Em qual tempo nós vivemos?

Por Robert Maggiori, via Libération, traduzido por Daniel Alves Teixeira.

Henri Bergson não estava errado em dizer que todo grande filósofo não quis no fundo enunciar senão uma só coisa e que empregou toda sua vida para o fazer. Para os pensadores clássicos, nós chegamos a extrair essa ideia central, prenhe de inúmeras outras, que durante séculos fecundaram o pensamento. É mais arriscado praticar o mesmo exercício com os filósofos contemporâneos cujas obras estão em progresso e suscetíveis ainda de criar o novo. Se tratando de Jacques Rancière, não é no entanto insensato afirmar que essa “coisa” se trata da maneira pela qual ele pensou as relações entre estética e política, e ao sentido inovador que ele deu à “velha” ideia da emancipação.


Jacques Rancière publica, sob a forma de uma conversação (por escrito) com Eric Hazan, uma curta obra, En quel temps vivons-nous? (Em que tempo nós vivemos?), que, se inscrevendo inteiramente no quadro geral de seu pensamento, se revela ligada diretamente com, justamente, as questões de nosso tempo, aquelas que a atualidade política obriga a colocar, e que foram colocadas no curso da recente campanha para eleição presidencial (no momento em que a obra foi impressa, a vitória de Marine Le Pen não estava excluída): qual definição nós podemos dar ainda do “povo”? E sobre o sistema de “representação”? O que “representa” um eleito, quando ele não saiu do território, de uma história política enraizada na realidade local, mas escolhido entre as “pessoas” (da sociedade civil) para “se juntar” a um conjunto composto que se constitui durante o caminho (“em marcha”), ou “eleito” via uma plataforma informática e “formado” durante rápidos estágios de administração e comunicação?

Insurreição e revolução

Jacques Rancière é um dos filósofos franceses mais influentes de hoje, que nós poderíamos inscrever, a despeito de abissais diferenças, na mesma constelação que Alain Badiou, Slavoj Zizek, Giorgio Agamben, Ernesto Laclau (a referência teórica do Podemos), Chantal Mouffe, Toni Negri ou Michael Hardt -, mas que está na verdade a frente de uma obra (uma quarentena de obras) dificilmente classificáveis, que suscitaram um número considerável de estudos críticos e comentários.

Nascido em 1940 na Algéria, professor emérito da universidade Paris – VIII, e professor de filosofia na European Graduate School de Saas-Fee (Suiça), Rancière fez seus estudos na Ecole Normale Supérieure, então governada ideologicamente por Louis Althusser. Com Althusser, Etienne Balibar, Roger Stablet e Pierre Macherey, ele participou da redação de Lire le Capital (1965) [Ler o Capital], mas a onda profunda de Maio de 68 o conduziu a posições distantes daquelas do gigante da rua Ulm, cujas próprias bases ele crítica – um marxismo erigido em ciência – em La Leçon d’Althusser, publicado em 1974, ano em que ele funda a revista Révoltes Logiques [Revoltas Lógicas]. Contra o “teoricismo” ambiente, Rancière considera que os trabalhadores são perfeitamente capazes de compreender sua própria opressão e de se emancipar eles mesmos sem a necessidade de uma elite intelectual que os guiem. É para demonstrar isso, e fundamentar o postulado de uma igualdade das inteligências, que ele empreende uma série de estudos sobre a emancipação dos trabalhadores no século XIX, de onde nasceram La Parole Ouvrière (com Arlette Farge, 1975) [A palavra trabalhadora], La Nuit des Prolétaires (1981) [A noite dos proletários], Le Philosophe et ses Pauvres (1983) [O filósofo e seus Pobres], Louis-Gabriel Gauny – Le philosophe plébéien (1985) [Louis-Gabriel Gauny – O filósofo plebeu], ou Le Maître Ignorant (1987) [O Mestre Ignorante]. Se interessando também pelo cinema, ele não cessará de se interrogar sobre as noções de povo, de insurreição, de revolução, de democracia, como também sobre as regras “que permitem a um sistema representativo se declarar democrático”. Em La Haine de la Démocratie (2005) [O ódio a democracia], ele havia sublinhado a oposição entre “a lógica democrática e a lógica representativa” e lembrado “um certo número de princípios” suscetíveis de injetar “mais democracia nas instituições”, por exemplo “o sorteio, os mandatos curtos, não cumulativos e não renováveis.”

E a este problema que ele retorna em En quel temps vivons-nous? [Em qual tempo nós vivemos?], onde ele avança que “a decomposição do sistema representativo” é na verdade “uma velha lua”, que “sustenta desde os anos 1880 as esperanças e as ilusões de uma esquerda “radical” sempre pronta para ver nas fracas taxas de participação a tal ou qual eleição parcial a prova de um desinvestimento massivo do sistema eleitoral.” Ter a representação por agonizante, é na realidade estimar que seu princípio é mesmo a democracia. Ora, precisa o filósofo, “a democracia não é a escolha dos representantes, ele é o poder daqueles que não são qualificados para exercer o poder.” A “doxa dominante” vê a representação como “movimento que parte debaixo”, na qual “o povo está como um corpo coletivo que escolhe para si os representantes”. Mas não é assim que funciona, segundo Rancière. “Um povo político, não é um dado preexistente, é um resultado. Não é povo que se representa mas a representação que produz um certo povo.”

Manifestação de Igualdade

No espírito da daqueles que inventaram o sistema representativo, existia a ideia, implícita, de que uma parte da sociedade é “naturalmente apta, pela sua posição, para representar os interesses gerais da sociedade.” Isso criou não somente a “ilusão democrática”, pela qual “as pessoas se submetem a um poder do qual elas imaginam serem a fonte”, mas faz com que a representação produza uma profissão exercida por uma classe de políticos que, “pelo essencial, se auto-reproduz e faz validar essa auto-reprodução pela forma específica de povo que ela produz, a saber, o corpo eleitoral.” Mas como desindexar o princípio democrático do princípio da representação? Ora, concebendo de outra forma a democracia: não como forma de governo mas como manifestação, imprevisível e conflitiva, da igualdade, da ação igualitária que quebra, mesmo que por um momento, o trabalho de governo (isso que Rancière chama de polícia, em oposição à política) ou a organização hierárquica, inegualitária, das posições, dos lugares, da divisão social e das funções, abrindo outros campos de possibilidades e de oportunidades de vida em comum. As oligarquias governamentais, as castas dos profissionais do poder e a “lógica hierárquica de reprodução dos representantes legítimos” não se impõe e não perduram de fato senão em razão da ausência, independentemente do sistema representativo, de “poderes democráticos autônomos e poderosos que construíssem um outro povo, um povo igualitário em movimento.” Tal é a tarefa que se impõe aos “tempos em que nós vivemos”: “construir outras formas de vida”, “outros olhares sobre os problemas que nos propõe a ordem dominante.” Tal é a tarefa estética da política.

Estética da política

Os terrenos onde a política e a estética se sobrepõem já foram cultivados, notadamente por Adorno ou Benjamin. Mas Rancière não situa as relações entre a arte e a política nem na estetização da política, ou sua transformação em espetáculo da gestão e da “comunicação” dos poderes, nem na politização da arte, mas naquilo que esses dois domínios “compartilham”, a saber, o status da visibilidade. Se a estética e a política necessariamente se abraçam, é que o mesmo “gesto” as definem, que é aquele de organizar o espaço da percepção de tal maneira que aquilo não era visível de repente o se torna. Nós concebemos para a obra de arte que, se ela é “grande”, inventa linguagens (musicais, pictóricas, literárias. ….) para as quais ainda não há dicionário, e “mostram” que existe ali alguma coisa que era ainda despercebida ou inédita. Mas isso serve também para a política, que compartilha o espaço coletivo, reorganiza o tempo da ação, cria outros mundos comuns e tornam “visíveis” as capacidades dos sujeitos que os habitam.

Os exemplos são numerosos. O movimento protestante de 2013 no Park Gezi de Istambul, as “primaveras arábes”, Ocuppy Wall Street, os Indignados de la Puerta del Sol em Madrid, os ajuntamentos na praça Syntagma em Atenas, Nuit Debout, etc., todos eles, a despeito daquilo que lhes distinguem do ponto de vista cultural, ideológico e histórico, revelam outras maneiras de estar em conjunto, de agir, de sentir, de compreender , de pensar a hierarquia e a representação, e mostrar como uma comunidade se torna política tomando posse de “um espaço e de um tempo próprios”, criando um “outro mundo em comum”. “Na arte como na política, escreve Rancière, o comum se dá hoje como qualquer coisa a ser construída com materiais e formas heterogêneas e não com a afirmação de recursos próprios em unidades constituídas, quer se trate de classes sociais, de organizações especializadas ou de artes definidas.”

Ganhos de Justiça e Liberdade

Certamente, à lógica “movimentista”, falta uma “força unitária”. As lutas nascidas de circunstâncias específicas – “uma forma de dominação, um tipo de injustiça” – e conduzidas para defender “os direitos dos pobres que eles querem caçar em suas terras ou dos camponeses que eles querem expulsar de suas terras”, se opor a um “projeto que ameaça o equilíbrio ecológico”, acolher “aqueles que tiveram de fugir de seu país”, oferecer os “meios de expressão aquele que não os tem”, permitem “a tal ou qual categoria de ser humano inferiorizado por essa ou aquela razão – de sexo, de origem, de capacidade física, etc. – impor uma regra de igualdade”, e se efetuam fora da “ideia de fusão orientada por uma visão de história e do futuro”. Elas não visam nenhuma “Grande Noite”, mas são como as manhãs do mundo, pois elas permitem a cada vez desenvolver as “formas de secessão relativamente aos modos de percepção, de pensamento, de vida e de comunidade propostas pela lógicas inegualitárias”. Nós certamente pensamos diferente, antigamente, a “revolução”. Mas o tempo em que nós vivemos – onde o capitalismo, “mais que um poder”, se tornou “um mundo” – não exclui em nada os ganhos de justiça e liberdade se, seguindo Jacques Rancière, nós concebemos a emancipação como “a invenção aqui e agora de formas do comum” e como “maneira de viver no mundo do inimigo na posição ambígua daquele ou daquela que combate a ordem dominante mas que também é capaz de nele construir lugares à parte onde ele escapa da sua lei.”


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