A abolição da propriedade fundiária

Por Karl Marx, traduzido por Matheus G. Ferreira Silva

Memorando de Marx à Applegarth em 1869 abordando a questão da propriedade fundiária e sua necessária superação pelo “grande movimento econômico do século XIX”.


A propriedade do solo – a fonte original de toda a riqueza – tornou-se o grande problema cuja solução depende do futuro da classe trabalhadora.

Embora não pretendamos discutir aqui todo o argumento apresentado pelos defensores deste tipo de propriedade – juristas, filósofos e economistas políticos – apenas declararemos primeiramente que eles disfarçam o fato original da conquista sob o manto do “direito natural”. Se a conquista constitui um direito natural da parte de poucos, muitos têm apenas que reunir força suficiente para adquirir o direito natural de reconquistar o que lhes foi tirado. No progresso da história, os conquistadores tentam dar uma espécie de sanção social ao seu título original, derivado da força bruta, através da instrumentalidade das leis impostas por eles mesmos. E então, vem o filósofo que declara que essas leis implicam o consentimento universal da sociedade. Se, de fato, a propriedade privada na terra é baseada em tal consentimento universal, evidentemente este se extingue a partir do momento em que a maioria de uma sociedade discorda de justificá-la. No entanto, deixando de lado os chamados “direitos” da propriedade, afirmamos que o desenvolvimento econômico da sociedade, o aumento e concentração de pessoas, a necessidade de agricultura de trabalho coletivo e organizado, bem como de maquinaria e dispositivos similares, tornam a nacionalização da terra uma “necessidade social”, contra a qual nenhuma quantidade de conversa sobre os direitos de propriedade vai valer.

As mudanças ditadas pela necessidade social certamente irão progredir mais cedo ou mais tarde, porque as necessidades imperativas da sociedade devem ser satisfeitas, e a legislação sempre será forçada a se adaptar a elas.

O que necessitamos é de uma produção diária crescente, cujas exigências não podem ser satisfeitas permitindo que alguns indivíduos a regulem de acordo com seus caprichos e interesses particulares, ou que ignorantemente esgotem os poderes do solo. Todos os métodos modernos, como irrigação, drenagem, lavra a vapor, tratamento químico, etc., devem ser aplicados à agricultura. Mas o conhecimento científico que possuímos e os meios técnicos de agricultura que controlamos, como máquinas, etc., nunca podem ser aplicados com sucesso, a não ser que cultivemos a terra em larga escala. O cultivo em grande escala – mesmo sob a sua atual forma capitalista que degrada o próprio produtor a um mero fardo – tem que mostrar resultados muito superiores ao cultivo pequeno e fragmentado – portanto, caso aplicado em dimensões nacionais, não teríamos um imenso salto produtivo? As necessidades cada vez maiores do povo, de um lado, o preço crescente dos produtos agrícolas, de outro, oferecem a prova irrefutável de que a nacionalização da terra se tornou uma “necessidade social”. A diminuição da produtividade agrícola que é resultado do abuso individual deixa de ser possível assim que o cultivo é levado sob o controle, ao custo e em benefício da nação.

A França tem sido frequentemente mencionada, mas devido à sua propriedade camponesa, está mais longe da nacionalização da terra do que a Inglaterra com o seu latifundiário. Na França, é verdade, o solo é acessível a todos que podem comprá-lo, mas essa mesma situação provocou a divisão de terras em pequenas parcelas cultivadas por homens com poucos recursos e principalmente dependentes dos seus trabalhos corporais e de suas famílias. Essa forma de propriedade fundiária e o cultivo fragmentado que ela exige não apenas exclui todo o aparelhamento das modernas melhorias agrícolas, mas sim converte simultaneamente o próprio agricultor no inimigo mais ferrenho de todo progresso social e, acima de tudo, da nacionalização da terra. Encadeado ao solo sobre o qual ele tem que gastar todas as suas energias vitais, a fim de obter um retorno relativamente pequeno, obrigado a doar a maior parte de sua produção para o estado na forma de impostos, para a tribo da lei na forma de custas judiciais, e ao usurário sob a forma de juros; totalmente ignorante do movimento social fora de seu campo de ação mesquinho; ele ainda se agarra com afeição frenética ao seu local de solo e sua propriedade meramente nominal. Deste modo, o camponês francês foi lançado em um antagonismo fatal para a classe trabalhadora industrial. A propriedade do campesinato é, portanto, o maior obstáculo à “nacionalização da terra”. A França, em seu estado atual, certamente não é o lugar onde devemos procurar uma solução para esse grande problema. Nacionalizar a terra e deixá-la em pequenas parcelas para indivíduos ou sociedades trabalhadoras, sob um governo de classe média, somente traria uma competição irresponsável entre eles, e causaria um certo aumento de “aluguel”, e assim emprestaria novas instalações para os apropriadores alimentarem os produtores.

No Congresso da Internacional em Bruxelas, em 1868, um dos meus amigos disse:

“A pequena propriedade privada está condenada pelo veredicto da ciência; a grande propriedade privada pela justiça. Resta então uma alternativa. O solo deve tornar-se propriedade de associações rurais ou propriedade de toda a nação. O futuro decidirá a questão.”

Eu digo o contrário:

“O futuro decidirá que a terra não pode ser de propriedade individual, mas somente de propriedade nacional. Deixar o solo nas mãos de trabalhadores rurais associados seria entregar toda a sociedade a uma classe exclusiva de produtores. A nacionalização da terra resultará numa completa mudança das relações entre trabalho e capital e finalmente dar um fim à produção capitalista, seja industrial ou rural. Só então as distinções e privilégios de classe desaparecerão juntamente com a base econômica da qual se originaram e a sociedade se transformará numa associação de “produtores”. Viver sobre o trabalho de outras pessoas tornar-se-á uma coisa do passado. Não haverá mais um governo nem um estado distinto da própria sociedade. “

Agricultura, mineração, fabricação, em uma palavra, todos os ramos de produção serão gradualmente organizados da forma mais eficaz. A centralização nacional dos meios de produção tornar-se-á a base natural de uma sociedade composta por associações de produtores livres e iguais que atuam conscientemente sobre um plano comum e racional. Este é o objetivo para o qual o grande movimento econômico do século XIX está tendendo.


  • Este texto é um memorando para Robert Applegarth de 3 de dezembro de 1869

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