Étienne Balibar: “Um período de intenso debate acerca da filosofia marxista”

Por Jérôme Skalski, via Humanité, traduzido por Daniel Alves Teixeira.

Em entrevista ao Humanité, Étienne Balibar aborda o pensamento de Louis Althusser relatando a efervescência do mundo intelectual e político francês dos anos 60 e 70, onde um marxismo revigorado permeava os debates partidários e acadêmicos. Autor do estudo “Sobre os conceitos fundamentais do materialismo histórico” publicado no renomado Ler o Capital em 1965, o filósofo afirma ainda a necessidade de uma crítica do capitalismo que esteja a altura das exigências do presente.


Jérôme Skalski: Há cinqüenta anos foram publicados Por Marx, de Althusser e, sobre sua direção, Ler o Capital. Qual era o contexto do debate da época?

Étienne Balibar: Para dizer muito rapidamente, eu diria que a questão refere-se a um aspecto intelectual e mesmo universitário, e a um político e ideológico. Eu pertenço a uma geração que entrou na École Normale Supérieure em 1960. Isto não é indiferente de um ponto de vista histórico. Havia em nosso grupo alunos, que pouco a pouco se constituiu ao redor de Althusser, com certeza, mas também os discípulos. As pessoas um pouco mais velhas como Pierre Macherey e depois pessoas um pouco mais jovens, futuros maoístas, como Dominique Lecourt. Isto se espalhou por cinco ou seis anos. De um lado então, o ano 1960, foi dois anos antes do fim da guerra da Argélia e era o ano, alguns meses depois, da publicação da Crítica da Razão Dialética, de Jean-Paul Sartre. Nós havíamos sido politizados pela guerra da Argélia. Nós éramos todos militantes na Unef que era o primeiro sindicato francês a ter empreendido um encontro com os sindicatos argelinos ligados ao FLN para tentar coordenar ações de luta contra a guerra. Esse era um contexto de intensa politização e mobilização mas também de conflitos internos bastante intensos. O fundo de nossa politização era fundamentado principalmente na mobilização anti-colonial, e por conseqüência, anti-imperialista. A dimensão social existia, mas ela chegou um pouco depois. De outro lado, era um período de intenso debate em torno da filosofia marxista na qual os filósofos marxistas do Partido Comunista tiveram um papel inegável, mas também filósofos marxistas importantes, seja os que não estavam mais no Partido Comunista, como Henri Lefebvre, seja os que pertenciam às tendências marxistas não comunistas. E depois havia Jean-Paul Sartre que descrevia a si mesmo como um companheiro de estrada e que tinha acabado de publicar sua grande obra na qual empreendeu a reconstrução do marxismo e na qual figurava, na introdução, a célebre frase que muitas vezes repetimos culposamente: “O marxismo é o horizonte insuperável de nosso tempo”. Eu não digo que todo o trabalho filosófico na França se passava em torno de Marx. Isso seria completamente falso. Mas digamos que o debate sobre o marxismo era verdadeiramente muito visível, muito intenso, muito apaixonante e muito interessante. Era também a época em que o Partido Comunista havia decido organizar um centro de estudos de pesquisa marxista com revistas como La Pensée ou La Nouvelle Critique. Ele havia decidido organizar as semanas de pensamento marxista. Para dar a ideia da época, eu evocaria 1961, o ano seguinte a publicação do livro de Sartre. O principal evento da Semana do pensamento marxista nesse ano de 1961 era o debate que havia oposto Sartre e nosso diretor da École Normale Supérieure Jean Hippolyte, o famoso especialista em Hegel, de um lado e de outro, Roger Garaudy, representando a linha oficial do PC na filosofia, e Jean-Pierre Vigier, resistente, físico e filósofo, membro do comitê central. Esse debate teve lugar na grande sala da Mutualité Archicomble. O evento foi enorme. Althusser era professor de filosofia associado e encarregado de nos preparar para o exame de agregação. Evidentemente, seus cursos não eram sobre o marxismo, mas sobre toda sorte de outros temas. Ele havia, no entanto, começado a publicar no La Pensée, em 1961, um primeiro artigo seguido de vários outros, que imediatamente provocaram um animado debate dentro e fora do Partido. Nosso interesse foi imediatamente atraído. Nós fomos encontrá-lo e propusemos constituir um grupo de trabalho que se tornou progressivamente uma pequena equipe. Certamente, ela não durou muito tempo. Ela resistiu, mesmo antes de 1968, às tensões internas bastante acentuadas, mas durante vários anos nós trabalhamos juntos de forma sistemática, tanto o marxismo como a filosofia francesa da época na qual, a nossos olhos, o grande evento era o nascimento do estruturalismo. Nós organizamos um seminário público que durou todo o ano. Ele foi imediatamente publicado. Foi nesse momento que a influência de Althusser foi máxima para uma certa parte da inteligência da esquerda marxista ou marxisisante na França.

Jérôme Skalski: Quais eram as orientações do pensamento de Louis Althusser?

Étienne Balibar: Eu não sei se eu sei resumir bem as coisas. De início, mesmo se depois Althusser efetuou uma autocrítica para dizer que, de certa maneira, ele havia esquecido a política, eu penso que a empreitada de Althusser havia, desde de seus primeiros artigos, uma dupla dimensão, política e filosófica. Evidentemente, um dos aspectos sedutores, e a justo título, da empreitada de Althusser para muitos jovens marxistas e mesmo para os jovens filósofos de forma geral, é que ele não queria sacrificar nenhum dos dois aspectos ao outro. De um lado, ele queria fazer do marxismo uma grande filosofia e, de outro lado, ele tinha uma conceituação bastante política da filosofia na qual o marxismo constituía, como exprime a décima primeira tese de Marx sobre Feuerbach, não somente um meio de interpretar o mundo mas de transformá-lo. Tudo isso pode parecer um pouco distante hoje mas sua intervenção se organizava em torno da articulação de dois aspectos do marxismo que Stalin havia definido em um célebre folheto que certamente dogmatizava as coisas, mas que, eu acho, era bastante influente sobre o espírito de Althusser. De um lado, o materialismo dialético, o aspecto filosófico do marxismo, de outro, o materialismo histórico, isso quer dizer a teoria da história, e por via de conseqüência, a teoria da política e da transformação social.

Jérôme Skalski: Spinoza não era também um pensador da democracia radical? Filosoficamente, o marxismo althusseriano, é também um retorno a Spinoza?

Étienne Balibar: É o Spinoza do Tratado Teológico-Político que Althusser admirava. Mas o aspecto que mais lhe interessava não era esse. De fato, você tem razão em dizer que o pensamento de Spinoza era um pensamento radicalmente democrático. É um aspecto que passou ao primeiro plano há muito tempo e que foi apropriado por filósofos muitos diversos entre os quais alguns, efetivamente, de proveniência marxista. Esse não era entretanto o aspecto que interessava a Althusser. Não porque lhe fosse hostil, mas ele pensava, no fundo, que a democracia radical era uma transição, uma etapa intermediária, em direção a ditadura do proletariado. Desse ponto de vista, era um marxista muito ortodoxo. O aspecto que ele invoca em Spinoza concernia a teoria da ideologia. Com Spinoza nós temos a primeira grande crítica materialista da ideologia. Althusser defendia uma tese paradoxal. Eu entendo que ele tenha chocado fortemente muitos marxistas da época mas, por outro lado, ele era também muito sedutor para alguns de nós. Essa ideia, é que o conceito de ideologia era o aspecto fundamental da revolução teórica de Marx. Não somente a crítica da ideologia burguesa, mas a critica da ideologia em geral. Isso também parecia a ele um ponto muito importante nos debates internos do comunismo da época, que ele caracterizava como dominados pelo complexo ideológico que ele chamava de economicismo e humanismo. Ele pensava que a tradição marxista sobre a ideologia era uma tradição fraca e que Marx, se havia tido o gênio de inventar o conceito de ideologia, também havia tido uma análise muito ruim sobre ela. Ele encontrou então em Spinoza os elementos de uma crítica materialista da ideologia que não era nem feuerbachiana, nem hegeliana, nem atada a uma filosofia da história, e nem ao conceito de alienação de homem e da essência humana. Tudo isso fazia uma boa mistura com isso que nós chamamos de cientificismo de Althusser, ja que ele se exprimia por meio da ideia de corte epistemológico, que o conduziu a vizinhança do estruturalismo. Althusser denunciou muito rapidamente essas posições em seus Elementos de autocrítica.

Jérôme Skalski: O que resta da intervenção filosófica de Althusser e dos debates da época para hoje? 

Étienne Balibar: Meu ponto de vista, evidentemente, é que nós temos a necessidade de uma crítica do capitalismo que esteja a altura das exigências do presente. A exigência do presente é a mundialização, o caráter inextricavelmente misturado do problema econômico e do problema ecológico. É a emergência de novas formas de governança, como nós dizemos, que são em parte tanto intra-estatais e supra-estatais ou pós-estatais. É uma revisão generalizada. É preciso uma nova crítica da economia política e da política. Marx não é somente supérfluo para realizá-la, mas absolutamente indispensável. Ele vai sair ele mesmo transformadod esta empreitada. Althusser em um dos últimos textos que tentou escrever, designa o marxismo como teoria finita. Evidentemente, era um jogo de palavras formidável à época. Todo mundo falava do fim do marxismo. Althusser dizia: não é o fim do marxismo mas ele ressaltou a necessidade de o marxismo definir seus próprios limites internos, seus próprios limites históricos. Podemos dizer que ele havia se tornado mais historicista do que havia sido no começo, de certa maneira. Já entramos em uma nova fase de interpretação do marxismo que, inevitavelmente, é talvez também uma fase de transformação tão radical do marxismo que ele sairá, sem dúvida, de fato irreconhecível. Desse ponto de vista, isso que se passou nos anos 1960 é muito interessante. Não somente em razão das sugestões teóricas que foram feitas à época e que não foram todas exploradas. A certos olhares, a autocrítica de Althusser teve efeitos negativos. Mas, sobretudo por causa do fato de que Althusser não era o único protagonista deste debate sobre a refundação do marxismo. Isso era, de uma certa maneira, a grande empreitada comum de marxistas de diferentes países durante esses anos. Para mim, Althusser possui uma espécie de privilégio biográfico, mas ele não tem um privilégio absoluto. Aquilo que ele pôde trazer não pode ser medido e discutido se nós não alargarmos o ângulo de visão. Durante os anos 60, existe nos quadros do marxismo crítico alemão uma nova leitura do Capital, que deve muito à Escola de Frankfurt e que é particularmente centrada sobre os fenômenos de alienação social ligados à generalização da forma mercadoria. Isso é algo que Althusser conhecia mal ou que ele não queria conhecer. Existem as diferentes correntes do trabalhismo italiano, na grande figura de Mario Tronti, que escreve exatamente no mesmo momento que Althusser e seu grupo, uma releitura do Capital que, sobre certos pontos, atravessa Althusser, e sobre outros, dele diverge radicalmente. Mas nós poderíamos ainda ampliar a perspectiva com as correntes do marxismo crítico na América Latina, e depois com a tradição da história marxista, ilustrada no mundo anglo-saxão por Eric Hobsbawn, Maurice Dobb, Christopher Hill ou Perry Anderson. Se nós voltarmos a 1965, veremos um marxismo em plena efervescência, em plena contradição com ele mesmo. De um lado, o peso da crise do comunismo de Estado e, de outro lado, as esperanças revolucionárias. No meio disso tudo, uma capacidade de reviver as ligações entre a filosofia marxista e a filosofia do dia-a-dia. Não podemos recomeçar exatamente da mesma forma. Mas isso certamente contém uma noção positiva para hoje.


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