma vez que os trabalhadores na velhice estiveram sob constante ataque nos últimos capítulos da novela neoliberal. “Morrem apenas os velhos ou de saúde vulnerável”, muitos disseram, justificando a urgência do retorno à “normalidade” (equilíbrio, regularidade, evitando as imperfeições de mercado e perturbações à sua perfeição, tudo no melhor jargão da economia marginalista). Ora, onde a moralidade já é defunta e putrefata como no capitalismo, não se pode esperar qualquer outra coisa. Contudo, devemos ter atenção sobre como se evita cuidadosamente qualquer análise sobre a mortalidade de acordo com a classe social (no Brasil, uma análise da mortalidade sobre o aspecto racial seria igualmente importante). Se os pacientes-zero de cada localidade geralmente poderiam pertencer aos maiores estratos de renda, retornando de viagens internacionais, o que ocorre depois disso é muito diverso. O contexto de disseminação, capacidade de proteção e tratamento são radicalmente diferentes a depender de qual classe social a família trabalhadora pertence, e o quão fundo está em suas condições de reprodução dentro dessa classe.

2. As engrenagens da reprodução da força de trabalho

O paradigma reprodutivo diz respeito à formação e regeneração física e mental dos homens e mulheres em suas relações mais primárias e também mais complexas, entre família e sociedade, posturas individuais e coletivas, ações orgânicas e suas interações livres. Nas últimas semanas, um de seus aspectos, o trabalho reprodutivo, foi novamente trazido à luz com o destaque sobre o crescimento dos índices de divórcio e de violência doméstica durante o período de distanciamento social [7]. Esta associação direta, todavia, salta aos olhos muito mais em razão daquilo que não é revelado por sua aparência. Por conseguinte, em vez de responsabilizar o isolamento social em si, é necessário fazer o exercício de identificar os processos que tensionam as relações de gênero neste momento e questionar até mesmo o que parece óbvio. Afinal, homens são incapazes de não agredirem – considerando aqui as múltiplas formas de violência possíveis – as mulheres e crianças em um convívio continuado? O antagonismo entre homens e mulheres é natural e inevitável, sendo o papel do isolamento apenas o de evidenciar este caráter?

Uma breve análise alçada a partir da teoria da reprodução social demonstra que a realidade é mais complexa e nos oferece uma boa pista dos processos indicados pela expressão destes fenômenos: “A percepção mais importante da teoria da reprodução social é que o capitalismo é um sistema unitário que pode integrar com êxito, ainda que desigualmente, a esfera da reprodução e a esfera da produção. Mudanças em uma esfera, então, reverberam na outra. Salários baixos e cortes neoliberais no trabalho podem produzir despejos e violência doméstica no lar” [8]. Esta observação nos permite avançar não somente na compreensão do trabalho reprodutivo, como na compreensão do próprio sistema capitalista. Mais do que o isolamento social fazer emergir violências ou tensões no campo de Gênero [9], trata-se de as circunstâncias atípicas na esfera produtiva impactarem a reprodução social em seu conjunto. E diante disso, levanta-se questões vitais, objetos de profunda investigação científica para estudiosas/os da reprodução social: como se articulam as esferas produtiva e reprodutiva engendradas no ínterim da sociedade de classes e, por sua vez, qual o papel que o sistema de Gênero cumpre nesta estrutura?

Trazendo estas reflexões à atual conjuntura brasileira, observa-se que diante da pandemia enfrentada neste momento, com seu grande potencial de contágio e proporções ainda não inteiramente conhecidas, as e os trabalhadores foram retirados de suas rotinas de trabalho: a produção gradativamente tem parado ou reduzido suas atividades em determinadas regiões, gerando desemprego, fome e inseguranças diversas que alargam a vulnerabilidade social e financeira de muitas famílias; e vem mantendo seu funcionamento em outras localidades, submetendo aqueles/as que trabalham, bem como as suas famílias, a um enorme risco de adoecimento. Este cenário chama atenção também para os danos à saúde psicológica da população que se encontra entre a cruz da engrenagem capitalista e a espada do COVID-19 [10].

Onde a casa emerge como um espaço de trabalho (agora não apenas o locus socialmente determinado do trabalho doméstico) e precisa ser esquadrinhada entre o home office, a escola virtual, as reuniões profissionais, políticas, acadêmicas e várias outras atividades que ocorrem normalmente na esfera pública, pode se dizer que o momento é mais que privilegiado para evidenciar a importância do trabalho reprodutivo no dia-a-dia. Porém, apelar moralmente por essa atenção é um caminho que nos joga no fosso comum da racionalidade afetiva sobre a reprodução. Para todos os lados que se olha, a oportunidade em participar equilibradamente das tarefas domésticas e de cuidado para os membros da família (para aqueles que possuem condições objetivas de permanecer em casa por um dado período) não está sendo aproveitada, muito distante disso: cozinhar, lavar, limpar, atender, cuidar, tratar, educar etc. são tarefas que se replicaram nas casas e as mulheres viram sua carga de trabalho aumentada. Também o conteúdo das tarefas propriamente afetivas se tornou mais complexo (ao lidar com o estresse de crianças/jovens fora de suas rotinas, retidos em casa o dia inteiro, muitas vezes em situação da carência material/alimentar) ou da pressão sobre tarefas físico-afetivas, como o sexo marital, muitas vezes acontecendo como estupros conjugais. Esse sempre foi um tema muito problemático. Não seria estranho supor que a violência doméstica também aumente durante o isolamento social porque os corpos das mulheres deveriam estar mais disponíveis dentro das casas, e qualquer resistência a essa disponibilidade provoque atritos. Como classe trabalhadora sob o capitalismo, estamos alienados dos outros e de nós mesmos, e os limites entre consentir e ser coagido aparecem embaralhados porque a propriedade de nossos corpos já está em cheque nas relações de trabalho. Dalla Costa e James (1972) [11] nos diziam que a família protege e abriga o trabalhador tanto quanto o sindicato, mas também garante que seus membros nunca sejam outra coisa além de proletários, e é por essa razão que a luta da mulher trabalhadora contra a família seria crucial [12].

Como se afere, as atividades que regeneram as e os trabalhadores, cuja responsabilidade é imputada às mulheres, também abarcam cuidados psíquicos sobre os outros membros da família. Estes cuidados, por sua vez, não são usualmente recíprocos, o que ajuda a explicar o grande esgotamento emocional das mulheres trabalhadoras que suportam a carga dos serviços domésticos, a criação dos filhos, suas próprias atividades remuneradas e, por fim, cumprem o papel de fornecer apoio psíquico aos demais. Se essa situação já costuma ser preocupante, intensificam-se as possibilidades de atritos frente as condições em que o isolamento social está circunscrito. Junto a isso, é necessário considerar a negligência geral com a gravidade da pandemia, reincidentemente subestimada nos pronunciamentos oficiais do presidente Bolsonaro; bem como o tratamento midiático sobre a questão, que estimula o pânico coletivo. Ademais, não se pode ignorar as políticas ultraliberais empregadas pelo governo Bolsonaro-Mourão [13]. O nosso profundo mergulho na modalidade informal do trabalho nos últimos cinco anos também confere uma nota a mais de drama para o panorama brasileiro durante a pandemia.

Ainda, para sermos rigorosas na análise, devemos considerar que o exercício da violência pelos homens é uma via sempre disponível e socialmente tolerada para legitimar sua capacidade de mando [14]. Não obstante, a violência de gênero persiste em famílias conformadas com a ausência paterna [15] e, em sua presença, nem sempre ele é o sujeito a exercer diretamente o poder de mando e de punição [16]. Concomitantemente, a própria masculinidade se erige sobre pressupostos de força e virilidade, atribuindo aos homens a função maior, ainda que compartilhada, de prover o sustento da família. Nesse sentido, os trabalhadores vitimados pelos ataques ultraliberais descritos têm, em última instância, suas masculinidades questionadas e fragilizadas, de modo que o recurso da violência potencialmente se torna a via pela qual retoma, demarca e valida seu status de “macho”.

Logo, atesta-se que a esposa, mãe, dona de casa e trabalhadora constitui elemento indispensável à ordem burguesa, pois é a partir de seus serviços não remunerados que a própria força de trabalho é produzida biologicamente, e socializada para o mercado de trabalho. Por fim, isso recai ainda em outra percepção: a solidariedade e divisão do trabalho reprodutivo em determinadas famílias consiste em exceções que, embora aliviem o fardo de muitas trabalhadoras, não nos oferece a compreensão dos fundamentos concretos sobre os quais o vetor de gênero atua no capitalismo, de modo que não é possível erguer qualquer perspectiva de transformação ou emancipação feminina a partir dos avanços individuais observados.

Dentro do circuito do capital, a força de trabalho é um meio de produção para a reprodução ou valorização do capital. Mas dentro do circuito do trabalho assalariado, o trabalhador consome mercadorias como valores de uso (comida, vestuário, moradia, educação) para se reproduzir. Como Bhattacharya costuma explicar, o segundo circuito é um processo de produção de si mesmo para o trabalhador. Leopoldina Fortunati (1995 [17]) já havia exposto como, dentro do processo de reprodução, uma força de trabalho distinta é consumida: a de quem realiza o trabalho doméstico [18]. A necessidade imperativa do capitalismo em reproduzir a força de trabalho, tal como produzir a mais-valia, se expressam como forças fundamentais da totalidade capitalista, constantemente e simultaneamente em contradição/colaboração.

Contudo, também é de primeira importância uma teoria sobre os locais concretos dessa reprodução, que requer não apenas tratar das práticas domésticas e comunitárias, mas também sobre a geopolítica dessas comunidades sob suas hierarquias raciais e sexuais. Uma enorme porção da força de trabalho é reproduzida fora das zonas centrais de acumulação capitalista, mas onde os baixos custos de produção e relações nacionais de subordinação podem empregá-la. Ao observarmos a realidade brasileira e latinoamericana, a reprodução social ganha contornos particulares, que exigem um olhar sensível às famílias trabalhadoras. Curiosamente, mesmo ao contestar a família burguesa – que é monogâmica, heteronormativa e patriarcal –, é comum se elaborarem análises que idealizam este mesmo modelo, considerando inquestionável a presença do patriarca provedor do lar, transportando-o de forma indiscriminada ao analisar a classe trabalhadora. Na década de 1980, ao investigar a vida doméstica da população escravizada nos Estados Unidos, Angela Davis dá importante passo ao ousar distinguir as relações familiares nas comunidades negras daquelas estabelecidas entre pessoas brancas no país. À época, afirmava a autora “que a vida doméstica tinha uma imensa importância na vida social de escravas e escravos, já que lhes propiciava o único espaço em que podiam vivenciar verdadeiramente suas experiências como seres humanos. Por isso – e porque, assim como seus companheiros, também eram trabalhadoras –, as mulheres negras não eram diminuídas por suas funções domésticas, tal como acontecia com as mulheres brancas” [19]. Em seguida, Davis ressalva que isso não implicava em qualquer superioridade das mulheres sobre os homens, mas continua a argumentação apontando que os afazeres domésticos não eram exclusivamente femininos, bem como a divisão sexual destas tarefas não eram necessariamente hierárquicas (DAVIS, 2016, pp. 29-30). Conquanto a escritora tenha apresentado, à época, uma suposição romantizada das relações domésticas entre as famílias negras, a percepção que apresenta acerca das singularidades destas relações em razão das origens e sentidos em que a mão de obra negra foi historicamente subsumida mostra-se cara à análise do trabalho reprodutivo nos locais em que o trabalho escravo garantiu a racialização da classe trabalhadora. Isso implica em constatar que, mesmo que sob o capitalismo o modelo familiar burguês seja imperativo e seus padrões constituam o paradigma do nosso tempo, uma série de fatores próprios da inferência dos vetores de opressão, dominação e exploração conformam características próprias à reprodução social nos lares das e dos trabalhadores.

Para esta análise, não basta dizer que o trabalho reprodutivo é desempenhado pelas mulheres em razão das designações e atribuições do sistema de gênero, tampouco basta afirmar que pessoas pretas estarão mais sujeitas a desempenhar papeis sociais similarmente rebaixados. Aqui pedimos auxílio a um outro campo teórico que consideremos fundamental à nossa proposta, a Teoria Marxista da Dependência [20]. A crítica elaborada pela TMD ao capitalismo recai sobre essa totalidade articulada e contraditória de relações de exploração, dominação, alienação e reprodução [21]. A reprodução do capitalismo obscurece o caráter social das formas de exploração necessárias a ele e assim permanecerá se o seu caráter social não for exposto. Permitindo que se repense o que realmente significa o trabalho, as análises de reprodução enquanto processo que gera, mantém e renova a força de trabalho, oferecem a possibilidade para encarar uma nova dinâmica na luta contra a sua apropriação, e que também permite considerar todos os trabalhadores tradicionalmente excluídos dos movimentos contra a exploração [22]. O nó de articulação da TMD e TRS se traduz como o campo teórico capaz de explicar o desmantelamento da estrutura latinoamericana e as engrenagens que se movem para sua degradação física, social, política e econômica, cuja melhor representação simbólica e concreta são suas mulheres trabalhadoras, pobres, indígenas, migrantes e negras.

A tensão existente entre o rito da lucratividade e o bem-estar social foi deixada exposta pela atuação dos governos na América Latina, com o enxugamento do Estado sobre a estrutura de serviços básicos, a insuficiência das ações pulverizadas e a lógica da cidadania via consumo, transferindo os custos para as famílias que já lidam com a inclusão produtiva das mulheres sem equidade no mercado de trabalho. No continente e nos países dependentes em geral, as mulheres costumam ser trabalhadoras de reprodução doméstica e também assalariadas, ou participam de alguma atividade laboral na esfera pública. Essa distorção tem impacto direto nas condições de reprodução da família e, portanto, trazem custos diretos ao acréscimo da exploração das mulheres na esfera doméstica, seu peso em camadas específicas do exército de reserva, como também na necessidade de cumprir duplas ou triplas jornadas de trabalho. Não é à toa que um dos debates mais qualificados sobre reprodução da força de trabalho parte da inspiração de um grupo onde ele era (mal) remunerado: as empregadas domésticas. Perguntou Louise Patterson, professor comunista nos EUA, em texto de 1937: “Domingo chega – dia de descanso. Mas que descanso há para uma mãe negra que deve reunir um dia os cuidados de sua própria família numerosa? (…) A crise econômica colocou o teste mais severo sobre a mulher negra. Representando a maior proporção de trabalhadores desempregados no país, os negros são discriminados em assistência e assistência ao trabalho. Os negros precisam pagar aluguel alto pela pior moradia de qualquer cidade. Bairros negros segregados são invariavelmente deficientes em creches, playgrounds, centros de saúde e escolas. E, diante de tais condições adversas, as mulheres negras devem manter e criar suas famílias” [23]. Esse é um quadro que cabe, ainda hoje, para as famílias pobres da classe trabalhadora latinoamericana e para suas mulheres, para as quais a teoria revolucionária deve conhecer cada vez mais para poder avançar. Como também provoca Claudia Jones [24], não seria exatamente o status das mulheres (em geral) na sociedade um bom termômetro para avaliar que sociedade é esta, mas sim o status das mulheres negras trabalhadoras a melhor forma de obter um diagnóstico sobre o que se passa nessa sociedade e confrontá-la. Como a força de trabalho é fortemente racializada e suas chagas históricas habilidosamente manipuladas pelo capitalismo (e de forma ainda mais predominante nos países dependentes), isso jamais pode ser desprezado.

Deere (1976), ao se debruçar sobre a produção de subsistência das mulheres na periferia capitalista, argumentou que era a contribuição das mulheres para a manutenção e reprodução do trabalho dentro de camadas profundas do exército de reserva que permitia à esfera doméstica absorver os custos de produção e reprodução da força de trabalho [25]. A complementaridade entre salários familiares, pagos no trabalho fora da esfera doméstica, na mesma unidade doméstica, também permite entrar diretamente na questão no esgotamento do fundo de vida desses trabalhadores e, especialmente, trabalhadoras. Isso se explica à medida que, mesmo sendo possível ter acesso à quantidade necessária ou maior de bens que assegurem a reprodução das famílias, ao mesmo tempo “não podem dispor das horas e dias de descanso necessários para repor o desgaste físico e mental de longas e intensas jornadas” (OSORIO, 2012, p. 51) [26]. Cecenã (1983) [27] explica que, sobre os custos de reprodução da força de trabalho feminina se somam ainda aqueles que fazem parte da mercantilização das tarefas domésticas (creches privadas, alimentação fora de casa, etc.) de tal forma que o resultado final é um aumento do custo de reprodução de toda a força de trabalho. A baixa capacidade de acessar bens-salário durante a pandemia, onde o próprio salário ou renda está ameaçado ou já é inexistente, significa ainda mais precárias condições de atenuar os efeitos do desgaste provocado pela superexploração do trabalho na periferia [28].

É exatamente por isso que ficar em casa, um mês que seja, se traduz num verdadeiro inferno para muitos brasileiros. O ambiente doméstico é onde parte fundamental da reprodução social ocorre, mas também funciona como um teto sobre a cabeça para dormir e repor alguma parte do desgaste do fundo de vida desses trabalhadores. Com o fundo de consumo (salários e renda) ainda mais destroçado durante o distanciamento social, a existência de muitas famílias passa a ser a sinalização de uma não-existência: como transformar valores de uso, trazidos pelos salários, se eles não existem mais? Nesse aspecto, as mulheres na produção doméstica e na cooperação intracomunidade ainda fazem o verdadeiro milagre da multiplicação e partilha do pão.

Se em alguma medida o conjunto destas percepções e reflexões teóricas pode evidenciar determinadas singularidades e diferenciações, as respostas para as inquietações e questionamentos levantados pela TRS apontam para o coletivo: não se trata de reivindicar uma carga axiológica positiva ou de humanizar o trabalho reprodutivo, de exigir sua remuneração, de – otimisticamente – buscar uma nova divisão de tarefas promovida por transformações culturais no bojo das relações de gênero. As revolucionárias russas do início do século XX e o Partido dos Panteras Negras provocaram o debate e realizaram, em diferentes expressões, programas de socialização do trabalho reprodutivo, assistência à infância e alimentação coletiva. Estava muito claro que dar de comer, educar e vestir a classe trabalhadora não se tratava de um mero apelo atrativo das organizações, mas necessidades concretas de vidas concretas. Chamando atenção à esfera da reprodução social, esses comunistas desafiavam poderosamente as contradições mais violentas do capitalismo, a permanência da fome, das vidas degradadas, discriminações, inseguranças e ignorâncias.

As medidas que os governos estão tomando são indicadores da escala da crise, decisões de emergência para evitar uma grande crise reprodutiva. Vemos, claramente, como os marcos do capitalismo sobre o salvamento da reprodução são orientados pela produção e para a produção. Mas sabemos que o capitalismo sozinho não pode e nem resolverá suas próprias contradições. Ao contrário, este momento único, ao evidenciar a funcionalidade da reprodução social no cerne da sociedade de classes, tanto elucida suas imbricações dialéticas quanto atesta a socialização do trabalho reprodutivo como única via pela qual as mulheres trabalhadoras podem libertar-se destas incumbências, sendo necessário, em última instância, engendrar uma “atrofia gradual da economia individual que se processa na família” [29].

3. Uma oportunidade?

O modo de produção capitalista transformou todas os campos do ambiente e da experiência humana para propulsionar a geração de mais-valia, incluindo as relações afetivas, a relação humana com o meio ambiente, o espaço e de forma ainda mais severa, com o tempo. Isso é fundado na separação dos trabalhadores dos meios de sua subsistência. A história foi colocada sob as rédeas do caminho da valorização do valor. Conhecimentos populares, tradições de trabalho e cuidado comunitários, leis, normas e cosmologias ancestrais foram postos de lado e invalidados como práticas relevantes à vida e reprodução. Além disso, muitas tarefas reprodutivas, principalmente nos países centrais, foram mercantilizadas ao longo do tempo. A pandemia forçou, para algumas dessas tarefas, um retorno ao lar e as contradições de gênero que carrega.

O destaque, debate e organização da reprodução enquanto prioridade frente a hegemonia da valorização capitalista também diz respeito à crítica da ideia neoclássica de que o consumo é a única forma viável de atender às necessidades humanas, cujo conjunto abrange a totalização da propriedade privada e a institucionalização do mercado, excluindo parte considerável da população de seus benefícios em qualidade de vida. De forma ainda mais vigorosa em países dependentes como na América Latina, este mercado restritivo e a formação de seu exército de reserva mantém imensos contingentes de trabalhadores efetivamente capazes de trabalhar fora da relação de remuneração, limitando o seu acesso aos bens e serviços.

De encontro às medidas neoliberais e à priorização de interesses privados, países socialistas demonstram quais medidas de fato possuem efeitos positivos na contenção da COVID-19 e na garantia à sobrevivência e dignidade de suas respectivas populações durante o período de quarentena, isolamento ou distanciamento social, a depender de cada local. Para citar apenas algumas dessas medidas que foram efetivadas na China, Vietnã, Coreia Popular e Cuba, dentre outros – de acordo às necessidades específicas que cada um enfrenta – temos a implementação de testes em massa, o estabelecimento de estado de sítio para os focos em que se detectou transmissão comunitária do vírus, o reordenamento de atividades industriais para a produção dos equipamentos pertinentes, como respiradores, e a garantia de acesso gratuito à saúde e a condições de vida adequadas durante a pandemia, a exemplo da distribuição de insumos alimentícios e de higiene para larga parcela das e dos trabalhadores. Por sua vez, nos países capitalistas, as organizações comunistas [30] têm assumido a vanguarda na defesa da implementação de medidas de contenção da pandemia e de políticas populares para a classe trabalhadora. O fechamento de setores produtivos não essenciais, o esforço em diagnosticar com celeridade os casos suspeitos e a garantia dos direitos trabalhistas representam apenas algumas de suas reivindicações. Em 29 de março de 2020, foi publicizado o documento “Pandemia Mundial: Declaração dos Partidos Comunistas da América do Sul”, em que os partidos signatários destacam o papel de Cuba “em inovação médica e bioquímica e ética humanista” e denunciam a precarização da saúde pública na região, responsabilizando “políticas antipopulares aplicadas por governos a serviço do grande capital”.

Se esses meses que concentram o momento crítico da crise (que se expressa na saúde coletiva) não serão revertidos numa oportunidade revolucionária para se transformar o modo de produção, de propriedade, consumo e vida das pessoas (e não serão, em absoluto, através de lições de moral via twitter, e com a classe trabalhadora acentuadamente desorganizada, perplexa), que outra oportunidade é essa? Embora o futuro da reprodução possa não se tornar aquele de uma socialização industrial da reprodução – como vislumbrado pelas comunistas da década de 1970, como Bambirra e Davis – as lavanderias coletivas, restaurantes comunitários, espaços de convivência priorizados frente aos espaços domésticos individuais, acesso universal à creche e escola integral e estruturas de saúde coletiva preventiva seguem sendo objetivos que podemos alcançar com nossas mãos. Todos eles parecem absurdos agora, quando o estado de crise para a saúde que o capitalismo aprofunda impede seu princípio mais básico: que as pessoas se encontrem e trabalhem pela reprodução digna, juntas. Mas se trata do contrário disto: é agora que fazem ainda mais sentido em serem evocados, na medida que muitos governos já tomaram a decisão de abandonar as pessoas ao próprio destino (R$ 600 reais é uma boa expressão disso), em que a violência e o conflito impera nas casas, ou que estamos ainda mais exaustas em cuidar, acalmar, lavar, nutrir e amar todos os outros.

Dedicar alguma atenção à dinâmica dos valores de uso, cujas relações de consumo não são mediadas pelo mercado em suas capacidades ainda limitadas de envolvimento coletivo (as formas embrionárias de economias populares, em que pese as críticas, devem ser vistas com mais atenção) colabora no reconhecimento de que existem modalidades de trabalho não diretamente submetidas à trocas monetárias. Sobre essas possibilidades não imediatamente mediadas pelo mercado, Hinkelammert e Mora (2005) [31] sugerem que aproximam as pessoas das perguntas: como é produzido, distribuído e consumido esses produtos que fazem parte da nossa vida? São partes do processo de reprodução da vida humana e isso implica que nenhum outro tipo de valor pode ser realizado sem entrar em uma simbiose com os valores de uso.

Os meios de produção coletivos ou familiares tem como razão de ser o fortalecimento das condições de reprodução das comunidades, que tem a dimensão regional e local uma referência de suma importância, porque suas relações de produção e reprodução dependem imprescindivelmente das interações menos desarmônicas com o espaço natural e social a sua volta. Tais condições promovem o desenvolvimento do trabalho, energia comunitária, recursos institucionais e políticos, conhecimentos populares e matrizes produtivas concentrados na expressão digna da vida. Por exemplo, o distanciamento social, o estado de quarentena, ou mesmo qualquer determinação que fosse entendida como de benefício da saúde pública, poderiam ser resultado de uma decisão coletiva. E o que dizer então do risco que correm as populações indígenas, cujo atendimento à saúde já foi atacado e para as quais o confinamento e existência social atomizada não se trata de uma opção, mas de uma impossibilidade material e espiritual? [32] As soluções para isso perpassam necessariamente um acesso mais democrático aos conhecimentos, educação popular em todos os seus níveis, valorização do trabalho científico e sua produção, e participação efetiva das pessoas nos processos políticos-administrativos. Se hoje existe um verdadeiro digladiar midiático sobre opiniões (diversas) de especialistas em saúde e precisamos decidir, um bocado desnorteados, qual tipo de confinamento adotar, qual tratamento acolher, questionar a existência do vírus e da pandemia ou entendê-la como uma punição profetizada em algum texto judaico-cristão, é porque falharam muito antes as formas de organização da classe trabalhadora contra o obscurantismo, o individualismo e o direito à educação cientifica.

As táticas organizativas das trabalhadoras domésticas remuneradas surgiram exatamente do caráter peculiar de sua ocupação, totalmente vulneráveis em momentos em que as categorias laborais fortaleciam suas estruturas sindicais e institucionais. Hoje em dia, muitas outras ocupações se encontram em situação semelhante, ou porque foram expostas à chuva pelas reformas que atacaram o emprego ou porque já foram criados como trabalhos precários. As denúncias e exigências dos comunistas sobre as alternativas mais imediatas e objetivas que o Estado deve atender durante e após a crise devem participar do mesmo curso revolucionário que o terreno da reprodução social quer desafiar. Totalmente cientes de que a parte mais vulnerável dos que trabalham anseia pelo retorno à normalidade (tal como anseia, ainda mais sofregamente, a classe patronal) nos parece que a tarefa em nossas mãos é garantir que essa normalidade capitalista seja definitivamente rompida e se torne inalcançável nas mentes da classe trabalhadora. Que a normalidade que brutaliza as pessoas, sacrifica as vidas de seus familiares e não pode salvá-las após uma vida inteira de trabalho, visível e invisível neste sociedade, nunca mais seja desejável por nenhum de nós.


Notas:

[1] Marx comenta: O primeiro “Statute of Labourer” [Estatuto dos Trabalhadores] (23 Eduardo III, 1349) teve como pretexto imediato (não sua causa, pois esse tipo de legislação durou por séculos depois de desaparecido o pretexto de seu surgimento) na grande peste que dizimou a população ao ponto de, como diz um escritor tory, “a dificuldade de se empregar trabalhadores por preços razoáveis” (isto é, por preços que deixem a seus empregadores uma quantidade razoável de mais-trabalho) “ter se tornado, de fato, intolerável”. Salários razoáveis foram, assim, fixados compulsoriamente por lei, assim como os limites da jornada de trabalho (p. 434).

[2] Falamos sobre a morte como destino final, mas o caminho até lá tende a ser bastante longo para as famílias de trabalhadores, em geral. A OIT aponta que 81% da força de trabalho global já se encontra afetada diretamente pelos efeitos deste momento.

[3] E isso nos recorda Engels, em sua Dialética da Natureza [1883]: “Mas se já foi necessário o trabalho de milhares de anos para aprendermos até certo ponto a calcular as conseqüências naturais mais remotas de nossas ações visando à produção, ainda é mais difícil em relação às conseqüências sociais mais remotas dessas ações (…).

[4] MARX, 2013, p. 392. O Capital – Livro I – Crítica da Economia Política. São Paulo: Boitempo.

[5] Ibid. pp. 362-363.

[6] Nesse ponto é um pouco tolo prever, mas suspeitamos que a subnotificação diante da ausência de testes ou procedimento para começar a utilizá-los, somada ao ritmo próprio em que o vírus se dissemina ao longo do tempo em cada região (a partir de quando surgiu, qual o nível de isolamento social, higiene coletiva e individual, densidade populacional etc.) também seja parte da visão parcial que temos sobre os casos de COVID-19 nos países dependentes do hemisfério sul, principalmente.

[7] No Brasil muitas informações ainda estão sendo apuradas visto que a quarentena não foi estabelecida oficialmente pela instância federal e há variações nas medidas adotadas por cada estado, mas já se registra um aumento de 17% relativo ao número de denúncias de violência doméstica efetuadas através do canal Ligue 180 durante o mês de março. Ver Carta Capital, “Violência doméstica durante a quarentena: como se proteger de um abusador?”, 30 mar. 2020, acesso em 10 abr. 2020.

[8] BHATTACHARYA, 2019, p. 104. “O que é a Teoria da Reprodução Social?”, Revista Outubro.

[9] Em publicação recente, a socióloga e feminista marxista, Doutora em Educação e Ciências Sociais pela UNICAMP, Marília Moschkovich, para se referir a determinados movimentos, cunhou a expressão “campo de Gênero”. A autora explica: “[…] escolho chama-los assim, uma vez que o Gênero é, em última instância, o sistema simbólico que regula as práticas corporais tendo em vista a arena reprodutiva – ou seja, o domínio da sexualidade, do desejo, das práticas sexuais e até mesmo do parentesco e da família, todos têm cruzamentos centrais com o sistema de gênero”. Ver Marília Moschkovich em A Grande Tarefa do Marxismo é o Sexo, Blog da Boitempo, 10 jan. 2020, disponível online, acesso em 5 abr. 2020.

[10] Segundo reportagem da seção brasileira do El País, publicada em 18 de março, “um estudo da Sociedade Chinesa de Psicologia descobriu em fevereiro que 42,6% dos cidadãos chineses tinham sintomas de ansiedade relacionados ao coronavírus, com indícios de depressão em 16,6% dos casos”.

[11] DALLA COSTA, Mariarosa. JAMES, Selma. El poder de la mujer y la subversión de la comunidad. Siglo XXI, México, 1972.

[12] Ainda que o capitalismo possa abstratamente prescindir das famílias, concretamente esse sacrifício poderia ser cáustico à sua reprodução total. O custo do investimento que os governos necessitariam empenhar em inúmeras atividades reprodutivas e o alvoroço ideológico que a falta de disciplinamento e controle que as famílias exercem ao longo das gerações também poderia ser impactante a um nível perigoso para a manutenção do status quo. Embora as tarefas do trabalho doméstico tenham sido relativamente atenuadas pelas inovações tecnologias e mudanças dos padrões sociais ao longo do tempo, e seja problemático afirmar categoricamente sua indispensabilidade para o capitalismo, também é seguro dizer que as famílias ainda são um suporte muito relevante para o sistema, material e ideologicamente. No panorama contemporâneo global, a dinâmica do capitalismo segue distante da socialização das tarefas reprodutivas domésticas feitas no interior das famílias, ao contrário, deposita cada vez mais encargos e demandas, arrochando o tempo e a capacidade de consumo dos trabalhadores, além da restrição das formas de assistência social.

[13] A MP 927, lançada em 22 de março, reúne uma série de ataques às e aos trabalhadores, ameaçando suspender seus salários enquanto durar a quarentena, submetendo-lhes à sanha dos patrões por meio de contratos individuais pretensamente superiores a dispositivos legais pré-existentes, permitindo férias coletivas não remuneradas, dentre outras questões. E ainda que sob pressão o governo tenha recuado em algumas medidas, alterando ou mesmo suprimindo alguns artigos, a MP 928 publicada no dia seguinte manteve o caráter antipopular. Ambas as medidas estão disponíveis no site oficial do planalto (planalto.gov.br).

[14] Reflexo disso é a existência aproximadamente 1,2 milhões de casos de violência doméstica em trâmite na justiça brasileira. Ver Humans Rights Watch, Relatório Mundial 2019, disponível online, acesso em 10 abr. 2020.

[15] É importante informar que no Brasil mais que a metade das famílias são monoparentais e a maior parte delas com mulheres sendo chefes de família e na qual a vulnerabilidade do trabalho é fortíssima. A situação de ser uma chefe de família sem cônjuge com filhos e sem os benefícios que a formalização do trabalho garante deteriora ainda mais as condições de reprodução de seus membros.

[16] Nas palavras de Heleieth I. B. Saffioti: “Com relação a crianças e a adolescentes, também as mulheres podem desempenhar, por delegação, a função patriarcal. Efetivamente, isto ocorre com frequência. […] Várias formas de violência de gênero são perpetradas contra as esposas sem que o agente imediato destas práticas seja, necessariamente, o patriarca. Ao contrário, este até parece afável em várias circunstâncias. A ordem patriarcal de gênero, rigorosamente, prescinde mesmo de sua presença física para funcionar.” (SAFFIOTI, 2001, pp. 115-16).

[17] FORTUNATI, Leopoldina. The Arcane of Reproduction: Housework, Prostitution, Labor and Capital. New York: Autonomedia, 1995.

[18] Fortunati (1995) também elucida que na produção de mercadorias, o valor de troca da força de trabalho como capacidade produtiva é gerado e seu valor de uso é consumido, enquanto na reprodução, o valor de uso da força de trabalho é produzido e seu valor de troca é consumido.

[19] DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 29.

[20] Cabe destacar, entre seus pensadores, os brasileiros Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos. O mineiro Ruy Mauro Marini graduou-se em administração de empresas em 1957 e seguiu sua formação na França, onde passou os dois anos consequentes. Ao retornar para o Brasil, iniciou a relação com um grupo que se tornaria a organização Política Operaria (POLOP) e foi um dos colaboradores na criação da Universidade de Brasília em 1962. Após o golpe militar em 1964, permaneceu um breve período clandestino e seguiu para um exílio no Chile e México – onde foi professor da Universidade do Chile, permanecendo até 1973, e na Universidade Nacional Autônoma (UNAM) do México, a partir de 1974. Vânia Bambirra, que se tornou docente no Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) em 1963, também interrompe suas atividades acadêmicas e após dois anos na clandestinidade em São Paulo, parte para o exilio ao lado de Theotônio dos Santos, onde, assim como Marini, é convidada para lecionar do Centro de Estudios Socioeconómicos (CESO) da Universidade do Chile (SEABRA, 2013). Dos Santos, por sua vez, economista de formação, participa do primeiro grupo de pesquisa do CESO sobre a dependência latinoamericana, com Orlando Caputo, Sérgio Ramos, Roberto Pizarro e a própria Bambirra. O primeiro trabalho de maior pujança de Marini, Subdesarrollo e Revolucion, publicado em 1969, inscreve o autor na tradição da dependência, em uma linha semelhante ao economista dependentista Gunder Frank. O desafio teórico e concreto que a Teoria Marxista da Dependência tomará para si será investigar e explicar a forma particular que o capitalismo latinoamericano dependente acabou adotando em sua formação. A vanguarda crítica de Marini entre as teorias da dependência e dentro da Teoria Marxista da Dependência foi vincular a estrutura dependente ou subdesenvolvida à ocorrência da superexploração do trabalho. Desde pronto, porém, os autores da TMD não percebiam os países de herança colonial como pré-capitalistas na ascensão do capitalismo mundial, ou seja, não se tratava de modos de produção distintos, mas do mesmo modo de produção com especificidades, sendo a história do subdesenvolvimento latinoamericano também a história do desenvolvimento do sistema capitalista mundial. Além disso, a categoria superexploração ocupou centralidade diante de outras categorias estratégicas, sempre associadas, que buscavam interpretar a realidade latinoamericana, entre elas o intercâmbio desigual, subimperialismo e a cisão nas fases do ciclo do capital.

[21] Jaime Osorio comenta que a atividade unificadora, em referência a busca pela compreensão da totalidade, “não é senão a lógica do capital, a qual como um tornado derruba, absorve, faz girar e eleva pelos ares todas as relações que encontra em seu caminho, reorganizando-as e deixando nelas sua marca (2012, p. 37).

[22] Marini nos lembra que “restringir la clase obrera a los trabajadores asalariados que producen la riqueza material, es decir, el valor de uso sobre el que reposa el concepto de valor, corresponde a perder de vista el proceso global de la reproducción capitalista” (1998, p. 279). In El concepto de trabajo productivo: nota metodológica [1998] in América Latina, dependencia y globalización / Ruy Mauro Marini; antología y presentación, Carlos Eduardo Martins. — México, D. F.: Siglo XXI Editores; Buenos Aires : CLACSO, 2015.

[23] Louise Thompson Patterson, “Rumo a um amanhecer mais brilhante (1936)” (tradução nossa).

[24] Claudia Jones, “Um fim ao descaso dos problemas das mulheres negras” (tradução nossa) (citado em Bill V. Mullen, Philadelphia: Temple University Press, 2015), p. 154.

[25] Seria essa forma de divisão do trabalho e articulação das esferas produtiva/reprodutiva, ao defrontar-se com as formas de superexploração e arrocho em outros termos, que serve à redução do valor da força de trabalho para o capital, ao mesmo tempo aumentando a taxa de mais-valia para uma acumulação na periferia baseada na dependência estrutural.

[26] OSORIO, J. Padrão de reprodução do capital: uma proposta teórica. In: FERREIRA, C.; OSORIO, J.; LUCE, M. Padrão de reprodução do capital: contribuições da Teoria Marxista da Dependência. São Paulo: Boitempo, 2012a. p. 37-86.

[27] CECEÑA, A. E. Fuerza de trabajo femenina y explotación capitalista. Cuadernos CIDAMO, nº 11, México, CIDAMO, A.C., 1983.

[28] A violação do valor da força de trabalho, destacada por Ruy Mauro Marini, também é pontuada por Marx em muitas passagens d’o Capital. Como o citado pelo último, no livro I: “Mas como é possível, então, que um grande número, e, poderíamos dizer, a grande maioria dos trabalhadores, viva em condições ainda mais econômicas? Só podem fazê-lo recorrendo a expedientes cujo segredo apenas o trabalhador conhece: reduzindo sua ração diária, comendo pão de centeio em vez de pão de trigo, comendo pouca carne ou até mesmo nenhuma, fazendo o mesmo com a manteiga e os condimentos, amontoando a família em uma ou duas peças, onde moças e rapazes dormem juntos, frequentemente sobre o mesmo colchão de palha, economizando no vestuário, na roupa de baixo, nos meios de limpeza, renunciando aos lazeres dominicais, em suma, dispondo-se às mais dolorosas privações. Uma vez alcançado esse limite extremo, o aumento mais ínfimo nos preços dos meios de subsistência, um desemprego, uma doença multiplicam a miséria do trabalhador e o arruínam por completo. As dívidas se acumulam, o crédito é recusado, as roupas, os móveis mais necessários são recolhidos pela casa de penhores e, por fim, a família solicita sua inscrição na lista dos indigentes”. Leonard Horner, em “Reports of Insp. of Fact. for 30th April 1857”. De fato, nesse “paraíso dos capitalistas”, a menor variação nos preços dos meios de subsistência mais necessários é seguida por uma variação no número de óbitos e delitos! (Ver Manifesto dos Maatschappij: De Vlamingen Vooruit!, Bruxelas, 1860, p. 12.) (2013, p. 910).

[29] Ver Ana Barradas, “Falta um programa para as mulheres”, Lavrapalavra, 3 ago 2019, disponível online, acesso em 10 abr. 2020.

[30] Com os olhos voltados às experiências socialistas bem sucedidas no controle da pandemia, as e os comunistas brasileiros não tardaram a apresentar suas reivindicações. Sob o mote “A vida acima dos lucros!”, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) lançou sua Proposta de Programa Emergencial. Algumas das exigências trazidas são relativas à: revogação da Ementa Constitucional 95, referente ao teto de gastos públicos; SUS 100% estatal, público e universal; estatização da indústria farmacêutica; garantia de acesso 24h às unidades de saúde em todo território nacional; garantia de diagnóstico em todos os casos suspeitos de infecção por COVID-19; ampliação do programa de seguro desemprego; ampliação e garantia de acesso ao Bolsa Família; tabelamento dos preços de gênero de primeira necessidade; suspensão de corte e de cobrança de pagamento dos serviços básicos, como água, luz, internet e gás, além do aluguel por um período mínimo de 3 meses .

[31] HINKELAMERT, Franz; MORA, Henry. Hay una economía para la vida. Costa Rica, Editorial Departamento Ecuménico de Investigaciones, 2005.

[32] O coronavírus já levou a três indígenas a óbito no Brasil. Uma senhora de 87 anos, da etnia Borari, morreu em Alter do Chão (PA), vítima de covid-19, um jovem Yanomami, de 15 anos, residente em Roraima e um homem, de 55 anos, da etnia Mura e que morava na capital amazonense. Os dados são do Instituto Socioambiental (ISA) (As informações são da página congressoemfoco.uol.com.br).

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